Domingos Paciência era um sujeito de natureza bondosa, que uma educação sensível e atenta só veio melhorar, limando-lhe e aplainando-lhe o coração.
Sua mãe costumava dizer, talvez com algum exagero, que o menino Domingos nunca tivera as manifestações de egoísmo e mesquinhez que são comuns nas crianças. Nunca fizera uma birra. Nunca recusara a sopa. Nunca.
Quando esta história vai ao seu encontro, Domingos é já um homem feito, de uma trintena de anos. Segue pela A5, de manhã, enfiado numa fila desesperada de automóveis, onde só deparamos com rostos agrestes e conflituosos, onde só se vêem condutores prontos a buzinar, a insultar, à espera de um minúsculo pretexto para deixar por um instante a viatura, com o fito de oferecer uma ensinadela ao condutor de trás (leia-se: um par de murros): em todos os carros, raiva mal contida, com a excepção - que os meus leitores previam, certamente - de Domingos Paciência.
O nosso herói ouve rádio, gargalha com as piadas matinais dos locutores, trauteia a última música da Duffy. Domingos Paciência, ah, sim: o apelido adequa-se-lhe como uma luva.
A dado momento, Paciência repara num carro muito velho e sujo, que tivera de estacionar na berma da via. De pé, ao lado desse automóvel, uma mulher idosa, curvada, vestindo, ridiculamente, um colete reflector, parece não saber o que fazer à vida. E no interior do veículo, um homem ainda mais idoso - pelo menos de aparência -, mais enrugado do que Matusalém, com um boné de orelhas enterrado na cabeça, agita-se numa espécie de estertor aflito.
Ninguém, naquela multidão nervosa, quer perder tempo com aqueles dois, ninguém lhes liga, ninguém sabe nem quer saber.
Domingos Paciência não resiste ao triste espectáculo da velhice desamparada. Dir-se-ia que dois pormenores, sobretudo, o obrigam a estacionar ao pé do trágico casal para lhes levar conforto e ajuda: o colete reflector, muito verde, mal amanhado sobre a corcunda da senhora, e o boné de orelhas descaídas pela cabeça do homem abaixo.
Não hesita.
Pára o seu automóvel a pouca distância deles.
Abre a porta. Dirige-se ao casal.
Pelo caminho, observando a expressão bizarra dos dois, a linguagem corporal deles, que lhe parece de receio, pensa: «Querem ver que eles se assustam comigo? Ainda pensam que os vou assaltar...! Coitados! Ao que este mundo chegou. Estão de tal modo longe de imaginar que alguém se preocupe com eles, que...»
E, pensando assim, agita os braços no ar, procurando acalmá-los, sem deixar de se aproximar:
- Calma, amigos! Vou ajudá-los! Então, que se passa?
A gestualidade dos velhos parece-lhe, cada vez mais, de uma estranhíssima e inexplicável angústia. A mulher berra-lhe algo. Por causa do vento, não lhe entende a voz frágil. De modo que Domingos Paciência não vê alternativa senão continuar gritando:
- Calma, amigos! Calma, amigos! Eu ajudo-vos!
É já quando está muito próximo, a três, quatro passos, que descobre, em primeiro lugar, que a senhora lhe aponta o que pode bem ser uma arma; e em segundo lugar, que as suas palavras são estas:
- Passa para cá tudo. Dinheiro, telemóvel, anéis, jóias. Vá, rápido.
Ao mesmo tempo, o velho do chapéu de orelhas, que tanto o havia comovido, sai do automóvel, empunhando uma espingarda de canos curtos; o homem tem a boca aberta sobre um negrume sem dentes, e acrescenta:
- E passa para cá a placa!
sexta-feira, abril 18, 2008
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2 comentários:
Domingos Paciência está metido numa enrascada: com trinta anos, como pode ele cumprir a ordem "passa para cá a placa"?!
Pois não pode!Na minha opinião, acabará morto por um tiro de uma caçadeira de cano curto!
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