domingo, abril 05, 2009

ENSAIO SOBRE A NEUROSE

Sempre achara curioso e entusiasmante o facto de ter uma tia mais nova do que ele.
Hoje, iria conhecê-la.
Tinha pena de que o tempo fosse tão curto, atendendo a que:

a) havia que deixar o pai, muito idoso e tremente, mais as três dezenas de comprimidos de cores variadas, na casa da senhora marquesa, que não prescindia da sua visita - na verdade, era a senhora quem visitava o velhinho doente: só que, tratando-se de uma marquesa, insistia em que fosse o idoso a deslocar-se à sua residência...

b) seguidamente, encontrar-se-ia com a tia para a conhecer mas que, depois, cerca de três quartos de hora mais tarde, teria de:

c) conduzir ao aeroporto - mas tendo, entretanto, passado de novo pela casa da senhora marquesa, aonde iria buscar o pai.

Uma vez no aeroporto, a tia mais nova do que ele, seu sobrinho, dir-lhe-ia adeus e rumaria para as antípodas. Que diacho: ser sobrinho mais velho do que uma tia que vivia nas antípodas de si.

No plano confuso, mal enjorcado, só a custo conseguindo prever as demoras do pai, primeiro a sair do carro, muito tremente, e a seguir, três quartos de hora mais tarde, reentrando no carro, sempre muito tremente, nesse plano fazia-lhe particular impressão ter de contar com este pormenor: existia um traço contínuo que o impedia de fazer a manobra que mais lhe convinha para chegar à casa da marquesa: em vez disso, tinha de seguir mais quase uns cinco ou seis minutos até ao fim da rua para, contornando a rotunda, voltar para trás e, em sentido contrário poder, finalmente, virar para a ruazinha da senhora marquesa. Cinco ou seis minutos desperdiçados!

Chegaram. O pai saiu. «Leva os remédios, pai?». Não lhe respondeu. Também não esperara resposta, tinha perguntado porque sim. O mordomo ajudava o senhor. Margarida, de carrapito e avental branco sobre o vestido negro, ajudava-o, do outro lado. E, sem se preocupar mais, disparou.

A sua tia era uma repariga de dezanove anos. Tímida. De cabeça baixa. Olhava-o de soslaio. Falava pouco, com a pronúncia típica das antípodas. Ofereceu-lhe chá. Ele não se sentia bem pelo facto de estar constantemente a olhar para o relógio de pulso, como certos médicos já esgotados com a persistência de alguns pacientes demasiado faladores. Mas não tinha alternativa. Mais do que o pai, havia o pormenor da traço contínuo,do desvio pela rotunda. Cinco minutos. Se fosse atrás de uma lesma, como sucede frequentemente, poderia ser atraso de dez minutos.

Quando achou que era chegada a hora, advertiu-a. A tia levava poucas malas. Carregou-as, com a ajuda do porteiro, um senhor com dedos amarelos de nicotina e hálito de urso.
Entraram no carro. Voou.

Levou quase um quarto de hora até à malfadada rotunda, porque houvera um acidente e se formara uma pequena fila. Refreava-se, diante da tia, para não buzinar, para não olhar para as horas, para não gritar impropérios. Suava abundantemente, martelava, nervoso, com o pé sobre o pedal, tamborilava na mudança.

Feita a rotunda, já à vista da casa da marquesa, reparou na criada Margarida, que corria em direcção ao carro, acenando muito.
«O seu pai, senhor Donato. O seu pai. O seu pai morreu!»
Deu um suspiro de alívio: poupava uns minutos com a entrada do pai no carro.

Seguiu em direcção ao aeroporto.

1 comentário:

zorbas disse...

Deve ter surgido numa situação deste tipo a célebre expressão:"Nem o pai morre, nem a gente almoça"