Tinha jurado à minha pessoa que traçaria uma clara fronteira entre o conteúdo deste meu blogue e o exercício da profissão que exerço. Política cabe aqui bem, vida familiar - que é, aliás, uma forma de política, com revoluções e rápidas mudanças de breves democracias para longas ditaduras... entre irrupções de anarquia a torto e a direito - também cabe, ou comentário sobre cinema e literatura: profissão é que não, vá-se lá saber porquê.
No entanto, tenho de reconhecer que a maioria das histórias mais pitorescas que sofro se passam comigo na minha qualidade de professor. E portanto, como todas as regras, também esta não faz sentido se eu a não quebrar sempre que haja um motivo mais forte do que ela...
Para inclusão num conjunto de actividades ligadas ao Humor que, ao longo de uma semana, constituiriam a Semana do Humor (O Humor Vem à Escola), decidi convidar o brilhantíssimo A. T., actor, realizador e contador de engraçadíssimas histórias populares...
Combinei com ele que o iria buscar ao comboio, a Algés, às duas e meia, de forma a chegarmos à escola às três, hora aprazada - e anunciadíssima - para o início da sua sessão.
Por volta da uma hora, recebo um telefonema. «Vou chegar um pouco atrasado. Não te plantes em Algés às duas e meia: eu telefono-te quando estiver a chegar...»
Devo confessar que tenho, precisamente, um problema psicológico em relação às horas. Sou o tal que uma vez combinou ir a casa de um professor ao meio-dia e, chegando ao local às onze horas, ficou a dar voltas ao bairro de modo a poder, exactamente ao meio-dia, estar a com o dedo sobre a campaínha da porta. Aberta seguidamente pelo senhor, que me sorria, um pouco perplexo: «Gil Duarte! Mas isto é pontualidade britânica...»
Portanto, o telefonema de A. não me acalmou. E, ansioso como sou, precisamente às duas e meia, contra as indicações, lá me «plantei em Algés» esperando por novidades.
Eram duas e trinta e cinco e nada, duas e quarenta e nada. Passavam alguns pretos, mas nada do meu preto!
Eram dez para as três e nada.
O tempo apertava-se. Sentia um nó no estômago: devia ser o tempo a esmagar-me.
Às três horas, comecei a imaginar, na escola, os professores e os alunos que se preparavam para assistir à sessão, sentando-se, tossicando, conversando animadamente com o colega do lado.
Às três e cinco, nada de telefonema.
Às três e dez, já só imaginava as primeiras impaciências, o desgosto de professores a quem eu pedira que não dessem a sua aula para poderem estar antes presentes com a turma: que fossem antes ver e ouvir o magnífico A.T.
Às três e quinze, telefonei-lhe: tinha o telemóvel desligado.
Às três e vinte já só me povoavam a cabeça imagens de revolta, alunos gritando, pessoas pateando, livros sendo arremessados, todos insultando-me mentalmente, todos cortando mentalmente relações comigo...
Às três e trinta e cinco, recebo um telefonema de A.: que sabia que estava atrasado; que se encontrava ainda em Lisboa; que já não ia a Algés; que se metia num táxi e seguia directamente para a escola. Que, aliás, já estava no táxi. Que eu lhe desse a morada.
E, no meio da atrapalhação, dos nervos, gaguejando muito, pedi-lhe que informasse o senhor taxista que fosse então, por favor, ter à Escola Secundária de Linda-a-velha, vagamente não muito longe do Pingo-doce.
E, acrescento, subitamente lúcido: «Rua Luísa Todi. É na rua Luísa Todi».
Desligamos. Falo para alguém que, na escola, me possa dizer qualquer coisa sobre a situação: os alunos estão a aguentar, respondem-me, os professores tomam café, mas, perguntam-me, que se passa, está tudo bem?
Explico que o senhor se meteu num táxi e segue já. Assalta-me uma dúvida:
«A escola é na rua Luísa Todi não é?»
Não era. Não é. A Escola Secundária de Linda-a-velha está, desde há muitos anos, na mesma Rua Carolina Michaëlis de sempre...
Quero tornar a entrar em contacto com o A. Já não lhe encontro o número. Peço, por favor, a alguém da escola que lhe telefone e faça a correcção.
De toda esta história, interessa a conclusão:
A. T. chegou. Atrasado é dizer pouco. Principiou a falar. Espirravam os primeiros risos. Depois, gargalhadas. Falou ininterruptamente durante mais de uma hora, criando permanentemente, em torno, aquele delicioso ruído do riso colectivo.
A. T., como sempre, foi brilhante. Brilhante!
domingo, abril 26, 2009
quinta-feira, abril 23, 2009
quinta-feira, abril 16, 2009
segunda-feira, abril 13, 2009
GRAN TORINO
Uma grande obra - seja um romance ou um poema, uma pintura ou, como é aqui o caso, um filme - não é necessariamente uma obra isenta de erros, mas uma que, na visão de conjunto que instaura, no todo que é, consegue que a própria grandeza torne perfeitamente irrelevantes todos os seus erros. Diria que uma obra-prima precisa de falhas para se medir com elas: é grande na medida em que lhes sobrevive, as torna esquecíveis, as converte em pormenores que nada do essencial diminuem.
Gran Torino tem erros: desde o início, o óbvio tende a impor-se demasiado. Considero quase uma desconsideração, por exemplo, que o protagonista, Kowalski, um velho e intratável norte-americano de origem polaca, que nunca conseguiu compreender ou ser compreendido pelos filhos e pelas famílias que estes constituíram, agarrado a uma solitária autonomia desabridamente reforçada pelo que ele percepciona como a invasão do seu bairro por grupos de vizinhos das mais diversas etnias, precise de manter aquela espécie de solilóquio permanente, que pode ir do rosnar até uma série de frases que permitem, ao espectador, ir-se inteirando dos seus preconceitos, dos seus estados de alma, das suas raivas; do mesmo modo, todos os pequenos diálogos entre outras personagens - como o dos dois filhos, na igreja, ou entre um dos filhos e a esposa, no seu jipe «japonês» - enfermam do mesmo vício: percebe-se que se trata de ir, de forma pouco subtil, informando o espectador, apresentando-lhe os dados com que interpretará os caracteres em jogo.
As improbabilidades abundam. Por muito que Clint Eastwood queira assumir o papel de um homem idoso mas extremamente duro, duvidamos sempre do fundamento da sua capacidade para impor respeito a um gang - mesmo de pistola em punho - ou, pior ainda, para tirar da casa para fora, a murro, um jovem e possante elemento de um outro gang. Afinal, já não se trata de Dirty Harry, mas de um homem no fim da linha.
Também a ironia poética daquela sala de espera carregada de pacientes, todos eles indianos, chineses ou negros, antecâmara do anúncio proferido pela trágica profetiza do destino, precisamente uma médica chinesa, padece do mesmo tipo de excessiva linearidade. (E não é verdade que, paradoxalmente, se trata, nessa sua mesma simplicidade, de uma cena muito, muito bela e muito, muito eficaz? Importará então, realmente, que não satisfaça de imediato o nosso desejo de complexidade...?)
Poderíamos prosseguir, quase indefinidamente, a enumeração de pormenores menos convincentes, mas para quê? A partir de certo momento, nenhuma dessas falhas, essas superficialidades, essas formas fáceis e óbvias de simbolizar ou exibir tem a menor importância: porque o filme voou sobre todos os pormenores, bons ou maus, que o vão construindo como uma história perfeita: uma tragédia acerca de como, numa América rasgada entre culturas que colidem, o que importa - e faz toda a diferença - é o espaço que sobra ou se conquista para a liberdade.
Liberdade como derradeira resistência ao que o meio determina que sejamos; liberdade como ponto de fuga a todas as programações que a tradição-e-a-vida-e-os-obstáculos-e-a-aparente-ausência-de-saídas se unem para nos impor. Pode alguém como Thao não se tornar um futuro gangster, quando tudo o condiciona e empurra? Não parece provável. É, contudo, possível. Pode alguém como Kowalski, mais do que aprender a conviver com os seus vizinhos estrangeiros (questão menor), escolher, numa situação limite, inesperadamente? Optar de outro modo: como em princípio ninguém se lembraria...? Procurar ainda uma alternativa que não seja a imediata, a oferecida, a ou uma das pré-determinadas? Nem a vingança nem a indiferença? Não parece provável. Mas que é possível, que é sempre possível uma diferente maneira, um imprevisível caminho resgatador e regenerador , será, porventura, o grande trunfo e o grande segredo desta pastoral americana (para retomar a ironia de um título conhecido). É, portanto, em tudo, o contrário da escolha fascizante de um Dirty Harry. (Mas será ainda justo, depois de uma sucessão de realizações maiores, que um filme de Clint Eastwood traga, ainda que invertendo-o, o peso - ou o contrapeso - desse polícia arruaceiro que lhe marcou o início da carreira?)
Gran Torino, nome também aparentemente mal escolhido, que só ao vermos o filme percebemos que nunca poderia ser outro - é o nome matematicamente exacto - simboliza ainda, por fim (uma vez mais, demasiado linearmente? Sei lá...) esse mesmo ponto de fuga e de liberdade a que uma leitora minha chamava, há muito tempo, a «possibilidade improvável»...
Gran Torino tem erros: desde o início, o óbvio tende a impor-se demasiado. Considero quase uma desconsideração, por exemplo, que o protagonista, Kowalski, um velho e intratável norte-americano de origem polaca, que nunca conseguiu compreender ou ser compreendido pelos filhos e pelas famílias que estes constituíram, agarrado a uma solitária autonomia desabridamente reforçada pelo que ele percepciona como a invasão do seu bairro por grupos de vizinhos das mais diversas etnias, precise de manter aquela espécie de solilóquio permanente, que pode ir do rosnar até uma série de frases que permitem, ao espectador, ir-se inteirando dos seus preconceitos, dos seus estados de alma, das suas raivas; do mesmo modo, todos os pequenos diálogos entre outras personagens - como o dos dois filhos, na igreja, ou entre um dos filhos e a esposa, no seu jipe «japonês» - enfermam do mesmo vício: percebe-se que se trata de ir, de forma pouco subtil, informando o espectador, apresentando-lhe os dados com que interpretará os caracteres em jogo.
As improbabilidades abundam. Por muito que Clint Eastwood queira assumir o papel de um homem idoso mas extremamente duro, duvidamos sempre do fundamento da sua capacidade para impor respeito a um gang - mesmo de pistola em punho - ou, pior ainda, para tirar da casa para fora, a murro, um jovem e possante elemento de um outro gang. Afinal, já não se trata de Dirty Harry, mas de um homem no fim da linha.
Também a ironia poética daquela sala de espera carregada de pacientes, todos eles indianos, chineses ou negros, antecâmara do anúncio proferido pela trágica profetiza do destino, precisamente uma médica chinesa, padece do mesmo tipo de excessiva linearidade. (E não é verdade que, paradoxalmente, se trata, nessa sua mesma simplicidade, de uma cena muito, muito bela e muito, muito eficaz? Importará então, realmente, que não satisfaça de imediato o nosso desejo de complexidade...?)
Poderíamos prosseguir, quase indefinidamente, a enumeração de pormenores menos convincentes, mas para quê? A partir de certo momento, nenhuma dessas falhas, essas superficialidades, essas formas fáceis e óbvias de simbolizar ou exibir tem a menor importância: porque o filme voou sobre todos os pormenores, bons ou maus, que o vão construindo como uma história perfeita: uma tragédia acerca de como, numa América rasgada entre culturas que colidem, o que importa - e faz toda a diferença - é o espaço que sobra ou se conquista para a liberdade.
Liberdade como derradeira resistência ao que o meio determina que sejamos; liberdade como ponto de fuga a todas as programações que a tradição-e-a-vida-e-os-obstáculos-e-a-aparente-ausência-de-saídas se unem para nos impor. Pode alguém como Thao não se tornar um futuro gangster, quando tudo o condiciona e empurra? Não parece provável. É, contudo, possível. Pode alguém como Kowalski, mais do que aprender a conviver com os seus vizinhos estrangeiros (questão menor), escolher, numa situação limite, inesperadamente? Optar de outro modo: como em princípio ninguém se lembraria...? Procurar ainda uma alternativa que não seja a imediata, a oferecida, a ou uma das pré-determinadas? Nem a vingança nem a indiferença? Não parece provável. Mas que é possível, que é sempre possível uma diferente maneira, um imprevisível caminho resgatador e regenerador , será, porventura, o grande trunfo e o grande segredo desta pastoral americana (para retomar a ironia de um título conhecido). É, portanto, em tudo, o contrário da escolha fascizante de um Dirty Harry. (Mas será ainda justo, depois de uma sucessão de realizações maiores, que um filme de Clint Eastwood traga, ainda que invertendo-o, o peso - ou o contrapeso - desse polícia arruaceiro que lhe marcou o início da carreira?)
Gran Torino, nome também aparentemente mal escolhido, que só ao vermos o filme percebemos que nunca poderia ser outro - é o nome matematicamente exacto - simboliza ainda, por fim (uma vez mais, demasiado linearmente? Sei lá...) esse mesmo ponto de fuga e de liberdade a que uma leitora minha chamava, há muito tempo, a «possibilidade improvável»...
quinta-feira, abril 09, 2009
DESVENTURAS DE UM HUMORISTA COBARDOLA
O meu humor é um animal perverso e neurótico. Como eu próprio. E se, no humor bem conseguido, se trata sempre de um equilíbrio entre o racional e o irracional, então, no caso destes dois animais (eu e o meu humor), o mínimo que se deve dizer é que o equilíbrio tende a revelar-se bastante desequilibrado.
Às vezes, saem-me frases catastróficas. Depois, arrependo-me. Na altura, só consigo perceber a graça da matéria: que fira, ou que choque, ou que estrague, tudo são, infelizmente, consequências que não prevejo, situadas para além do que sou capaz de visualizar no momento em que me faço de engraçadinho...
Por exemplo, no blogue de uma amiga (clique aqui) fazia-se alusão ao alter-ego de diversos caixas-de-óculos. O que se dizia (para quem não tenha clicado ali) era, basicamente, e numa discreta alusão a um post meu, que alguns caixas-de-óculos conhecidos (como o Clark Kent, o Peter Parker etc.) são nada mais nada menos do que... autênticos super-heróis.
Alguém, num comentário, sugeria à autora que fizesse o favor de retirar da lista o «palonço do Homem-Aranha!»
E, num gesto de uma agressividade triste e gratuita, insinuei que o autor daquela comentário tinha de ser um caixa-de-óculos totó cujo alter-ego seria um caixa-de-óculos ainda mais totó. (Bem, foi levemente mais do que uma «insinuação»: foi isto mesmo que acabaram de ler o que literalmente eu escrevi!). A ideia, em si, temos de concordar, tem alguma graça. Pelo menos, pareceu-me... parecia-me...!
Muito mais tarde, caí em mim. Muito mais tarde. À noite, mais precisamente, tive um pesadelo que ainda agora me causa arrepios. No horroroso sonho, Angel, super-heroína e autora do post sobre os caixas-de-óculos, insistia, num telefonema seco, em que eu me fosse encontrar com ela a um café, onde me esperava uma surpresa. A surpresa era, tchan-tchan, o seu irmão (e a sua mãe), sendo que o irmão, que no meu sonho envergava um kispo azul e vinha de canadianas por causa de uma perna engessada, era precisamente o autor do dito comentário. (Talvez Freud nos ensinasse que a perna fracturada funcionava como subtil referência aos danos que o meu comentário ao seu comentário teriam provocado).
Do que eu enevoadamente consigo recordar, o senhor estava empenhado em bater-me com uma das canadianas, perante o veemente aplauso da mãe e da irmã.
Escusado será acrescentar que acordei perlado em suor, com o telemóvel na mão, teclando uma nervosa mensagem à minha amiga Angel no sentido de que, se ela achasse que o autor do comentário fosse pessoa «ofendidiça», capaz de reagir mal ao «meu comentário sobre o seu comentário», pois que o eliminasse.
E, para que não restassem quaisquer equívocos, esclarecia: «Eliminar o meu comentário, não eliminar o teu irmão!»
Às vezes, saem-me frases catastróficas. Depois, arrependo-me. Na altura, só consigo perceber a graça da matéria: que fira, ou que choque, ou que estrague, tudo são, infelizmente, consequências que não prevejo, situadas para além do que sou capaz de visualizar no momento em que me faço de engraçadinho...
Por exemplo, no blogue de uma amiga (clique aqui) fazia-se alusão ao alter-ego de diversos caixas-de-óculos. O que se dizia (para quem não tenha clicado ali) era, basicamente, e numa discreta alusão a um post meu, que alguns caixas-de-óculos conhecidos (como o Clark Kent, o Peter Parker etc.) são nada mais nada menos do que... autênticos super-heróis.
Alguém, num comentário, sugeria à autora que fizesse o favor de retirar da lista o «palonço do Homem-Aranha!»
E, num gesto de uma agressividade triste e gratuita, insinuei que o autor daquela comentário tinha de ser um caixa-de-óculos totó cujo alter-ego seria um caixa-de-óculos ainda mais totó. (Bem, foi levemente mais do que uma «insinuação»: foi isto mesmo que acabaram de ler o que literalmente eu escrevi!). A ideia, em si, temos de concordar, tem alguma graça. Pelo menos, pareceu-me... parecia-me...!
Muito mais tarde, caí em mim. Muito mais tarde. À noite, mais precisamente, tive um pesadelo que ainda agora me causa arrepios. No horroroso sonho, Angel, super-heroína e autora do post sobre os caixas-de-óculos, insistia, num telefonema seco, em que eu me fosse encontrar com ela a um café, onde me esperava uma surpresa. A surpresa era, tchan-tchan, o seu irmão (e a sua mãe), sendo que o irmão, que no meu sonho envergava um kispo azul e vinha de canadianas por causa de uma perna engessada, era precisamente o autor do dito comentário. (Talvez Freud nos ensinasse que a perna fracturada funcionava como subtil referência aos danos que o meu comentário ao seu comentário teriam provocado).
Do que eu enevoadamente consigo recordar, o senhor estava empenhado em bater-me com uma das canadianas, perante o veemente aplauso da mãe e da irmã.
Escusado será acrescentar que acordei perlado em suor, com o telemóvel na mão, teclando uma nervosa mensagem à minha amiga Angel no sentido de que, se ela achasse que o autor do comentário fosse pessoa «ofendidiça», capaz de reagir mal ao «meu comentário sobre o seu comentário», pois que o eliminasse.
E, para que não restassem quaisquer equívocos, esclarecia: «Eliminar o meu comentário, não eliminar o teu irmão!»
QUE SIGNIFICA «PAIZAR»?
A resposta à pergunta enunciada no título dá-se numa única linha: «paizar» significa ser pai da Daisy e do Dudu.
Às vezes, perguntam-me que faço quando não «paizo», ou seja, durante as folgas que me caibam na tarefa de tomar conta dos meus filhos.
Gosto de dar a resposta politicamente correcta: Ah, e tal, quando não estou com eles, e tal, dedico-me a desejar estar novamente com eles.
Claro que não é sincero. A resposta certa seria: «Quando não estou com eles, dedico-me a planear malfeitorias para tortura de quem me faça uma pergunta tão difícil». Mas a resposta ainda mais certa, a definitiva, seria: «Quando não estou com eles, caio imediatamente a dormir!»
O problema nunca é quando não estou com eles. Parece óbvio. O problema é: quando estou com eles.
E o que eu faço nessas ocasiões é, em geral, gritar.
Claro que não acho bem fazê-lo amiúde. E, mesmo não sendo crente, peço muitas vezes a Deus que me dê forças para ter paciência e não desatar aos gritos com os petizes. A oração completa, aliás, é assim: «Dá-me forças, Deus meu, para não gritar com estas crianças! Mas não precisas de te apressar. Deixa-me só dar, primeiro, uns gritos...»
Em certas ocasiões, é maravilhoso estar com os meus filhos. Ocorre sempre que estão a dormir. Contemplar aqueles rostos calmos, na penumbra, vê-los tapadinhos até ao queixo, aspirar o silêncio da casa, revitaliza-me, rejuvenesce-me.
Perguntam-me: estás a ser irónico, não estás? É um texto exagerado, não é? Uma caricatura, pois sim?
Claro que exagero. Há muitos outros momentos em que adoro estar com eles. Por exemplo, mesmo quando estão a dormir sem estarem tapados até ao queixo...
Às vezes, perguntam-me que faço quando não «paizo», ou seja, durante as folgas que me caibam na tarefa de tomar conta dos meus filhos.
Gosto de dar a resposta politicamente correcta: Ah, e tal, quando não estou com eles, e tal, dedico-me a desejar estar novamente com eles.
Claro que não é sincero. A resposta certa seria: «Quando não estou com eles, dedico-me a planear malfeitorias para tortura de quem me faça uma pergunta tão difícil». Mas a resposta ainda mais certa, a definitiva, seria: «Quando não estou com eles, caio imediatamente a dormir!»
O problema nunca é quando não estou com eles. Parece óbvio. O problema é: quando estou com eles.
E o que eu faço nessas ocasiões é, em geral, gritar.
Claro que não acho bem fazê-lo amiúde. E, mesmo não sendo crente, peço muitas vezes a Deus que me dê forças para ter paciência e não desatar aos gritos com os petizes. A oração completa, aliás, é assim: «Dá-me forças, Deus meu, para não gritar com estas crianças! Mas não precisas de te apressar. Deixa-me só dar, primeiro, uns gritos...»
Em certas ocasiões, é maravilhoso estar com os meus filhos. Ocorre sempre que estão a dormir. Contemplar aqueles rostos calmos, na penumbra, vê-los tapadinhos até ao queixo, aspirar o silêncio da casa, revitaliza-me, rejuvenesce-me.
Perguntam-me: estás a ser irónico, não estás? É um texto exagerado, não é? Uma caricatura, pois sim?
Claro que exagero. Há muitos outros momentos em que adoro estar com eles. Por exemplo, mesmo quando estão a dormir sem estarem tapados até ao queixo...
segunda-feira, abril 06, 2009
VELHICE
Claro, caramba!, que também não é caso para se ver o envelhecimento propriamente como um drama. É uma tragédia.
Mas caso, amigo leitor, estas palavras lhe parecem cruéis, pessimistas e, portanto, politicamente incorrectas, sempre posso esclarecê-las melhor: não é a velhice em si que me preocupa. É a velhice em mim.
Dou incontornavelmente de caras com ela, com a velhice em mim, quando a oftalmologista me aconselha uns óculos com janelinhas para ver ao perto. Ou seja, uns óculos para ver ao longe com janelinhas por onde devo olhar quando estiver, por exemplo, a ler. O que é sempre complicado. Imaginem a situação em que eu tenha de olhar bem de frente, olhos nos olhos, uma pessoa próxima - seja um inimigo que se prepara para investir, seja a mulher amada que se prepara para investir...
Bem! Aparentemente, terei então de baixar os olhos (e não alinhá-los numa linha recta com o olhar de quem me olha), de forma a que os nossos olhares se enfrentem, sim, mas enquadrados nas minhas janelinhas...
Mas não, nem foi tanto essa proposta o que mais me incomodou: mas a maneira como a rapariga, muito novinha, me tratava.
«Bem, senhor Duarte, então vamos lá espreitar para esse olhinho, sim? Hmm, estou a ver. Tem de descansar a vistinha, senhor Duarte. Sabe o que lhe está a contecer? Eu já lhe digo, tenho ali uns bonecos muito bonitos que explicam tudo!»
E, de repente, já não tenho mãos, tenho mãozinhas, não tenho queixo, tenho queixinho, ou testinha: «Encoste o queixinho e a testinha neste aparelho, sim, senhor Duarte, vá lá!»
E enquanto eu recusava, num assomo serôdio de dignidade, numa réstea atrasada de juventude, os óculos de lentes progressivas, a menina insistia cada vez nas suas inúmeras vantagens.
Estive quase para lhe perguntar: «Mas para diabo que insiste? Há alguma promoção com a idade, é?»
Mas caso, amigo leitor, estas palavras lhe parecem cruéis, pessimistas e, portanto, politicamente incorrectas, sempre posso esclarecê-las melhor: não é a velhice em si que me preocupa. É a velhice em mim.
Dou incontornavelmente de caras com ela, com a velhice em mim, quando a oftalmologista me aconselha uns óculos com janelinhas para ver ao perto. Ou seja, uns óculos para ver ao longe com janelinhas por onde devo olhar quando estiver, por exemplo, a ler. O que é sempre complicado. Imaginem a situação em que eu tenha de olhar bem de frente, olhos nos olhos, uma pessoa próxima - seja um inimigo que se prepara para investir, seja a mulher amada que se prepara para investir...
Bem! Aparentemente, terei então de baixar os olhos (e não alinhá-los numa linha recta com o olhar de quem me olha), de forma a que os nossos olhares se enfrentem, sim, mas enquadrados nas minhas janelinhas...
Mas não, nem foi tanto essa proposta o que mais me incomodou: mas a maneira como a rapariga, muito novinha, me tratava.
«Bem, senhor Duarte, então vamos lá espreitar para esse olhinho, sim? Hmm, estou a ver. Tem de descansar a vistinha, senhor Duarte. Sabe o que lhe está a contecer? Eu já lhe digo, tenho ali uns bonecos muito bonitos que explicam tudo!»
E, de repente, já não tenho mãos, tenho mãozinhas, não tenho queixo, tenho queixinho, ou testinha: «Encoste o queixinho e a testinha neste aparelho, sim, senhor Duarte, vá lá!»
E enquanto eu recusava, num assomo serôdio de dignidade, numa réstea atrasada de juventude, os óculos de lentes progressivas, a menina insistia cada vez nas suas inúmeras vantagens.
Estive quase para lhe perguntar: «Mas para diabo que insiste? Há alguma promoção com a idade, é?»
domingo, abril 05, 2009
ENSAIO SOBRE A NEUROSE
Sempre achara curioso e entusiasmante o facto de ter uma tia mais nova do que ele.
Hoje, iria conhecê-la.
Tinha pena de que o tempo fosse tão curto, atendendo a que:
a) havia que deixar o pai, muito idoso e tremente, mais as três dezenas de comprimidos de cores variadas, na casa da senhora marquesa, que não prescindia da sua visita - na verdade, era a senhora quem visitava o velhinho doente: só que, tratando-se de uma marquesa, insistia em que fosse o idoso a deslocar-se à sua residência...
b) seguidamente, encontrar-se-ia com a tia para a conhecer mas que, depois, cerca de três quartos de hora mais tarde, teria de:
c) conduzir ao aeroporto - mas tendo, entretanto, passado de novo pela casa da senhora marquesa, aonde iria buscar o pai.
Uma vez no aeroporto, a tia mais nova do que ele, seu sobrinho, dir-lhe-ia adeus e rumaria para as antípodas. Que diacho: ser sobrinho mais velho do que uma tia que vivia nas antípodas de si.
No plano confuso, mal enjorcado, só a custo conseguindo prever as demoras do pai, primeiro a sair do carro, muito tremente, e a seguir, três quartos de hora mais tarde, reentrando no carro, sempre muito tremente, nesse plano fazia-lhe particular impressão ter de contar com este pormenor: existia um traço contínuo que o impedia de fazer a manobra que mais lhe convinha para chegar à casa da marquesa: em vez disso, tinha de seguir mais quase uns cinco ou seis minutos até ao fim da rua para, contornando a rotunda, voltar para trás e, em sentido contrário poder, finalmente, virar para a ruazinha da senhora marquesa. Cinco ou seis minutos desperdiçados!
Chegaram. O pai saiu. «Leva os remédios, pai?». Não lhe respondeu. Também não esperara resposta, tinha perguntado porque sim. O mordomo ajudava o senhor. Margarida, de carrapito e avental branco sobre o vestido negro, ajudava-o, do outro lado. E, sem se preocupar mais, disparou.
A sua tia era uma repariga de dezanove anos. Tímida. De cabeça baixa. Olhava-o de soslaio. Falava pouco, com a pronúncia típica das antípodas. Ofereceu-lhe chá. Ele não se sentia bem pelo facto de estar constantemente a olhar para o relógio de pulso, como certos médicos já esgotados com a persistência de alguns pacientes demasiado faladores. Mas não tinha alternativa. Mais do que o pai, havia o pormenor da traço contínuo,do desvio pela rotunda. Cinco minutos. Se fosse atrás de uma lesma, como sucede frequentemente, poderia ser atraso de dez minutos.
Quando achou que era chegada a hora, advertiu-a. A tia levava poucas malas. Carregou-as, com a ajuda do porteiro, um senhor com dedos amarelos de nicotina e hálito de urso.
Entraram no carro. Voou.
Levou quase um quarto de hora até à malfadada rotunda, porque houvera um acidente e se formara uma pequena fila. Refreava-se, diante da tia, para não buzinar, para não olhar para as horas, para não gritar impropérios. Suava abundantemente, martelava, nervoso, com o pé sobre o pedal, tamborilava na mudança.
Feita a rotunda, já à vista da casa da marquesa, reparou na criada Margarida, que corria em direcção ao carro, acenando muito.
«O seu pai, senhor Donato. O seu pai. O seu pai morreu!»
Deu um suspiro de alívio: poupava uns minutos com a entrada do pai no carro.
Seguiu em direcção ao aeroporto.
Hoje, iria conhecê-la.
Tinha pena de que o tempo fosse tão curto, atendendo a que:
a) havia que deixar o pai, muito idoso e tremente, mais as três dezenas de comprimidos de cores variadas, na casa da senhora marquesa, que não prescindia da sua visita - na verdade, era a senhora quem visitava o velhinho doente: só que, tratando-se de uma marquesa, insistia em que fosse o idoso a deslocar-se à sua residência...
b) seguidamente, encontrar-se-ia com a tia para a conhecer mas que, depois, cerca de três quartos de hora mais tarde, teria de:
c) conduzir ao aeroporto - mas tendo, entretanto, passado de novo pela casa da senhora marquesa, aonde iria buscar o pai.
Uma vez no aeroporto, a tia mais nova do que ele, seu sobrinho, dir-lhe-ia adeus e rumaria para as antípodas. Que diacho: ser sobrinho mais velho do que uma tia que vivia nas antípodas de si.
No plano confuso, mal enjorcado, só a custo conseguindo prever as demoras do pai, primeiro a sair do carro, muito tremente, e a seguir, três quartos de hora mais tarde, reentrando no carro, sempre muito tremente, nesse plano fazia-lhe particular impressão ter de contar com este pormenor: existia um traço contínuo que o impedia de fazer a manobra que mais lhe convinha para chegar à casa da marquesa: em vez disso, tinha de seguir mais quase uns cinco ou seis minutos até ao fim da rua para, contornando a rotunda, voltar para trás e, em sentido contrário poder, finalmente, virar para a ruazinha da senhora marquesa. Cinco ou seis minutos desperdiçados!
Chegaram. O pai saiu. «Leva os remédios, pai?». Não lhe respondeu. Também não esperara resposta, tinha perguntado porque sim. O mordomo ajudava o senhor. Margarida, de carrapito e avental branco sobre o vestido negro, ajudava-o, do outro lado. E, sem se preocupar mais, disparou.
A sua tia era uma repariga de dezanove anos. Tímida. De cabeça baixa. Olhava-o de soslaio. Falava pouco, com a pronúncia típica das antípodas. Ofereceu-lhe chá. Ele não se sentia bem pelo facto de estar constantemente a olhar para o relógio de pulso, como certos médicos já esgotados com a persistência de alguns pacientes demasiado faladores. Mas não tinha alternativa. Mais do que o pai, havia o pormenor da traço contínuo,do desvio pela rotunda. Cinco minutos. Se fosse atrás de uma lesma, como sucede frequentemente, poderia ser atraso de dez minutos.
Quando achou que era chegada a hora, advertiu-a. A tia levava poucas malas. Carregou-as, com a ajuda do porteiro, um senhor com dedos amarelos de nicotina e hálito de urso.
Entraram no carro. Voou.
Levou quase um quarto de hora até à malfadada rotunda, porque houvera um acidente e se formara uma pequena fila. Refreava-se, diante da tia, para não buzinar, para não olhar para as horas, para não gritar impropérios. Suava abundantemente, martelava, nervoso, com o pé sobre o pedal, tamborilava na mudança.
Feita a rotunda, já à vista da casa da marquesa, reparou na criada Margarida, que corria em direcção ao carro, acenando muito.
«O seu pai, senhor Donato. O seu pai. O seu pai morreu!»
Deu um suspiro de alívio: poupava uns minutos com a entrada do pai no carro.
Seguiu em direcção ao aeroporto.
HOJE AINDA VENHO COM MENOS PACIÊNCIA, DO QUE O COSTUME, PARA ERROS ROMÂNTICOS
Aos idiotas que, num assomo de pieguice democrática, continuam a repetir que «o Génio consiste em 99% de transpiração e 1% de inspiração», há que lembrar: Sim! Mas a diminuta percentagem de inspiração é que conta: é aquilo que realmente faz a diferença!
Do mesmo modo, aos que, romanticamente, se não cansam de lembrar que, na escola, Einstein fora um péssimo aluno, há que explicar: Sim! Mas nem todos os maus alunos na escola virão, forçosamente, a ser futuros Einsteins!
Do mesmo modo, aos que, romanticamente, se não cansam de lembrar que, na escola, Einstein fora um péssimo aluno, há que explicar: Sim! Mas nem todos os maus alunos na escola virão, forçosamente, a ser futuros Einsteins!
DIÁRIO DO OBSERVADOR
3 de Abril de 2057
A minha missão é peculiar. E, como os Dupondt, diria mesmo mais: trata-se de uma missão peculiar, a minha.
A frase que devo ter sempre em mente é esta: «Todas as coisas carecem de um novo passado».
Quando ouvi pronunciá-la pela primeira vez, pensei que o Mestre estivesse a dizer poesia. Pareceu-me um verso particularmente belo. O mestre tinha um copo, suponho que de Whisky, na mão muito peluda e, fazendo-o reflectir à luz do candeeiro, prosseguiu: «Este copo carece de um novo passado». Olhou em redor; apontou uma rosa numa jarra: «Esta flor precisa de um novo passado». Imbuía-me da ideia. A frase, chamemos-lhe assim, agarrou-me, primeiramente, pela sua beleza. Só mais tarde me agarrou pela minha inteligência. Ou talvez não: talvez ainda me não tenha agarrado completamente pela inteligência. Talvez ainda a não compreenda perfeitamente.
Mas estou estritamente subordinado ao protocolo que se encontra em todas as estórias de ficção científica: viajando no tempo, não tenho o poder de interferir. Recuando ao passado, não posso salvar as vítimas, ajudar os indefesos, seduzir ou deixar-me seduzir. Todos sabem que os actos de um ser futuro no passado provocariam rearranjos inesperados e, naturalmente, catastróficos.
Sou, portanto, um observador. Um mero observador. Vejo, por exemplo, o grupo de patos que pratica bullying sobre um patinho menor, sem poder espantá-los, nem levar comigo o pato que sofre as investidas dos que dele abusam.
O segredo está em que toda a observação é já, de algum modo, uma interferência. (Se têm dúvidas, perguntem ao gato). E, portanto, observando diferentemente, não actuando sobre coisa alguma, mantendo em relação a tudo a distância rigorosamente exigida, mas, repito, observando diferentemente, espero poder descobrir no emaranhado de linhas que constitui o passado, sem lhes tocar, desenhos possíveis, combinações melhores.
Do mesmo modo que posso olhar para uma pintura de Kandinsky e ver outra coisa, surpreendentemente diversa daquilo que o título sugeria, e com que se pretenderia influenciar-me o olhar.
O Mestre parece crer que é quanto basta para se conseguir, para cada uma das coisas do presente, um passado novo em folha, que as redima. Sem haver tocado em coisa alguma, sem manipular física e materialmente seja o que for.
O Mestre pode ou não estar enganado. A mim, custa muito ver os patos enormes, de bicos ferozes, praticando bullying sobre o patinho feio, e não poder intervir!
A minha missão é peculiar. E, como os Dupondt, diria mesmo mais: trata-se de uma missão peculiar, a minha.
A frase que devo ter sempre em mente é esta: «Todas as coisas carecem de um novo passado».
Quando ouvi pronunciá-la pela primeira vez, pensei que o Mestre estivesse a dizer poesia. Pareceu-me um verso particularmente belo. O mestre tinha um copo, suponho que de Whisky, na mão muito peluda e, fazendo-o reflectir à luz do candeeiro, prosseguiu: «Este copo carece de um novo passado». Olhou em redor; apontou uma rosa numa jarra: «Esta flor precisa de um novo passado». Imbuía-me da ideia. A frase, chamemos-lhe assim, agarrou-me, primeiramente, pela sua beleza. Só mais tarde me agarrou pela minha inteligência. Ou talvez não: talvez ainda me não tenha agarrado completamente pela inteligência. Talvez ainda a não compreenda perfeitamente.
Mas estou estritamente subordinado ao protocolo que se encontra em todas as estórias de ficção científica: viajando no tempo, não tenho o poder de interferir. Recuando ao passado, não posso salvar as vítimas, ajudar os indefesos, seduzir ou deixar-me seduzir. Todos sabem que os actos de um ser futuro no passado provocariam rearranjos inesperados e, naturalmente, catastróficos.
Sou, portanto, um observador. Um mero observador. Vejo, por exemplo, o grupo de patos que pratica bullying sobre um patinho menor, sem poder espantá-los, nem levar comigo o pato que sofre as investidas dos que dele abusam.
O segredo está em que toda a observação é já, de algum modo, uma interferência. (Se têm dúvidas, perguntem ao gato). E, portanto, observando diferentemente, não actuando sobre coisa alguma, mantendo em relação a tudo a distância rigorosamente exigida, mas, repito, observando diferentemente, espero poder descobrir no emaranhado de linhas que constitui o passado, sem lhes tocar, desenhos possíveis, combinações melhores.
Do mesmo modo que posso olhar para uma pintura de Kandinsky e ver outra coisa, surpreendentemente diversa daquilo que o título sugeria, e com que se pretenderia influenciar-me o olhar.
O Mestre parece crer que é quanto basta para se conseguir, para cada uma das coisas do presente, um passado novo em folha, que as redima. Sem haver tocado em coisa alguma, sem manipular física e materialmente seja o que for.
O Mestre pode ou não estar enganado. A mim, custa muito ver os patos enormes, de bicos ferozes, praticando bullying sobre o patinho feio, e não poder intervir!
quarta-feira, abril 01, 2009
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