Deixei de falar acerca do meu cão Dunga. A razão é bem simples: se, ao princípio, ele e a minha recém-nascida filha se cheiravam mutuamente, com uma medrosa curiosidade, aos poucos a relação entre ambos foi-se tornando mais tensa. Suponho que é pelo facto de o Dunga ser, por natureza, um vira-latas: não apreciava que a petiza lhe batesse com a pazinha de plástico no focinho. Chegou a ganir de dor, o monstro.
Não tivemos alternativa senão abandoná-lo um dia. Estava a brincar; escrevi isto só para fazer estremecer os meus leitores mais sensíveis! Ai que divertido! Não. O que fiz foi, um dia em que a minha tia, chorosa, me veio molhar de lágrimas o ombro pela perda da sua delicada e dedicada cadela, propor-lhe, generosamente, que ficasse com o Dunga. Estávamos dispostos ao sacrifício. Eu estava preparado para o terrível sacrifício de não ter de andar a tropeçar todos os dias num cão lãzudo, de não o ver pisgar-se-me nas barbas mal apanhava uma fresta de portão aberto, de não ter de andar, à noite, por São Domingos de Rana, sozinho, de lanterna em punho, à procura dele e, sobretudo, de não ter de o separar da minha filha quando a meiga criança lhe arreava um pontapé no focinho ou lhe puxava os bigodes!
O cão foi passar uma temporada à tia Glorinha.
E deu-se bem, o malandro. Engordava, acalmava a olhos vistos, tornava-se o verdadeiro homem naquela casa de mulheres.
Às vezes, a tia Glorinha trazia-o para ele nos visitar. (Tinha de ser, nunca conseguimos convencê-la que escusava de se incomodar...) O Dunga portava-se bem. Só afinava, se e quando temia que o quiséssemos guardar connosco no momento em que a tia se despedia de nós. A suspeita de que a minha mulher o fosse arrancar ao carro da tia, onde já se instalara para se ir embora, bastou, um dia, para lhe desatar a ladrar.
A temporada foi-se alargando. Não era só o Dunga que acalmava. Longe dele, eu próprio comecei a andar mais calmo. Já não pensávamos em que ele voltasse. Sacrificávamo-nos, pois!
O problema surgiu, agora, porque a tia Glorinha e a filha resolveram ir visitar o meu primo, que se mudara para os Estados Unidos. Com quem ficaria o Dunga? Com quem está a ficar? Adivinhem!!!
A tia e o Dunga chegaram, portanto. Eu estava estupidamente frio nesse dia em que recebi o melhor amigo do homem!
Houve muitas recomendações.
Dizia-nos a tia:
- Desta vez, pelo amor de Deus, tenham muito cuidado com o portão. Não se esqueçam dele aberto! Temo sobretudo pela mulher-a-dias. A vossa rapariga é meio-esgroviada. Com ela, o Dunguinha foge sempre. Anda cá, Dunguinha. Dá um beijo à dona. Portas-te bem, não portas? Vou ter saudades tuas. E tu, ouviste, Gil? Pelo amor de Deus, querido, cuidado com o portão!!!
Dizendo isto e acrescentando, a isto, mais cento e dez recomendações deste jaez, a tia Glorinha desandou com uma lágrima ao canto do olho. Esqueceu-se do portão aberto. Parece mentira? Não é mentira!
Deixei o Dunga ir ao quintal beber água; o Dunga viu o portão aberto; pensou: «Olha!?»; raspou-se...
Quando lhe estranhei o silêncio e a demora, saí, por minha vez, de casa, chamando, pobre e inocente tolo, «Dunga?! Dunga...?!», notei o portão escancarado, pensei, também eu, «Olha!», amaldiçoei o mundo, a vida, as tias, as filhas, os animais de estimação em geral, o Dunga em particular.
E parti à procura dele - que, entretanto, se enrolara já com o cão do vizinho.
Não me quis meter entre dois cães. Cobardemente, mandei o meu filho.
O qual regressou depressa:
- Eu não o trago. Que nojo! Estava a lamber a pila do cão do vizinho.
- Sabes perfeitamente que não quero que digas essas palavras!
- O quê, «lamber»?!
- E não se faça engraçadinho, senhor Duarte. Percebeu-me perfeitamente, não se arme em esperto.
Em suma: vão ser quinze dias disto.
segunda-feira, abril 07, 2008
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3 comentários:
E eu que pensava que os retornados eram pessoas que tinham deixado os canitos nas províncias ultramarinas!
Estás feito, Gil! E se adoptassses um gato que imponha o respeito a esse vira latas? Também se lambem, mas são mais discretos e elegantes; trata-se de uma questão de higiene...
O gato faria melhor ainda, para além de impor respeito: havia de comer do prato dele e dormir na sua cama quando o cão se distraísse! Iria irritá-lo tanto que ele havia de desejar que a tia Glorinha nunca o tivesse mandado passar férias.
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