Era uma voz desconhecida. E, no entanto, paradoxalmente, reconhecia-a. Mais complicado, ainda: reconhecia-a sem a reconhecer, como se lhe chegasse de um Além onde só estivera em sonho, ou mesmo mais recuada e longínquamente, num sonho de um sonho...
Olhou para o espelho; curiosamente, era dali que a voz familiar-desconhecida lhe soava.
E tornou a reparar no seu estranho rosto reflectido.
Mas não. Não era já o seu rosto. Nem o de sempre, nem aquele em que acabava de se metamorfoser. Via agora no espelho, como se o espelho fosse uma televisão ou um intercomunicador com imagem, o rosto de uma criatura estranha, que lhe falava serenamente. Havia ruído, um pouco de granulado, uma imagem não muito nítida, um pouco desfocada por vezes - e uma pessoa, um ser, um bicho, um monstro, que era aquilo?, que ele não conhecia mas, de algum modo, vagamente reconhecia.
E que lhe repetia:
- Não te assustes, Kal-El! A hora da reconversão chegou! Estás a readquirir o teu corpo, o teu ser. O ataque não tardará. Os humanos estão desesperados. A crise alastra. É agora ou nunca, Kal-El!
quinta-feira, outubro 30, 2008
domingo, outubro 26, 2008
CONTOS INFANTIS REVISISTADOS: OS TRÊS PORQUINHOS
Era uma vez três porquinhos.
O mais novinho era uma porquinha pequenina e com pouca experiência da vida, chamada Daisy.
O do meio, seu mano, era um porquinho astucioso e adolescente, a quem tratavam por Dudu.
O mais velho e mais experiente, cinquentão, pai dos outros dois, era o Prático.
Os três porquinhos foram, então, construir as respectivas casinhas.
A mais novinha, coitadita, não vos faz pena?, sem experiência de vida, sem consciência das agruras possíveis, previsíveis até, limitou-se a fabricar uma casita de palha.
O outro, ligeiramente mais sabido mas ainda pouco rodado, levantou, não muito longe, uma casa de madeira.
E o Pai Prático, todo lampeiro e esperto, construiu uma moradia de pedra, com dois andares, quintal e até uma piscina com vedação para impedir que os lobos a frequentassem.
Acontece que o Lobão desta história, o Banco, fez, primeiramente, uma visita à Daisy. Bem queria soprar, mas a Daisy, no seu linguajar infantil, limitou-se a dizer:
«Empéstimo?! Qual empéstimo?! Não, eu apagnei uma páglia e fije a cágnia xojinha, xem ajuda nenhuma!» (Tradução: apanhei umas palhas e tratei de fazer a casa sozinha, sem pedir nada a ninguém...)
Em face de Dudu, o Lobão fez também inúmeras tentativas de o encostar à parede. Mas o adolescente, com palavrões típicos de todos os adolescentes, espreitando pela janela, mandou-os passear:
«Qual @3£# de empréstimo qual carapuça! Vão mas é %&/! Tão a brincar??? Não me ?»=}§£$ o juizo!!!»
Quando chegou a vez do Pai Prático, o Lobão vingou-se ferozmente das anteriores frustrações. Soprou desalmadamente. Vimos a casa subir pelos ares, tijolo após tijolo. Desaparecer no firmamento. E o Banco a rir, Agora é que é! Huá Huá Huá! Querias casa? Com o Euribor neste descontrole? Eu dou-te a casa!!!
De modo que o porquinho Prático teve de fugir para casa dos filhos, onde vive hoje muito triste e temeroso, espreitando à janela, paranóico e infeliz.
Aguenta seis meses na casa de palha - e descansa da Daisy, durante outros seis meses, na casa do porquinho Dudu.
O mais novinho era uma porquinha pequenina e com pouca experiência da vida, chamada Daisy.
O do meio, seu mano, era um porquinho astucioso e adolescente, a quem tratavam por Dudu.
O mais velho e mais experiente, cinquentão, pai dos outros dois, era o Prático.
Os três porquinhos foram, então, construir as respectivas casinhas.
A mais novinha, coitadita, não vos faz pena?, sem experiência de vida, sem consciência das agruras possíveis, previsíveis até, limitou-se a fabricar uma casita de palha.
O outro, ligeiramente mais sabido mas ainda pouco rodado, levantou, não muito longe, uma casa de madeira.
E o Pai Prático, todo lampeiro e esperto, construiu uma moradia de pedra, com dois andares, quintal e até uma piscina com vedação para impedir que os lobos a frequentassem.
Acontece que o Lobão desta história, o Banco, fez, primeiramente, uma visita à Daisy. Bem queria soprar, mas a Daisy, no seu linguajar infantil, limitou-se a dizer:
«Empéstimo?! Qual empéstimo?! Não, eu apagnei uma páglia e fije a cágnia xojinha, xem ajuda nenhuma!» (Tradução: apanhei umas palhas e tratei de fazer a casa sozinha, sem pedir nada a ninguém...)
Em face de Dudu, o Lobão fez também inúmeras tentativas de o encostar à parede. Mas o adolescente, com palavrões típicos de todos os adolescentes, espreitando pela janela, mandou-os passear:
«Qual @3£# de empréstimo qual carapuça! Vão mas é %&/! Tão a brincar??? Não me ?»=}§£$ o juizo!!!»
Quando chegou a vez do Pai Prático, o Lobão vingou-se ferozmente das anteriores frustrações. Soprou desalmadamente. Vimos a casa subir pelos ares, tijolo após tijolo. Desaparecer no firmamento. E o Banco a rir, Agora é que é! Huá Huá Huá! Querias casa? Com o Euribor neste descontrole? Eu dou-te a casa!!!
De modo que o porquinho Prático teve de fugir para casa dos filhos, onde vive hoje muito triste e temeroso, espreitando à janela, paranóico e infeliz.
Aguenta seis meses na casa de palha - e descansa da Daisy, durante outros seis meses, na casa do porquinho Dudu.
segunda-feira, outubro 20, 2008
A RECONVERSÃO II
Naquele princípio de histeria que se apossou dele, lançou um berro. Esperava, talvez, que a família acordasse sobressaltada. Que descessem. Que o ajudassem. Que povoassem novamente o seu mundo de cenas e situações, vozes e gestos familiares e reconhecíveis. Mas ninguém respondeu ao apelo: e, no silêncio, o eco do seu berro, ou a memória do seu berro, assustou-o e obrigou-o a conter-se.
Aproximou-se do espelho, à espera de que fosse este a devolver-lhe, no reflexo do seu próprio rosto, um rasto e um resto de normalidade.
Mas o seu rosto, que o olhava do espelho, era diferente. Ele não era ele: aquela testa demasiado longa nunca fora a sua testa; nem aquela cabeça completamente calva (prenúncios de calvície, sim, fariam parte do reflexo esperado, mas não aquele crânio desértico que via agora); sobretudo aqueles olhos com que se olhava, desesperado, não eram os seus olhos.
Lembrou-se da «Metamorfose». Tranformara-se em quê? Transformava-se em quê? E com que direito se apoderava assim a ficção da sua própria vida?
Ouviu, então, uma voz:
- Calma, Kal-El! Chegou o momento! Não te assustes: chegou o momento!
(CONTINUA)
Aproximou-se do espelho, à espera de que fosse este a devolver-lhe, no reflexo do seu próprio rosto, um rasto e um resto de normalidade.
Mas o seu rosto, que o olhava do espelho, era diferente. Ele não era ele: aquela testa demasiado longa nunca fora a sua testa; nem aquela cabeça completamente calva (prenúncios de calvície, sim, fariam parte do reflexo esperado, mas não aquele crânio desértico que via agora); sobretudo aqueles olhos com que se olhava, desesperado, não eram os seus olhos.
Lembrou-se da «Metamorfose». Tranformara-se em quê? Transformava-se em quê? E com que direito se apoderava assim a ficção da sua própria vida?
Ouviu, então, uma voz:
- Calma, Kal-El! Chegou o momento! Não te assustes: chegou o momento!
(CONTINUA)
sexta-feira, outubro 17, 2008
A RECONVERSÃO
A vida não lhe corria bem: os efeitos da crise económica abriam rachas nas menores porções do seu dia-a-dia familiar e profissional. Tudo eram ralhos, dramas, nervos; tudo eram crises e choro; tudo eram contas que rabiscava obssessivamente em folhas reaproveitadas de papel (um talão do multibanco, uma conta da EDP), com um lápis muito comido, muito velhinho.
A casa, então, era um sorvedouro: bonita e grande por fora, com um quintalinho onde plantava couves que faziam as invejas dos vizinhos mas, por dentro, quem diria?, como numa brutal metáfora do estado da sua vida, tudo eram manchas de humidade avançando, alastrando, formando formas trocistas, enormes bocas escancaradas, ou rindo ou para o devorar...
Entrou na casa de banho, madrugada fria, pensando, ou melhor, chorando-se no pensamento. Tomou um duche rápido. Com água fria. E preparou-se para cortar as unhas dos pés - aí estava um aspecto da higiene, pelo menos, que não lhe saía caro...
E, com o pé direito assente sobre o tampo da sanita, atacava já com o corta-unhas quando...
Contou seis dedos. Seis!
Não podia ser. Duas explicações possíveis, uma de duas hipóteses: ou estava a sonhar - era um sonho, e então talvez tudo fosse um sonho, talvez a crise económica fizesse também parte do mesmo horroroso pesadelo...
Ou, mais simplesmente, enganara-se. Contara mal, atabalhoada e nervosamente.
Tornou a contar: seis dedos. Indiscutível: seis, seis, seis. Contou ainda: seis. Seis.
Pousou, nervosamente, o pé direito no chão, assentou o esquerdo sobre o tampo da sanita. Seis dedos, igualmente.
(CONTINUA)
A casa, então, era um sorvedouro: bonita e grande por fora, com um quintalinho onde plantava couves que faziam as invejas dos vizinhos mas, por dentro, quem diria?, como numa brutal metáfora do estado da sua vida, tudo eram manchas de humidade avançando, alastrando, formando formas trocistas, enormes bocas escancaradas, ou rindo ou para o devorar...
Entrou na casa de banho, madrugada fria, pensando, ou melhor, chorando-se no pensamento. Tomou um duche rápido. Com água fria. E preparou-se para cortar as unhas dos pés - aí estava um aspecto da higiene, pelo menos, que não lhe saía caro...
E, com o pé direito assente sobre o tampo da sanita, atacava já com o corta-unhas quando...
Contou seis dedos. Seis!
Não podia ser. Duas explicações possíveis, uma de duas hipóteses: ou estava a sonhar - era um sonho, e então talvez tudo fosse um sonho, talvez a crise económica fizesse também parte do mesmo horroroso pesadelo...
Ou, mais simplesmente, enganara-se. Contara mal, atabalhoada e nervosamente.
Tornou a contar: seis dedos. Indiscutível: seis, seis, seis. Contou ainda: seis. Seis.
Pousou, nervosamente, o pé direito no chão, assentou o esquerdo sobre o tampo da sanita. Seis dedos, igualmente.
(CONTINUA)
terça-feira, outubro 14, 2008
COISAS MINÚSCULAS À MARGEM DA SUFOCAÇÃO
Como é evidente, o tenebroso processo de avaliação entre pares em que me encontro submerso não conseguiu acabar comigo. Aperta, sufoca, desvitaliza - como, em certos filmes, quando a personagem se encontra num quarto estreito, e descobre que as paredes são móveis, e que deslizam de modo a vir a esmagá-lo se não descobrir uma solução até lá... -; cansa, entristece, deprime. Mas, por isso mesmo, a mínima coisa que se descobre à margem desse processo ganha uma importância e um significado quase resplandecentes.
Nessa medida, tenho vindo a tropeçar em pequenas maravilhas que gozo silenciosamente. Pequenas descobertas que adquirem proporções e significados inesperados; pausas minúsculas, tempos para respirar fundo diante de uma chávena de café, redescobertas constantes.
O café é uma dessas maravilhas. Aderi de uma vez por todas ao abatanado, rodeio-o de rituais e de fórmulas. Gosto dele muito quente e cheio.
Outra, é a leitura. É verdade que o tempo me tem vindo a ser roubado de uma forma inadmissível, mas dez minutos que me sobrem para passar mais uma página de «Detectives Selvagens» - que é grande e não terminarei tão cedo - é um tempo bem empregue. Um humor imprevisível, surrealista e frequentemente obsceno, uma escrita seca e sem floreados mas, paradoxalmente, de uma imensa criatividade, personagens carregadas de defeitos enternecedores de tão humanos, são os nós deste enorme texto.
Em matéria de banda desenhada, tenho a recomendar um blogue - chamemos-lhe assim: gráfico, cuja referência me foi indicada pelo filho de uma amiga minha, de Belas Artes. Fosse eu Janota ou Angel e punha-vos a clicar para voarem até lá. Assim, ponho-vos a escrever: http://imaginarte-imazine.blogspot.com - Olhem! Que espanto! Mal o escrevi, o endereço apareceu em azul; bruscamente, sem eu fazer nada, pronto para que cliquem. Estou a progredir, ein? Por acaso, mas estou, ein?
E assim vou resistindo.
Nessa medida, tenho vindo a tropeçar em pequenas maravilhas que gozo silenciosamente. Pequenas descobertas que adquirem proporções e significados inesperados; pausas minúsculas, tempos para respirar fundo diante de uma chávena de café, redescobertas constantes.
O café é uma dessas maravilhas. Aderi de uma vez por todas ao abatanado, rodeio-o de rituais e de fórmulas. Gosto dele muito quente e cheio.
Outra, é a leitura. É verdade que o tempo me tem vindo a ser roubado de uma forma inadmissível, mas dez minutos que me sobrem para passar mais uma página de «Detectives Selvagens» - que é grande e não terminarei tão cedo - é um tempo bem empregue. Um humor imprevisível, surrealista e frequentemente obsceno, uma escrita seca e sem floreados mas, paradoxalmente, de uma imensa criatividade, personagens carregadas de defeitos enternecedores de tão humanos, são os nós deste enorme texto.
Em matéria de banda desenhada, tenho a recomendar um blogue - chamemos-lhe assim: gráfico, cuja referência me foi indicada pelo filho de uma amiga minha, de Belas Artes. Fosse eu Janota ou Angel e punha-vos a clicar para voarem até lá. Assim, ponho-vos a escrever: http://imaginarte-imazine.blogspot.com - Olhem! Que espanto! Mal o escrevi, o endereço apareceu em azul; bruscamente, sem eu fazer nada, pronto para que cliquem. Estou a progredir, ein? Por acaso, mas estou, ein?
E assim vou resistindo.
terça-feira, outubro 07, 2008
OLIMPÍADAS DA MALHA
Parece que o nascimento de uma criança deve saudar-se com a mesma alegria devida à doce chegada da Primavera. E eu compreendo: há-de ser porque esse momento, uns dias após o parto, é certamente o único em que o bebé, que já massacrou a mãe para vir ao mundo, ainda, no entanto, não descobriu novas estratégias para continuar a massacrar a mãe e, já agora que está cá fora, também o pai.
Esse curto tempo em que tudo parece agradável e sorridente tem, por isso mesmo, de ser pretexto para festejos e danças. Nos próximos dez anos, pelo menos para os pais, acabaram-se os festejos e a dança é outra!
Nesta base - festejar a pausa que nunca mais voltará - fomos no fim-de-semana a Alverca distribuir uns beijos por um recém-nascido e respectiva família.
Chegados, vimos a menina a dormir docemente. Olhámo-la, enternecidos, trocámos ideias tontas sobre as semelhanças com outros parentes, escondendo caridosamente algumas semelhanças perturbadoras que por acaso pudéssemos ter também detectado.
E, depois, na confusão, fui arrebatado pelo jovem pai e pelo jovem avô para uma taberna de Alverca, onde - a mim, que vinha mal refeito de uma inclemente gripe que atacara com medicação feroz - para uma taberna de Alverca onde, dizia eu, me obrigaram a comer ovos cozidos e a beber uma série de «mines».
«Mas não haverá, não sei, hum, por exemplo uma sanduíche?, apetecia-me uma sanduíche, ou então...», insinuava-me eu a medo, com as pernas ainda doloridas da doença.
Não. Uma taberna não é o Ritz, lembrou-me alguém certeiramente. Ovos e mines.
Sequentemente, tornaram a pegar em mim (que pouca resistência estava capaz de oferecer), e enfiaram-me numa espécie de campeonato de malha, jogo de que não sei absolutamente coisa alguma. Avesso a que me considerem «snob», ciente de que nenhum lema é tão adequado como «Em Roma sê romano», aceitei pôr-me a jogar àquele jogo, com a mesma imprudência e a mesma irresponsabilidade com que uma criança chamada ao quadro, numa aula de matemática, em vez de confessar que não pesca absolutamente nada do assunto, optasse por «resolver» o problema escrevendo por ali uns quaisquer números, absurda e aleatória, mas convictamente. (O que também já me aconteceu!)
Formavam-se equipas renhidas, com tipos de nomes como o Chico Damas, o Preto e o Coxo. E, bruscamente, começou tudo: vi-me apanhado num coro de gritos, num entusiasmo ensurdecedor, com palavras que não percebia, relativamente àquele desporto que, afinal, tinha mais regras do que me parecera. «Truco», dizia um. Acho que era isso. Mas aquilo tinha um significado pré-determinado e, com base nesse grito, fazia-se uma operação demasiado rápida para mim, a partir da qual, de repente, ele me vencia.
Discordava-se. Media-se com um cigarro qual das malhas se encontrava mais próxima de um prego que nunca cheguei a perceber onde estava, que nunca vi. Insultavam-me. O Zé Rabo estava possesso comigo, enervava-se...
Tive de me raspar assim que pude. Deixaram-me ir. Pudera! Devem ter ficado tão aliviados como eu...
Preferi voltar ao círculo feminino, arrulhando, terno, em torno do recém-nascido. Que, por um breve lapso de tempo, até bonito me pareceu!
Esse curto tempo em que tudo parece agradável e sorridente tem, por isso mesmo, de ser pretexto para festejos e danças. Nos próximos dez anos, pelo menos para os pais, acabaram-se os festejos e a dança é outra!
Nesta base - festejar a pausa que nunca mais voltará - fomos no fim-de-semana a Alverca distribuir uns beijos por um recém-nascido e respectiva família.
Chegados, vimos a menina a dormir docemente. Olhámo-la, enternecidos, trocámos ideias tontas sobre as semelhanças com outros parentes, escondendo caridosamente algumas semelhanças perturbadoras que por acaso pudéssemos ter também detectado.
E, depois, na confusão, fui arrebatado pelo jovem pai e pelo jovem avô para uma taberna de Alverca, onde - a mim, que vinha mal refeito de uma inclemente gripe que atacara com medicação feroz - para uma taberna de Alverca onde, dizia eu, me obrigaram a comer ovos cozidos e a beber uma série de «mines».
«Mas não haverá, não sei, hum, por exemplo uma sanduíche?, apetecia-me uma sanduíche, ou então...», insinuava-me eu a medo, com as pernas ainda doloridas da doença.
Não. Uma taberna não é o Ritz, lembrou-me alguém certeiramente. Ovos e mines.
Sequentemente, tornaram a pegar em mim (que pouca resistência estava capaz de oferecer), e enfiaram-me numa espécie de campeonato de malha, jogo de que não sei absolutamente coisa alguma. Avesso a que me considerem «snob», ciente de que nenhum lema é tão adequado como «Em Roma sê romano», aceitei pôr-me a jogar àquele jogo, com a mesma imprudência e a mesma irresponsabilidade com que uma criança chamada ao quadro, numa aula de matemática, em vez de confessar que não pesca absolutamente nada do assunto, optasse por «resolver» o problema escrevendo por ali uns quaisquer números, absurda e aleatória, mas convictamente. (O que também já me aconteceu!)
Formavam-se equipas renhidas, com tipos de nomes como o Chico Damas, o Preto e o Coxo. E, bruscamente, começou tudo: vi-me apanhado num coro de gritos, num entusiasmo ensurdecedor, com palavras que não percebia, relativamente àquele desporto que, afinal, tinha mais regras do que me parecera. «Truco», dizia um. Acho que era isso. Mas aquilo tinha um significado pré-determinado e, com base nesse grito, fazia-se uma operação demasiado rápida para mim, a partir da qual, de repente, ele me vencia.
Discordava-se. Media-se com um cigarro qual das malhas se encontrava mais próxima de um prego que nunca cheguei a perceber onde estava, que nunca vi. Insultavam-me. O Zé Rabo estava possesso comigo, enervava-se...
Tive de me raspar assim que pude. Deixaram-me ir. Pudera! Devem ter ficado tão aliviados como eu...
Preferi voltar ao círculo feminino, arrulhando, terno, em torno do recém-nascido. Que, por um breve lapso de tempo, até bonito me pareceu!
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