quinta-feira, junho 14, 2012

QUANDO FUI HUMBERTO

A história que eu vou contar é absolutamente inverosímil, mas passou-se comigo (a quem sucedem aliás diversas improbabilidades) e é, pois, tão verídica como estar neste momento a narrá-la.

O local foi o Pão-de-Açúcar de Cascais. Passaram muitos anos. Eu era mais jovem, menos gordo, menos triste, certamente sem filhos. Folheava uma banda desenhada. Por detrás de mim, surdiu bruscamente um homem careca e de óculos, que me disse:
«Com que então a ver bonecada, com essa idade?»
Não sei bem como se responde a isto, mas tomei a observação por uma brincadeira, não por um insulto, de maneira que respondi:
«Pois é, pois é.»
«Então como vai a vida?»
O homem queria, portanto, conversa. Não seria particularmente estranho; o mundo está carregado de solitários em busca de companhia. Mantive o registo:
«O mesmo de sempre.»
«Chegou há pouco tempo, não foi?»
Interpretei que se referia à minha entrada no Pão-de-Açúcar. Retorqui:
«Há relativamente pouco tempo, sim.»
«E como está aquilo?»
Aqui, qualquer outra pessoa teria principiado a detectar o equívoco. Eu detectei, de resto, mas senti-me impotente para lutar contra ele ou, sequer, para o esclarecer. Deixara de vez o álbum de banda desenhada, e afirmei: «Está bem, está bem.»
«Aquilo é bestial. Foram os melhores anos da minha vida. Infelizmente, não creio que possa lá voltar. Você ainda regressa a Macau, Humberto?»
Nunca estive em Macau. Não me chamo Humberto. O velho careca e de óculos confundira-me com um certo Humberto que tinha estado em Macau. Era tempo de pôr cobro à confusão. Mas não fui capaz, porque tudo o que me vinha à cabeça era: o que ficaria ele a pensar - que eu tinha estado a divertir-me à sua custa? Como explicar-lhe que tivesse deixado a conversa arrastar-se, no seu tom vagamente surrealista, durante tanto tempo?
De modo que, creiam, lhe respondi:
«Sou bem capaz de voltar. Nunca se sabe.»
«E a mulher e os filhos, também vieram?»
Repentinamente, a angústia que eu vinha sentido tornou-se-me insuportável. Acabava de perceber que, como num romance de Kafka, esta conversa podia prolongar-se por toda a eternidade, expondo-me, em cada instante, à possibilidade de entrar em contradição, de alguma incongruência, de falhas várias. Não é possível manter-se indefinidamente uma personagem sobre quem se não sabia rigorosamente nada um instante antes de se abrir a boca.
E, nesta angústia, tomei uma decisão porventura ainda mais absurda. Rematei:
«Ah! Peço-lhe desculpa, mas deve haver uma confusão. É perfeitamente compreensível, porque conheço um senhor parecido consigo, que esteve em Macau. Além disso também me chamo Humberto! Mas não tenho mulher nem filhos. E o senhor não é quem eu pensava. Não se chama... aaaah... Erasmo, pois não? Logo vi. Olhe, muito boa noite, e desculpe o equívoco»

Voltei-lhe costas e desapareci. Sentindo-me muito, muito, muito esquisito.
 

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