Uma grande obra - seja um romance ou um poema, uma pintura ou, como é aqui o caso, um filme - não é necessariamente uma obra isenta de erros, mas uma que, na visão de conjunto que instaura, no todo que é, consegue que a própria grandeza torne perfeitamente irrelevantes todos os seus erros. Diria que uma obra-prima precisa de falhas para se medir com elas: é grande na medida em que lhes sobrevive, as torna esquecíveis, as converte em pormenores que nada do essencial diminuem.
Gran Torino tem erros: desde o início, o óbvio tende a impor-se demasiado. Considero quase uma desconsideração, por exemplo, que o protagonista, Kowalski, um velho e intratável norte-americano de origem polaca, que nunca conseguiu compreender ou ser compreendido pelos filhos e pelas famílias que estes constituíram, agarrado a uma solitária autonomia desabridamente reforçada pelo que ele percepciona como a invasão do seu bairro por grupos de vizinhos das mais diversas etnias, precise de manter aquela espécie de solilóquio permanente, que pode ir do rosnar até uma série de frases que permitem, ao espectador, ir-se inteirando dos seus preconceitos, dos seus estados de alma, das suas raivas; do mesmo modo, todos os pequenos diálogos entre outras personagens - como o dos dois filhos, na igreja, ou entre um dos filhos e a esposa, no seu jipe «japonês» - enfermam do mesmo vício: percebe-se que se trata de ir, de forma pouco subtil, informando o espectador, apresentando-lhe os dados com que interpretará os caracteres em jogo.
As improbabilidades abundam. Por muito que Clint Eastwood queira assumir o papel de um homem idoso mas extremamente duro, duvidamos sempre do fundamento da sua capacidade para impor respeito a um gang - mesmo de pistola em punho - ou, pior ainda, para tirar da casa para fora, a murro, um jovem e possante elemento de um outro gang. Afinal, já não se trata de Dirty Harry, mas de um homem no fim da linha.
Também a ironia poética daquela sala de espera carregada de pacientes, todos eles indianos, chineses ou negros, antecâmara do anúncio proferido pela trágica profetiza do destino, precisamente uma médica chinesa, padece do mesmo tipo de excessiva linearidade. (E não é verdade que, paradoxalmente, se trata, nessa sua mesma simplicidade, de uma cena muito, muito bela e muito, muito eficaz? Importará então, realmente, que não satisfaça de imediato o nosso desejo de complexidade...?)
Poderíamos prosseguir, quase indefinidamente, a enumeração de pormenores menos convincentes, mas para quê? A partir de certo momento, nenhuma dessas falhas, essas superficialidades, essas formas fáceis e óbvias de simbolizar ou exibir tem a menor importância: porque o filme voou sobre todos os pormenores, bons ou maus, que o vão construindo como uma história perfeita: uma tragédia acerca de como, numa América rasgada entre culturas que colidem, o que importa - e faz toda a diferença - é o espaço que sobra ou se conquista para a liberdade.
Liberdade como derradeira resistência ao que o meio determina que sejamos; liberdade como ponto de fuga a todas as programações que a tradição-e-a-vida-e-os-obstáculos-e-a-aparente-ausência-de-saídas se unem para nos impor. Pode alguém como Thao não se tornar um futuro gangster, quando tudo o condiciona e empurra? Não parece provável. É, contudo, possível. Pode alguém como Kowalski, mais do que aprender a conviver com os seus vizinhos estrangeiros (questão menor), escolher, numa situação limite, inesperadamente? Optar de outro modo: como em princípio ninguém se lembraria...? Procurar ainda uma alternativa que não seja a imediata, a oferecida, a ou uma das pré-determinadas? Nem a vingança nem a indiferença? Não parece provável. Mas que é possível, que é sempre possível uma diferente maneira, um imprevisível caminho resgatador e regenerador , será, porventura, o grande trunfo e o grande segredo desta pastoral americana (para retomar a ironia de um título conhecido). É, portanto, em tudo, o contrário da escolha fascizante de um Dirty Harry. (Mas será ainda justo, depois de uma sucessão de realizações maiores, que um filme de Clint Eastwood traga, ainda que invertendo-o, o peso - ou o contrapeso - desse polícia arruaceiro que lhe marcou o início da carreira?)
Gran Torino, nome também aparentemente mal escolhido, que só ao vermos o filme percebemos que nunca poderia ser outro - é o nome matematicamente exacto - simboliza ainda, por fim (uma vez mais, demasiado linearmente? Sei lá...) esse mesmo ponto de fuga e de liberdade a que uma leitora minha chamava, há muito tempo, a «possibilidade improvável»...
segunda-feira, abril 13, 2009
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