terça-feira, junho 19, 2012

DIGNIDADE

Percebi, um destes dias há algum tempo já, que a palavra "dignidade" pode ser usada de uma forma muito peculiar, associada a um nível simbólico, e significando: «convém-me ter isto, não só porque me convém mesmo e me apetece muito tê-lo, mas, há que percebê-lo bem, porque é um símbolo que levará a que me respeitem como mereço

Lembro-me de que, numa altura em que o país bradava contra a injusta prerrogativa, exclusiva dos deputados, de decidir os seus próprios aumentos de ordenado, Almeida Santos apareceu na televisão dizendo: «É uma questão de dignidade. Não faz sentido que os deputados não recebam condignamente, porque é a própria dignificação da política que exige esse ajustamento.»

Este argumento tem, em múltiplas versões, continuado na ordem do dia. Os professores de Educação Física andam muito enervados, por exemplo, porque a classificação da sua disciplina deixa de contar para a média dos alunos. Até tenderia a compreendê-los - e a irritar-me, quando penso que se trata de uma medida certamente fabricada para favorecer algum filho ou sobrinho, ou neto ou enteado de um ministro, ou de um secretário, ou da criada de algum líder político. Em síntese, de uma criança que quer entrar para medicina, está-se mesmo a ver, e a quem a nota de Educação Física escangalha a média. Mas não posso entender que se pense que a dignidade da disciplina depende de que a sua nota conte ou não conte. É verdade que existe um preconceito: mas esse preconceito não deixaria de existir pelo facto de  a nota desta disciplina pesar como as outras, tal como não desapareceu com a aparência científica de que os professores de Educação Física tentaram revestir o seu trabalho, entre papéis, planificações, grelhas, quantificações: tudo o que veio transformando as aulas de exercício físico numa espécie de burocracia de doutorados em luta contra o seu antigo complexo de inferioridade.

Com a disciplina de filosofia, aliás [de que sou professor], passa-se algo análogo. Sabiam que há uma Associação qualquer de filosofia (constituída, como é bom de ver, por gente de um elementaríssimo senso comum), a qual advoga, há anos, que a filosofia deveria ser sujeita a exame, por razões de "dignidade" da disciplina? Deus do céu! As coisas que se dizem. Os tratos a que submetem a palavra.  O grave que me parece professores de filosofia não captarem que esta disciplina, no seu exercício mais sério e mais nobre, tem de ser, por natureza, o contrário de uma "máquina de preparação de meninos para exame". O que se tem visto prova como tenho razão: basta consultar as sebentas de preparação para o exame de filosofia; basta consultar as provas-modelo. Está lá tudo o que mostra que um exame de filosofia serve para reduzir «o trabalho de reflexão crítica» a um conjunto de definições para decorar, frases feitas e chavões. A organogramas, até. Dudu, meu filho, preparando-se para o exame, pedia-me livros: o que ler de David Hume ou de Kant? E que tal aquele, sobre ética, da autoria de um professor norte-americano, e de que lhe falo tanto?
Fui eu que, depois de me ter confrontado com as sebentas e com as provas-modelo, acabei opor lhe dizer: «Não vale a pena, rapaz! Decora antes isto!»

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