domingo, abril 20, 2008

OS RATOS DO GUARDA-FATOS [II]

Sobre os ratos - e está assente que continuarei a tratá-los por «ratos» -, diversas teorias me desabaram em cima.
Uma, a da minha sobrinha doida, que vinha contando, desde há muitos anos, a perturbadora narração de como uns extra-terrestres a teriam sugado para uma nave espacial e depois, na nave, «sugado» fisicamente - desculpem-me a grosseria da linguagem - de todas as formas imagináveis e inimagináveis, consistia em que estes seres, que haviam nidificado no meu guarda-fatos, seriam nada mais do que os extra-terrestres violadores, que a vinham buscar para novas experiências sexuais.
- Desculpa lá, Deolinda - estranhava eu -, mas tu não dizias que os ET que te violaram repetidamente tinham o aspecto do Brad Pitt, do George Clooney etc? Estes são ratos, menina. Com óculos e carecas, é certo, mas ratos!
- Ratos?! Hum...!

Outra teoria, a do meu psicólogo - porque eu andei no psicólogo, é verdade, mas só porque passei por um período particularmente fatigante na minha vida... - resumia-se à tese de que estes ratos seriam, no fundo, uma projecção minha: tratar-se-ia do modo como eu corporizara os meus medos, as minhas angústias, ou o terror, que aliás me vinha obcecando, de que a minha vida ruía por todos os lados...
- Mas então não existem, é isso? - perguntava-lhe eu, pouco convencido. - São uma espécie de delírio, uma fantasia? Só que repare, Dr. Fraude, não fui eu quem os descobriu. Foi a minha mulher. Como é que Amélia poderia ter visto, no guarda-fatos, as minhas fantasias?
- Não disse que eram fantasias suas. Admitamos que as suas angústias, os seus terrores, têm tanta energia, que tomam efectivamente forma. Eles existem. A sua mente criou-os, mas eles libertaram-se e andam por aí...
Parecia-me uma explicação, como dizer?, pouco plausível, sim, mas não menos plausível do que o próprio facto, em si, de haver ratos carecas e caixa-de-óculos no meu guarda-fatos.
Só pus esta teoria de parte quando, entretanto, o Dr. Augusto Fraude foi internado, completamente maluco, e maluco furioso!

Por outro lado, houve várias tentativas de me libertar dos ratos.
Amélia dirigiu-se-lhes, uma vez, de guarda-chuva em punho. Queria expulsá-los, ou matá-los, nem sei. Mas haviam de ver a reacção do chefe. Aqueles dentes, o seu rosnar, o seu bufar, o seu hálito, a sua ira, ali de pé, agitando as patas ameaçadoras, cheias de garras! Livra!

Claro, telefonei, nessa mesma tarde, ao Implacável Exterminador. O Implacável Exterminador era um Schwarzenegger à portuguesa, com falas mansas, um bigodinho lustroso, muitos músculos que lhe serviam de terreno a magníficas tatuagens, evocativas da guerra da Guiné e do amor aos pais, e que descia, de uma carrinha, com um impressionante e sinistro manancial de aparelhos.
Na verdade, nem o senhor Cavaco Silva - por mera casualidade, assim se chamava o senhor, semelhantemente ao nosso Presidente - conseguiu pôr cobro à infestação.
Vimo-lo entrar em casa, confiante. Aguardávamos cá fora. E vimo-lo sair, chorando.
- Peço desculpa, senhor Albuquerque. Não posso! É verdade que sou um bruto, um selvagem, fiz a guerra, matei pretos às centenas mas... isto não sou capaz! Não posso matar um rato de fato e gravata!
- Deus do céu! O fato?! O meu único fato? Já andam com o fato que me serve para os casamentos, para os baptizados, para todas as festas? Dê cá esse aparelho. Eu próprio dou cabo deles...
- Lamento, senhor Albuquerque. Eu não sou capaz. Adeus.
E a minha última esperança foi-se embora, numa nuvem de pó.

(CONTINUA)

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