sexta-feira, outubro 17, 2008

A RECONVERSÃO

A vida não lhe corria bem: os efeitos da crise económica abriam rachas nas menores porções do seu dia-a-dia familiar e profissional. Tudo eram ralhos, dramas, nervos; tudo eram crises e choro; tudo eram contas que rabiscava obssessivamente em folhas reaproveitadas de papel (um talão do multibanco, uma conta da EDP), com um lápis muito comido, muito velhinho.

A casa, então, era um sorvedouro: bonita e grande por fora, com um quintalinho onde plantava couves que faziam as invejas dos vizinhos mas, por dentro, quem diria?, como numa brutal metáfora do estado da sua vida, tudo eram manchas de humidade avançando, alastrando, formando formas trocistas, enormes bocas escancaradas, ou rindo ou para o devorar...

Entrou na casa de banho, madrugada fria, pensando, ou melhor, chorando-se no pensamento. Tomou um duche rápido. Com água fria. E preparou-se para cortar as unhas dos pés - aí estava um aspecto da higiene, pelo menos, que não lhe saía caro...

E, com o pé direito assente sobre o tampo da sanita, atacava já com o corta-unhas quando...
Contou seis dedos. Seis!
Não podia ser. Duas explicações possíveis, uma de duas hipóteses: ou estava a sonhar - era um sonho, e então talvez tudo fosse um sonho, talvez a crise económica fizesse também parte do mesmo horroroso pesadelo...
Ou, mais simplesmente, enganara-se. Contara mal, atabalhoada e nervosamente.
Tornou a contar: seis dedos. Indiscutível: seis, seis, seis. Contou ainda: seis. Seis.
Pousou, nervosamente, o pé direito no chão, assentou o esquerdo sobre o tampo da sanita. Seis dedos, igualmente.
(CONTINUA)

1 comentário:

zorbas disse...

Eu próprio ando alarmado com o que vejo e oiço, mas "seis dedos"(?!), e ainda por cima com as unhas para cortar...
Por favor continua depressa a narrativa, que os meus níveis de ansiedade não auguentam mais.