Bugz viajava há muitos anos-luz pelo espaço intergaláctico.
Não tinha propriamente um objectivo: primeiro, fora feito prisioneiro por um grupo de mercadores vvvenyxianos, que pensavam vendê-lo como escravo; com grande dificuldade e alguns combates, rompendo-se todo, perdendo a cauda pelo caminho (que precisaria de muito tempo para tornar a crescer), tinha conseguido fugir, num pequeno planeta em que a nave parara para se abastecer; aceitara, depois, boleia de um grupo de komodorz, todas do sexo feminino, embora durante o tempo da viagem, com grande pena sua, não tivesse chegado a compreender a anatomia delas, nem o seu funcionamento sexual; as komodorz é que, fartas de tantas investidas, se tinham livrado dele, que, entretanto, tomou boleia de um velho humpfg, o qual, após uma vida preenchida, se dirigia para o próprio planeta natal, para morrer. Quando se separaram, Bugz decidiu jogar a recém-adquirida nave. Perdeu-a ao jogo, já na via láctea.
Esfomeado, sem alternativas, roubou uma schvaz-de-um-lugar, dourada e velocíssima, e prosseguiu a sua odisseia até um planeta azul, convidativo e sereno...
Nessa noite, dos céus, brilhando muito, como uma luz, como se fosse uma estrela (por efeito da schvaz-de-um-lugar que o transportava), Bugz assistiu a um estranho quadro de seres terrestres. Um quadro de luz e salvação.
Havia um ser maravilhoso, terno e doce, com um bafo cálido, deitado sobre uma meda de palha; tinha uma longa cauda e chifres, exactamente como as deliciosas fêmeas do seu próprio planeta; havia, a seu lado, o que, porventura, seria o seu macho, um ser de longas orelhas e dentes grandes.
Outros seres, fatigados, lentos, pareciam vir de longe, de muito longe (na perspectiva do planeta), para adorarem o casal: três criaturas amareladas, de bossas, chegavam carregando oferendas sobre o seu dorso; iam, percebia-se perfeitamente, oferecer-lhes aqueles animais ricamente vestidos, ornamentados e com coroas, que os montavam.
De outros lugares, aproximavam-se ainda outros maravilhosos seres, de quatro patinhas finas, vestindo de caracóis esbranquiçados. Também traziam, pela arreata, os seus presentes: uns animais monstruosos, só com duas pernas e dois braços, sem pêlos, a não ser no alto da cabeça e, alguns deles, com uma massa pilosa no queixo.
Aliás, no interior da gruta, dois seres dessa espécie, com duas pernas cada um, não mais, aqueciam o ser de chifres e o de longas orelhas.
Algures, sobre umas palhinhas, algo berrava. Era, com certeza, a música que se fazia naquele planeta.
Bugz sentia a alma inundada de paz.
quinta-feira, dezembro 20, 2007
quinta-feira, dezembro 13, 2007
OS ASPIRANTES A INTELECTUAIS NA POLÍTICA
É evidente que um mundo de intelectuais estaria infinitamente longe da perfeição. Sobretudo se se parecessem todos com o Pacheco Pereira. E que faríamos nós, que faria eu, sobretudo,sem um canalizador? Que faria se me obrigassem a pregar pregos?
Também me não parece imprescindível que as pessoas que se dedicam, por exemplo, à política, tenham de ser intelectuais. Para quê? Onde poríamos o Jerónimo de Sousa? Gostaríamos de um parlamento inteiramente talhado à imagem de Louçã? (Imaginem, sem desmaiar, uma série de Louçãs, da Esquerda à Direita, defendendo Causas diferentes, obviamente, até antagónicas, mas todos eles com a mesma certeza da sua razão, a mesma voz dramaticamente tensa de pessoa incapaz de relaxar e o mesmo nariz?)
O problema é outro: é que, não sendo todos, nem devendo ser todos igualmente intelectuais, os políticos poderiam, então, descobrir o seu jeito e estilo próprios, a sua natureza respectiva. Haveria o Deputado-canalizador, o Deputado-torneiro-mecânico, o Deputado-desempregado e por aí fora. Quando (perdoem-me o aparente snobismo) um político que nada tem de intelectual, como o Mendes Bota, quer por força fazer-se passar por tal, o resultado só pode ser penoso. Mendes Bota a querer convencer-nos de que é intelectual, dá bota, pela certa.
O senhor José Sócrates funciona, neste particular, como um exemplo terrível.
O convívio prolongado tem destas coisas: tendo convivido com Guterres que, diga-se o que se disser, é um homem de letras, apesar de Engenheiro (Engenheiro-a-sério), que fala com fluência e à-vontade diversas línguas, ouve música clássica, compra o Times, The Independent, Corrieri de la Sera, Le Monde e leu, em inglês, os escritos de Churchill (dos quais, aliás, tirou pouco proveito prático); tendo convivido com Durão Barroso que, diga-se o que se disser - e espero que se diga bastante mal -, é um sujeito com alguma cultura, posto que lia, na juventude, Mao Tse Tung, e que fala o seu inglês e o seu francês, José Sócrates albergou sempre o sonho secreto, inconfessado, de ser como eles.
Em mais do que uma entrevista, desatou a perorar - sempre muito a despropósito - de livros que o teriam marcado, logo a ele, tão rígido que dificilmente se deixaria marcar por um livro, a não ser que fosse uma lista telefónica caindo-lhe em cima...; em vários momentos, puxou do seu inglês técnico, incorrecto e incompetente, sem pudor nem vergonha. Em vários momentos semeou citações, procurou trepar até ao pináculo das ideias, dos debates filosóficos, da fundamentação teórica.
Não é que o não possa. Não é que, para o fazer, tenha de ser membro de um clube com uma indicação à porta, no género de: «Pessoas sem Cultura não Entram»; e não pensem que o digo por mim, como se me causasse alguma repugnância cruzar-me, num clube de intelectuais, com não-intelectuais a fingir que o são. Trata-se, para começar, de algo que eu não quero parecer de modo algum: e se não tenho remédio senão reconhecer que o sou, «tecnicamente», por ofício e formação, esclareço que não me reconheço na imagem, nem no folclore, nem, digamos, no uniforme que haveria que vestir. Retomo, aí, a deliciosa ironia de Groucho Marx: «Nunca aceitaria fazer parte de um clube que se rebaixasse a aceitar-me como sócio».
E, portanto, o que me incomoda é simplesmente o puro jogo das aparências. O faz-de-conta. O passar-se por. Sem mais.
Santana deixando-se fotografar com Le Monde Diplomatique sob o braço, ou confessando que a sua música preferida sempre foi um certo «Chopin para violino», ou Sócrates citando as obras que lia na adolescência, quando, na prática, tem quem tem no Ministério da Cultura e tem quem tem no Ministério da Educação, são coisas que não poderiam deixar de me provocar uma leve náusea.
Leve. Só. É um desabafo.
Também me não parece imprescindível que as pessoas que se dedicam, por exemplo, à política, tenham de ser intelectuais. Para quê? Onde poríamos o Jerónimo de Sousa? Gostaríamos de um parlamento inteiramente talhado à imagem de Louçã? (Imaginem, sem desmaiar, uma série de Louçãs, da Esquerda à Direita, defendendo Causas diferentes, obviamente, até antagónicas, mas todos eles com a mesma certeza da sua razão, a mesma voz dramaticamente tensa de pessoa incapaz de relaxar e o mesmo nariz?)
O problema é outro: é que, não sendo todos, nem devendo ser todos igualmente intelectuais, os políticos poderiam, então, descobrir o seu jeito e estilo próprios, a sua natureza respectiva. Haveria o Deputado-canalizador, o Deputado-torneiro-mecânico, o Deputado-desempregado e por aí fora. Quando (perdoem-me o aparente snobismo) um político que nada tem de intelectual, como o Mendes Bota, quer por força fazer-se passar por tal, o resultado só pode ser penoso. Mendes Bota a querer convencer-nos de que é intelectual, dá bota, pela certa.
O senhor José Sócrates funciona, neste particular, como um exemplo terrível.
O convívio prolongado tem destas coisas: tendo convivido com Guterres que, diga-se o que se disser, é um homem de letras, apesar de Engenheiro (Engenheiro-a-sério), que fala com fluência e à-vontade diversas línguas, ouve música clássica, compra o Times, The Independent, Corrieri de la Sera, Le Monde e leu, em inglês, os escritos de Churchill (dos quais, aliás, tirou pouco proveito prático); tendo convivido com Durão Barroso que, diga-se o que se disser - e espero que se diga bastante mal -, é um sujeito com alguma cultura, posto que lia, na juventude, Mao Tse Tung, e que fala o seu inglês e o seu francês, José Sócrates albergou sempre o sonho secreto, inconfessado, de ser como eles.
Em mais do que uma entrevista, desatou a perorar - sempre muito a despropósito - de livros que o teriam marcado, logo a ele, tão rígido que dificilmente se deixaria marcar por um livro, a não ser que fosse uma lista telefónica caindo-lhe em cima...; em vários momentos, puxou do seu inglês técnico, incorrecto e incompetente, sem pudor nem vergonha. Em vários momentos semeou citações, procurou trepar até ao pináculo das ideias, dos debates filosóficos, da fundamentação teórica.
Não é que o não possa. Não é que, para o fazer, tenha de ser membro de um clube com uma indicação à porta, no género de: «Pessoas sem Cultura não Entram»; e não pensem que o digo por mim, como se me causasse alguma repugnância cruzar-me, num clube de intelectuais, com não-intelectuais a fingir que o são. Trata-se, para começar, de algo que eu não quero parecer de modo algum: e se não tenho remédio senão reconhecer que o sou, «tecnicamente», por ofício e formação, esclareço que não me reconheço na imagem, nem no folclore, nem, digamos, no uniforme que haveria que vestir. Retomo, aí, a deliciosa ironia de Groucho Marx: «Nunca aceitaria fazer parte de um clube que se rebaixasse a aceitar-me como sócio».
E, portanto, o que me incomoda é simplesmente o puro jogo das aparências. O faz-de-conta. O passar-se por. Sem mais.
Santana deixando-se fotografar com Le Monde Diplomatique sob o braço, ou confessando que a sua música preferida sempre foi um certo «Chopin para violino», ou Sócrates citando as obras que lia na adolescência, quando, na prática, tem quem tem no Ministério da Cultura e tem quem tem no Ministério da Educação, são coisas que não poderiam deixar de me provocar uma leve náusea.
Leve. Só. É um desabafo.
quarta-feira, dezembro 12, 2007
UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. SEXTO CAPÍTULO (macabro e carregado de mau gosto, como convém)
James Lawford não pôde deixar de se aperceber da expressão de puro terror com que Caveira acatou a ordem de Mrs. Miriam.
- Estou cansado, realmente. Vou-me estender um pouco. Boa note, Mr. Lawford.
Saiu, trôpego, morrendo aos poucos.
- Então o Leo ainda cá está? - perguntou James.
-Sim, sim. Já lhe disse. Venha. Venha, que eu levo-o até ele. - A pausa que se seguiu foi tremenda. Mas as palavras que a quebraram, não o acalmaram. - Com que então conheceu Rudolph, não? - O tom da mulher era tenso, ligeiramente rouco. O olhar dela perseguia-o, febril. Prosseguiu. - Eu não sei o que ele lhe disse. Mas é preciso não acreditar em Rudolph, sabe? Nada do que ele diz é inteiramente verdade. Ele contou-lhe a fantasia de que foi escravo de uma velha? E disse-lhe o que lhe fez? Ou disse que fui eu que o fiz? Às vezes, acusa-me.
- Vagamente. - Logo que respondeu, percebeu que se tratava de uma resposta comprometedora. Não a dava por ingenuidade mas, no fundo, por ser incapaz de mentir diante dos olhos de Mrs. Miriam que o vasculhavam até às entranhas. Mudou de conversa. - O Leo? Onde vamos?
- Não houve velha nenhuma -, insistia ela. - É um delírio. Ninguém a comeu.
Entraram na cozinha.
- Olhe, não está aqui -, disse a mulher. - Pensei que sim, como ouvi ruído, julguei que tivessem vindo comer alguma coisa. Mas sente-se, Mr. Lawford, sente-se aqui um pouco. Não quer um pastelinho? Eu volto já, vou ver se lhe trago Leo. Estão com certeza no quarto. Diabo de rapazes.
Enquanto Mrs. Miriam saía, transportando consigo a pá, James principiou a sentir-se mais nervoso do que nunca. A ausência de Leo incomodava-o de uma forma bizarra. Sentia que uma angústia se apoderava lentamente do seu peito. O coração batia descompassadamente. Ouviu ganir. Não. Gritar, lá em cima. Rudolph, cadáver ambulante, pobre de Cristo crucificado, uivava de um modo que se lhe cravava no pescoço. Não foi capaz de se sentar. Andava de um lado para o outro. Leo, pensava! Onde estás tu? Onde estás tu?, perguntava-se em surdina, entre trovões que faziam estremecer a noite.
Reparou na caixa dos pastéis.
Retirou, delicadamente, um, segurando-o entre dois dedos, como se fosse uma pinça.
- Só faltava que a bruxa me envenenasse com um pastel - suspirou. E, no momento imediato, perante o absurdo da ideia, sorriu e acalmou.
Não tinha fome, mas mastigou o pastel como se fosse uma pastilha, algo que o fizesse mascar, que lhe permitisse movimentos em que concentrasse a sua energia angustiada.
Tenro. Tenro. Muuuito tenro e saboroso.
Bruscamente, cuspiu qualquer coisa.
Uma unha. Uma unha suja.
Instantaneamente, estupidamente, associou aquela unha a uma memória, e sussurrou:
- É verdade, não posso esquecer-me de dizer ao Leo para cortar as unhas. Está com elas tão sujas...
O horror desta associação, o significado profundo da relação que lhe surgia no espírito deixou-o apavorado. Cuspiu o pastel. Fora uma compreensão súbita, como um hediondo e repugnante relâmpago. Se tivesse demorado mais tempo a perceber, teria morrido sem saber o que tinha acontecido. Assim, a intuição trágica da verdade foi a última iluminação que teve em vida porque, no momento seguinte, uma pá pesada caía sobre a sua cabeça, fendia-a, matava-o.
Caiu no chão, o seu rosto sobre a pequena e suja unha.
- Estou cansado, realmente. Vou-me estender um pouco. Boa note, Mr. Lawford.
Saiu, trôpego, morrendo aos poucos.
- Então o Leo ainda cá está? - perguntou James.
-Sim, sim. Já lhe disse. Venha. Venha, que eu levo-o até ele. - A pausa que se seguiu foi tremenda. Mas as palavras que a quebraram, não o acalmaram. - Com que então conheceu Rudolph, não? - O tom da mulher era tenso, ligeiramente rouco. O olhar dela perseguia-o, febril. Prosseguiu. - Eu não sei o que ele lhe disse. Mas é preciso não acreditar em Rudolph, sabe? Nada do que ele diz é inteiramente verdade. Ele contou-lhe a fantasia de que foi escravo de uma velha? E disse-lhe o que lhe fez? Ou disse que fui eu que o fiz? Às vezes, acusa-me.
- Vagamente. - Logo que respondeu, percebeu que se tratava de uma resposta comprometedora. Não a dava por ingenuidade mas, no fundo, por ser incapaz de mentir diante dos olhos de Mrs. Miriam que o vasculhavam até às entranhas. Mudou de conversa. - O Leo? Onde vamos?
- Não houve velha nenhuma -, insistia ela. - É um delírio. Ninguém a comeu.
Entraram na cozinha.
- Olhe, não está aqui -, disse a mulher. - Pensei que sim, como ouvi ruído, julguei que tivessem vindo comer alguma coisa. Mas sente-se, Mr. Lawford, sente-se aqui um pouco. Não quer um pastelinho? Eu volto já, vou ver se lhe trago Leo. Estão com certeza no quarto. Diabo de rapazes.
Enquanto Mrs. Miriam saía, transportando consigo a pá, James principiou a sentir-se mais nervoso do que nunca. A ausência de Leo incomodava-o de uma forma bizarra. Sentia que uma angústia se apoderava lentamente do seu peito. O coração batia descompassadamente. Ouviu ganir. Não. Gritar, lá em cima. Rudolph, cadáver ambulante, pobre de Cristo crucificado, uivava de um modo que se lhe cravava no pescoço. Não foi capaz de se sentar. Andava de um lado para o outro. Leo, pensava! Onde estás tu? Onde estás tu?, perguntava-se em surdina, entre trovões que faziam estremecer a noite.
Reparou na caixa dos pastéis.
Retirou, delicadamente, um, segurando-o entre dois dedos, como se fosse uma pinça.
- Só faltava que a bruxa me envenenasse com um pastel - suspirou. E, no momento imediato, perante o absurdo da ideia, sorriu e acalmou.
Não tinha fome, mas mastigou o pastel como se fosse uma pastilha, algo que o fizesse mascar, que lhe permitisse movimentos em que concentrasse a sua energia angustiada.
Tenro. Tenro. Muuuito tenro e saboroso.
Bruscamente, cuspiu qualquer coisa.
Uma unha. Uma unha suja.
Instantaneamente, estupidamente, associou aquela unha a uma memória, e sussurrou:
- É verdade, não posso esquecer-me de dizer ao Leo para cortar as unhas. Está com elas tão sujas...
O horror desta associação, o significado profundo da relação que lhe surgia no espírito deixou-o apavorado. Cuspiu o pastel. Fora uma compreensão súbita, como um hediondo e repugnante relâmpago. Se tivesse demorado mais tempo a perceber, teria morrido sem saber o que tinha acontecido. Assim, a intuição trágica da verdade foi a última iluminação que teve em vida porque, no momento seguinte, uma pá pesada caía sobre a sua cabeça, fendia-a, matava-o.
Caiu no chão, o seu rosto sobre a pequena e suja unha.
terça-feira, dezembro 11, 2007
UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. QUINTO CAPÍTULO
O homem olhava-o, com uma espuma esbranquiçada entre os lábios entreabertos.
James pensou: «Tenho medo disto!»
Porquê? Bem: porque o Cadáver lhe confessara tanto sobre si mesmo, que, certamente, não o deixaria sair dali vivo. Como o libertaria, se lhe havia contado até que era um ser sem identidade (e assim quereria permanecer, sem dúvida), que nada, nenhum documento, registo algum provava, sequer, que existia? Pior: como o libertaria, depois de lhe ter dito que matara a velha?
(Ah, sim, James Lawford não tinha a menor hesitação acerca desse pormenor; soubera ler nas entrelinhas, soubera interpretar o eufemismo quase delicado: «Eu já não podia suportá-la mais», sussurrara-lhe Caveira Crucificada, «e ela morreu».)
Contudo, imediatamente a seguir, foi-se compenentrando de que, afinal, não tinha medo. Medo de quê? Porquê? Caveira Crucificada expusera-se de mais - e a verdade é que nós só tememos o que não vemos inteiramente, o que se nos oculta em parte, o que se resguarda na sombra. Caveira mostrara-lhe os seus ridículos. Era penoso de ver, não terrível. Respirava mal, cansava-se facilmente. Tinha orelhas grandes. Que mal poderia advir, a James, daquela figura patética, agora que não era um simples, tenebroso e desconhecido vulto à janela, entre relâmpagos, mas um pobre de Cristo?
Nesse momento, Mrs. Miriam surgiu.
Trazia uma pá na mão.
James Lawford reparou que Cadáver principiara a tremer, como se a presença da senhora o atemorizasse.
- Ah, Mrs. Miriam, trouxe a pá, que bom. Vamos? - perguntou James.
A senhora não o olhava. Fitava Cadáver.
- Não pode ir agora, Mr Lawford.
- Porquê?
- Porque ainda está a chover muito.
Cadáver calara-se. Babava-se. Parecia, mais do que nunca, um cadáver, um Cristo crucificado, um doente.
- Mas tenho de ir, Mrs. Miriam. Leo está à minha espera.
- Ah, pois, isso é outra coisa que eu tinha para lhe dizer. Afinal, enganei-me. Penso que Leo ainda cá está.
- Mas tinha-me dito...
- Pois disse, eu sei. Julguei que. Julguei que. Mas afinal não. Afinal não. Desculpe. Ouvi-os a falar, quando passei pelo quarto. São tão amiguinhos. Estão lá os dois. A estudar, é claro.
Cadáver pusera-se de costas, como para se entregar totalmente ao calor da lareira. Voltou-se de novo para ela:
- Mas, Miriam, não seria melhor...?
Mrs. Miriam olhou Cadáver nos olhos, segurando na pá com uma força nervosa.
- Sobe! - disse-lhe, simplesmente.
Deu dois passos. Como se não se tivesse movido do mesmo lugar. Como se não houvesse, na ligeira aproximação, propriamente uma ameaça.
(CONTINUA)
James pensou: «Tenho medo disto!»
Porquê? Bem: porque o Cadáver lhe confessara tanto sobre si mesmo, que, certamente, não o deixaria sair dali vivo. Como o libertaria, se lhe havia contado até que era um ser sem identidade (e assim quereria permanecer, sem dúvida), que nada, nenhum documento, registo algum provava, sequer, que existia? Pior: como o libertaria, depois de lhe ter dito que matara a velha?
(Ah, sim, James Lawford não tinha a menor hesitação acerca desse pormenor; soubera ler nas entrelinhas, soubera interpretar o eufemismo quase delicado: «Eu já não podia suportá-la mais», sussurrara-lhe Caveira Crucificada, «e ela morreu».)
Contudo, imediatamente a seguir, foi-se compenentrando de que, afinal, não tinha medo. Medo de quê? Porquê? Caveira Crucificada expusera-se de mais - e a verdade é que nós só tememos o que não vemos inteiramente, o que se nos oculta em parte, o que se resguarda na sombra. Caveira mostrara-lhe os seus ridículos. Era penoso de ver, não terrível. Respirava mal, cansava-se facilmente. Tinha orelhas grandes. Que mal poderia advir, a James, daquela figura patética, agora que não era um simples, tenebroso e desconhecido vulto à janela, entre relâmpagos, mas um pobre de Cristo?
Nesse momento, Mrs. Miriam surgiu.
Trazia uma pá na mão.
James Lawford reparou que Cadáver principiara a tremer, como se a presença da senhora o atemorizasse.
- Ah, Mrs. Miriam, trouxe a pá, que bom. Vamos? - perguntou James.
A senhora não o olhava. Fitava Cadáver.
- Não pode ir agora, Mr Lawford.
- Porquê?
- Porque ainda está a chover muito.
Cadáver calara-se. Babava-se. Parecia, mais do que nunca, um cadáver, um Cristo crucificado, um doente.
- Mas tenho de ir, Mrs. Miriam. Leo está à minha espera.
- Ah, pois, isso é outra coisa que eu tinha para lhe dizer. Afinal, enganei-me. Penso que Leo ainda cá está.
- Mas tinha-me dito...
- Pois disse, eu sei. Julguei que. Julguei que. Mas afinal não. Afinal não. Desculpe. Ouvi-os a falar, quando passei pelo quarto. São tão amiguinhos. Estão lá os dois. A estudar, é claro.
Cadáver pusera-se de costas, como para se entregar totalmente ao calor da lareira. Voltou-se de novo para ela:
- Mas, Miriam, não seria melhor...?
Mrs. Miriam olhou Cadáver nos olhos, segurando na pá com uma força nervosa.
- Sobe! - disse-lhe, simplesmente.
Deu dois passos. Como se não se tivesse movido do mesmo lugar. Como se não houvesse, na ligeira aproximação, propriamente uma ameaça.
(CONTINUA)
sábado, dezembro 08, 2007
UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. QUARTO CAPÍTULO
O indivíduo era horroroso: calvo de um modo perfeito, o rosto perfeitamente triangular, descarnado, como uma caveira (uma caveira à qual uns rapazes maldosos, irreverentemente, tivessem colado duas consideráveis e salientes orelhas).
Ou ele sorria, ou fazia um esgar. Tinha umas gengivas grandes, que o sorriso, ou lá o que era aquilo, revelava quase até ao nariz.
James Lawford costumava tranquilizar-se, na sua insegurança em relação a certos desconhecidos, fazendo o mesmo que Deus convidara Adão a fazer: nomeando-as. Como se, pelo poder mágico da palavra, atribuir um nome fosse domar e dominar uma criatura. Ali, hesitava: chamar-lhe-ia, no seu espírito, Crucificado Ambulante? Ou Cadáver?
Cadáver Crucificado Ambulante aproximava-se dele.
James sorriu-lhe:
- Boa noite. Isto é que está um tempo. O meu carro está atolado... sou... sou o pai de Leo.
Cadáver Crucificado não lhe respondeu. Ao fim de alguns segundos que pareceram fracções de eternidade, estendeu-lhe uma mão longa, inesperadamente peluda.
Falou:
- Eu não sei como me apresente. Mas sente-se, sente-se.
Tinha uma voz fraca. Arquejante. Ligeiramente aflautada. Era a segunda surpresa: esperara um tom cavo, lúgubre, possante.
Sentaram-se.
- A sua mulher... - procurava James obstruir o silêncio fosse como fosse, mesmo com incoveniências: tudo menos deixar que o silêncio subisse como uma trepadeira venenosa pela sala obscura - ... isto é, penso que é a sua mulher, Mrs. Miriam... foi procurar uma pá. No outro dia, vi-o à janela lá de cima. Também me viu?
- Vi-o.
- A sua mulher... ou melhor... enfim, Mrs. Miriam deve ter-se confundido; afirmava que eu não podia ter visto ninguém. Que o senhor era um crucifixo.
Riram ambos. Cadáver Crucificado durante pouco tempo, cansando-se de imediato e precisando de respirar fundo.
Depois, sem qualquer transição lógica, entrou, pausadamente, numa confissão absurda (provavelmente fantasiosa, julgou James), a que as características do lugar ou a presença, porventura rara, de um hóspede, pareciam impeli-lo:
- A minha mulher, como diz, procura proteger-me. [Pausa]. Mente sempre aos intrusos que julgam ter-me visto. [Pausa demorada, como para deixar a expressão «intrusos» penetrar no espírito do intruso]. Porque eu, realmente, não sou ninguém. [Tosse]. Não existo. Para efeito nenhum. Não tenho um único documento. [Pausa longa e, a seguir, em voz melancólica].Nasci em casa dos meus pais, nunca me registaram, fui oferecido, ou vendido [pausa] a uma velha que me teve como criado [pausa], eu diria escravo, durante toda a sua vida, aliás demasiado longa para meu gosto [pausa],até que eu já não podia suportá-la mais, e ela morreu.
Riu. A seguir, iniciou-se uma crise. Como se sufocasse, como se se lhe esgotasse o ar.
James estava impressionado. Ou assustado.
(CONTINUA)
Ou ele sorria, ou fazia um esgar. Tinha umas gengivas grandes, que o sorriso, ou lá o que era aquilo, revelava quase até ao nariz.
James Lawford costumava tranquilizar-se, na sua insegurança em relação a certos desconhecidos, fazendo o mesmo que Deus convidara Adão a fazer: nomeando-as. Como se, pelo poder mágico da palavra, atribuir um nome fosse domar e dominar uma criatura. Ali, hesitava: chamar-lhe-ia, no seu espírito, Crucificado Ambulante? Ou Cadáver?
Cadáver Crucificado Ambulante aproximava-se dele.
James sorriu-lhe:
- Boa noite. Isto é que está um tempo. O meu carro está atolado... sou... sou o pai de Leo.
Cadáver Crucificado não lhe respondeu. Ao fim de alguns segundos que pareceram fracções de eternidade, estendeu-lhe uma mão longa, inesperadamente peluda.
Falou:
- Eu não sei como me apresente. Mas sente-se, sente-se.
Tinha uma voz fraca. Arquejante. Ligeiramente aflautada. Era a segunda surpresa: esperara um tom cavo, lúgubre, possante.
Sentaram-se.
- A sua mulher... - procurava James obstruir o silêncio fosse como fosse, mesmo com incoveniências: tudo menos deixar que o silêncio subisse como uma trepadeira venenosa pela sala obscura - ... isto é, penso que é a sua mulher, Mrs. Miriam... foi procurar uma pá. No outro dia, vi-o à janela lá de cima. Também me viu?
- Vi-o.
- A sua mulher... ou melhor... enfim, Mrs. Miriam deve ter-se confundido; afirmava que eu não podia ter visto ninguém. Que o senhor era um crucifixo.
Riram ambos. Cadáver Crucificado durante pouco tempo, cansando-se de imediato e precisando de respirar fundo.
Depois, sem qualquer transição lógica, entrou, pausadamente, numa confissão absurda (provavelmente fantasiosa, julgou James), a que as características do lugar ou a presença, porventura rara, de um hóspede, pareciam impeli-lo:
- A minha mulher, como diz, procura proteger-me. [Pausa]. Mente sempre aos intrusos que julgam ter-me visto. [Pausa demorada, como para deixar a expressão «intrusos» penetrar no espírito do intruso]. Porque eu, realmente, não sou ninguém. [Tosse]. Não existo. Para efeito nenhum. Não tenho um único documento. [Pausa longa e, a seguir, em voz melancólica].Nasci em casa dos meus pais, nunca me registaram, fui oferecido, ou vendido [pausa] a uma velha que me teve como criado [pausa], eu diria escravo, durante toda a sua vida, aliás demasiado longa para meu gosto [pausa],até que eu já não podia suportá-la mais, e ela morreu.
Riu. A seguir, iniciou-se uma crise. Como se sufocasse, como se se lhe esgotasse o ar.
James estava impressionado. Ou assustado.
(CONTINUA)
sexta-feira, dezembro 07, 2007
UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. TERCEIRO CAPÍTULO
E, de facto, o dia seguinte foi um dia repousado.
Trouxe o filho da escola e ficaram os dois em casa, o pai arrumando os selos da sua colecção, Leo desenhando as próprias histórias em quadradinhos, muito mórbidas, cheias de monstros que pareciam devorar as páginas que mal os continham, mal os albergavam.
James bebeu um whisky e fumou dois ou três cigarros, apesar da proibição do médico.
Não conversaram. Falavam pouco um com o outro.
Também no dia seguinte, Leo tornou a não ir estudar com o seu amigo; o que, de algum modo, para James, acabou por se tornar embaraçoso, como se a presença do filho, de que se desabituara, fosse um peso estranho, um incómodo indefinível, silencioso e fantasmagórico. Sabia-o por ali. Ou fechado no quarto, ou sentado na cozinha, lanchando sem ruído.
Teria sido, talvez, por causa dessa sensação que a presença soturna do seu filho provocava, como um peso estranho no seio da sua liberdade e do seu espaço, que acabou por nem discutir quando, no terceiro dia, Leo lhe disse:
- Jonas pediu que o ajudasse hoje à tarde com o Latim. Temos exercício já na próxima semana. Posso ir?
Era sexta-feira. Chovia intensamente. Às sete horas da tarde, Leo não tinha regressado do «estudo». Ao princípio, não o preocupou que o rapaz tardasse, mas sim a chuva que certamente iria apanhar de caminho. Contudo, não lhe apetecia sair de casa. Egoísta, deixava-se estar, com o copo de whisky nas mãos, colado à janela.
Às oito, bruscamente, tomou uma decisão. Entrou no carro, dirigiu-se à casa velha.
Não havia luz. Buzinou. Não avistou, em nenhum lado, o que a senhora justificava como sendo um crucifixo que os protegia dos temporais. Saiu do automóvel, abrindo o guarda-chuva com que desta vez se prevenira, correu até à porta de casa, amaldiçoando a lama em que os seus sapatos novos se afundavam frequentemente. Não viu campainha; bateu com estrondo, usando o cabo do guarda-chuva.
Ao fim de um bocado, a porta entreabriu-se. Os olhos de Mrs. Miriam brilhavam por uma frincha, com um corte oblíquo que lhe dividia o rosto entre a sombra e uma vaga claridade.
- Boa noite, Mrs. Miriam. Venho buscar o Leo.
A porta não se abria mais do que aquilo. Ninguém o convidava a entrar. A voz da senhora era, naquele cenário diluviano, a única realidade que conservava uma espécie de secura absoluta.
- Boa noite, Mr. Lawford. O Leo já saiu. Há mais de uma meia hora.
Esteve a um instante de lhe perguntar se o deixava entrar para se sentar a descansar. Seria uma pequena ironia. Desistiu, não fosse ela abrir-lhe efectivamente a porta. Na verdade, estava desejoso de regressar.
- Ah! Então adeus. Boa noite.
- ...
Entrou no carro. Rodou a chave. Como nos filmes de terceira ou quarta ordem, o motor não lhe obedeceu. Quando, por fim, após várias tentativas enervantes, o carro principiou a rosnar, percebeu que não conseguia tirá-lo dali. Casara-se com a terra. Afundara ligeiramente no chão lamacento. Estava enterrado. Saiu do veículo, com vontade de erguer o punho contra os céus inclementes. Fez esforços baldados para o soltar das raízes que ganhara. Nunca libertaria, sozinho, o automóvel daquela espécie de paixão funesta.
Correu à casa horrorosa. Bateu estrondosamente. Agora, estava furioso. Quando Mrs. Miriam reentreabriu, empurrou-a com maus modos, procurando o calor do corredor, a luz do interior.
- O Jonas está cá? Vou precisar da ajuda dele. Ou está cá mais alguém? Talvez o crucifixo possa operar um milagre sobre o meu automóvel, que não se desenterra daquela lama? Posso entrar?
A senhora convidava-o e impedia-o, simultaneamente. Via-se que, ao mesmo tempo que lhe abria a porta, que o conduzia em direcção à sala, o cercava, o travava; proibia-o, subtilmente, de decidir os seus próprios passos, proibia-o de transgredir uma qualquer linha invisível, como se temesse que ele lhe invadisse a casa, lhe espiasse os quartos, lhe revoltasse as normas.
- Venha então para aqui, está mais quente. O Jonas não está. Não. Não está cá mais ninguém. Mas eu posso ajudá-lo.
Sentou-o junto ao fogo brando da lareira. Passara de uma fala seca, ríspida, nervosa, para um discurso nervosamente rápido, entremeado pelo que pareciam ser gargalhadas histéricas.
- Dê cá o seu casaco, vou ver se arranjo uma pá e uma lanterna, deixe-se estar aqui, quer beber alguma coisa quente?, não?, não se mexa que eu já volto.
James Lawford sentou-se. A chuva batia lá fora, ininterruptamente. Por um instante, aconchegado pelo calor, talvez tenha chegado a adormecer. Olhou para o relógio de pulso. Não haviam passado sequer cinco minutos. Ergueu a cabeça. A senhora voltara...! Estava ali. James estreitou os olhos, tentando perceber melhor que raio fazia Mrs. Miriam assim tão quieta. E deu um salto da cadeira, logo que deu conta do seu engano: não era Mrs. Miriam que o contemplava fixamente; encontrava-se diante do rosto magro e anguloso que descobrira, no outro dia, à janela: qual figura de cera, de uma palidez quase luminosa, como certos peixes das profundezas que transportam consigo a sua própria luz, assim a estranha personagem nadava na profundidade da velha casa, clareando a obscuridade marítima da sala. Mas não era um crucifixo.
Trouxe o filho da escola e ficaram os dois em casa, o pai arrumando os selos da sua colecção, Leo desenhando as próprias histórias em quadradinhos, muito mórbidas, cheias de monstros que pareciam devorar as páginas que mal os continham, mal os albergavam.
James bebeu um whisky e fumou dois ou três cigarros, apesar da proibição do médico.
Não conversaram. Falavam pouco um com o outro.
Também no dia seguinte, Leo tornou a não ir estudar com o seu amigo; o que, de algum modo, para James, acabou por se tornar embaraçoso, como se a presença do filho, de que se desabituara, fosse um peso estranho, um incómodo indefinível, silencioso e fantasmagórico. Sabia-o por ali. Ou fechado no quarto, ou sentado na cozinha, lanchando sem ruído.
Teria sido, talvez, por causa dessa sensação que a presença soturna do seu filho provocava, como um peso estranho no seio da sua liberdade e do seu espaço, que acabou por nem discutir quando, no terceiro dia, Leo lhe disse:
- Jonas pediu que o ajudasse hoje à tarde com o Latim. Temos exercício já na próxima semana. Posso ir?
Era sexta-feira. Chovia intensamente. Às sete horas da tarde, Leo não tinha regressado do «estudo». Ao princípio, não o preocupou que o rapaz tardasse, mas sim a chuva que certamente iria apanhar de caminho. Contudo, não lhe apetecia sair de casa. Egoísta, deixava-se estar, com o copo de whisky nas mãos, colado à janela.
Às oito, bruscamente, tomou uma decisão. Entrou no carro, dirigiu-se à casa velha.
Não havia luz. Buzinou. Não avistou, em nenhum lado, o que a senhora justificava como sendo um crucifixo que os protegia dos temporais. Saiu do automóvel, abrindo o guarda-chuva com que desta vez se prevenira, correu até à porta de casa, amaldiçoando a lama em que os seus sapatos novos se afundavam frequentemente. Não viu campainha; bateu com estrondo, usando o cabo do guarda-chuva.
Ao fim de um bocado, a porta entreabriu-se. Os olhos de Mrs. Miriam brilhavam por uma frincha, com um corte oblíquo que lhe dividia o rosto entre a sombra e uma vaga claridade.
- Boa noite, Mrs. Miriam. Venho buscar o Leo.
A porta não se abria mais do que aquilo. Ninguém o convidava a entrar. A voz da senhora era, naquele cenário diluviano, a única realidade que conservava uma espécie de secura absoluta.
- Boa noite, Mr. Lawford. O Leo já saiu. Há mais de uma meia hora.
Esteve a um instante de lhe perguntar se o deixava entrar para se sentar a descansar. Seria uma pequena ironia. Desistiu, não fosse ela abrir-lhe efectivamente a porta. Na verdade, estava desejoso de regressar.
- Ah! Então adeus. Boa noite.
- ...
Entrou no carro. Rodou a chave. Como nos filmes de terceira ou quarta ordem, o motor não lhe obedeceu. Quando, por fim, após várias tentativas enervantes, o carro principiou a rosnar, percebeu que não conseguia tirá-lo dali. Casara-se com a terra. Afundara ligeiramente no chão lamacento. Estava enterrado. Saiu do veículo, com vontade de erguer o punho contra os céus inclementes. Fez esforços baldados para o soltar das raízes que ganhara. Nunca libertaria, sozinho, o automóvel daquela espécie de paixão funesta.
Correu à casa horrorosa. Bateu estrondosamente. Agora, estava furioso. Quando Mrs. Miriam reentreabriu, empurrou-a com maus modos, procurando o calor do corredor, a luz do interior.
- O Jonas está cá? Vou precisar da ajuda dele. Ou está cá mais alguém? Talvez o crucifixo possa operar um milagre sobre o meu automóvel, que não se desenterra daquela lama? Posso entrar?
A senhora convidava-o e impedia-o, simultaneamente. Via-se que, ao mesmo tempo que lhe abria a porta, que o conduzia em direcção à sala, o cercava, o travava; proibia-o, subtilmente, de decidir os seus próprios passos, proibia-o de transgredir uma qualquer linha invisível, como se temesse que ele lhe invadisse a casa, lhe espiasse os quartos, lhe revoltasse as normas.
- Venha então para aqui, está mais quente. O Jonas não está. Não. Não está cá mais ninguém. Mas eu posso ajudá-lo.
Sentou-o junto ao fogo brando da lareira. Passara de uma fala seca, ríspida, nervosa, para um discurso nervosamente rápido, entremeado pelo que pareciam ser gargalhadas histéricas.
- Dê cá o seu casaco, vou ver se arranjo uma pá e uma lanterna, deixe-se estar aqui, quer beber alguma coisa quente?, não?, não se mexa que eu já volto.
James Lawford sentou-se. A chuva batia lá fora, ininterruptamente. Por um instante, aconchegado pelo calor, talvez tenha chegado a adormecer. Olhou para o relógio de pulso. Não haviam passado sequer cinco minutos. Ergueu a cabeça. A senhora voltara...! Estava ali. James estreitou os olhos, tentando perceber melhor que raio fazia Mrs. Miriam assim tão quieta. E deu um salto da cadeira, logo que deu conta do seu engano: não era Mrs. Miriam que o contemplava fixamente; encontrava-se diante do rosto magro e anguloso que descobrira, no outro dia, à janela: qual figura de cera, de uma palidez quase luminosa, como certos peixes das profundezas que transportam consigo a sua própria luz, assim a estranha personagem nadava na profundidade da velha casa, clareando a obscuridade marítima da sala. Mas não era um crucifixo.
quinta-feira, dezembro 06, 2007
UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. SEGUNDO CAPÍTULO
Perante aquilo, com um arrepio quase doloroso, James Lawford voltou a enfiar-se todo no automóvel. Deixou-se estar uns segundos parado, quieto, sem saber o que fazer. Respirava com dificuldade. Relâmpagos desaustinados eram cuspidos, como se em frustradas tentativas de queimar tudo em seu redor. Olhou, inseguro, para a janela da casa. O rosto cadavérico desaparecera. Ou melhor, a vela extinguira-se, ou alguém a apagara, e já não se via nessa janela senão um rectângulo de negrume.
James considerou a hipótese de sair do carro e tocar à campaínha - se é que a casa possuía alguma. Respirou fundo, como para ganhar coragem. Ou tempo. Começou a contar em voz baixa, pensando: «Se não acontecer nada, se não aparecer ninguém quando eu chegar aos dez... não, aos vinte... vou até à porta... seis... sete...»
Nesse preciso instante, percebeu que havia uma face brusca colada ao vidro do seu automóvel.
Teve um sobressalto. Encostou-se ao banco, entre dois relâmpagos.
Era Mrs. Miriam, que lhe trazia Leo, escoltados ambos pelo filho adoptivo da senhora, de guarda-chuva em punho, um guarda-chuva que só lhe fazia lembrar, tetricamente, as asas de um morcego.
Abriu a porta do carro. Leo entrou, molhando os estofos. James abriu o vidro para dirigir a palavra à senhora:
- Já estava aqui há um bocado a chamar. Buzinei. Até gritei que era eu, mas o seu marido, lá em cima, à janela, não deu por nada...
- Meu...? -, enervou-se Mrs. Miriam. - Não, não, não. Ah, já sei. Deve estar a referir-se ao crucifixo. É um Cristo que está ali, no quarto. Em noites de temporal, trago-o para o pé da janela. Ora. São as nossas manias!
Passava-lhe, para as mãos, uma caixinha de pastéis. Depois, a senhora falou para Leo, o qual esperava, muito silencioso, muito molhado, como se estivesse perturbado com alguma coisa.
- Mas amanhã, menino, vai ser como eu digo, hein? Primeiro, estudam. Depois, é que vão conversar...
James fechou bruscamente a possibilidade:
- Ah, mas amanhã não, Mrs. Miriam, amanhã o Leo não vai poder vir porque... porque... tem outras coisas que fazer.
A senhora olhava-o. Era um olhar de viva reprovação, que nem a água dos céus, que os separava um do outro, como uma cortina líquida, conseguia atenuar.
Ele sentia-se culpado por esta sua recusa ingrata, ao mesmo tempo que segurava, entre as mãos enluvadas, os pastelinhos que a senhora acabara de lhe oferecer.
Mas cortava a vinda de Leo, como se o protegesse de um mal. Tremia de frio e de nervoso. A tenebrosa e cadavérica figura à janela da casa ainda lhe rangia no espírito. Um crucifixo?! Qual! Impossível. Aquilo movera-se. Juraria. Impressão sua...?
(CONTINUA)
James considerou a hipótese de sair do carro e tocar à campaínha - se é que a casa possuía alguma. Respirou fundo, como para ganhar coragem. Ou tempo. Começou a contar em voz baixa, pensando: «Se não acontecer nada, se não aparecer ninguém quando eu chegar aos dez... não, aos vinte... vou até à porta... seis... sete...»
Nesse preciso instante, percebeu que havia uma face brusca colada ao vidro do seu automóvel.
Teve um sobressalto. Encostou-se ao banco, entre dois relâmpagos.
Era Mrs. Miriam, que lhe trazia Leo, escoltados ambos pelo filho adoptivo da senhora, de guarda-chuva em punho, um guarda-chuva que só lhe fazia lembrar, tetricamente, as asas de um morcego.
Abriu a porta do carro. Leo entrou, molhando os estofos. James abriu o vidro para dirigir a palavra à senhora:
- Já estava aqui há um bocado a chamar. Buzinei. Até gritei que era eu, mas o seu marido, lá em cima, à janela, não deu por nada...
- Meu...? -, enervou-se Mrs. Miriam. - Não, não, não. Ah, já sei. Deve estar a referir-se ao crucifixo. É um Cristo que está ali, no quarto. Em noites de temporal, trago-o para o pé da janela. Ora. São as nossas manias!
Passava-lhe, para as mãos, uma caixinha de pastéis. Depois, a senhora falou para Leo, o qual esperava, muito silencioso, muito molhado, como se estivesse perturbado com alguma coisa.
- Mas amanhã, menino, vai ser como eu digo, hein? Primeiro, estudam. Depois, é que vão conversar...
James fechou bruscamente a possibilidade:
- Ah, mas amanhã não, Mrs. Miriam, amanhã o Leo não vai poder vir porque... porque... tem outras coisas que fazer.
A senhora olhava-o. Era um olhar de viva reprovação, que nem a água dos céus, que os separava um do outro, como uma cortina líquida, conseguia atenuar.
Ele sentia-se culpado por esta sua recusa ingrata, ao mesmo tempo que segurava, entre as mãos enluvadas, os pastelinhos que a senhora acabara de lhe oferecer.
Mas cortava a vinda de Leo, como se o protegesse de um mal. Tremia de frio e de nervoso. A tenebrosa e cadavérica figura à janela da casa ainda lhe rangia no espírito. Um crucifixo?! Qual! Impossível. Aquilo movera-se. Juraria. Impressão sua...?
(CONTINUA)
segunda-feira, dezembro 03, 2007
REIS MAGOS A JACTO
NOTA: A essência do cristianismo reside no perdão; espero que os meus leitores cristãos sejam mais coerentes do que eu, e façam do meu texto um pretexto para o exercício de me perdoarem...
Na qualidade de ateu empedernido, tornou-se-me, no início do período mais coerente da minha vida, praticamente impossível a convivência com o presépio e tudo quanto este simboliza. Depois de muito instado, chegava a aceitar a àrvore de Natal. Com dificuldade e muitos resmungos, é certo, mas vá: à àrvore ainda fechava os olhos! Agora, um presépio, um menino ao frio, sobre palhinhas deitado, um pai que não era pai mas fazia de conta que não se importava, uma mãe que alegava permanecer intocada apesar de todas as evidências, uns reis cuja sensatez os levava a oferecer, como prendas para um recém-nascido, coisas tão desadequadas como ouro, incenso, mirra, uns pastores, uma vaca, um burro, isso era já mais do que podia suportar.
Mais tarde, não por ter ganho fé em Deus, mas por ter perdido a fé na coerência - a qual, no limite, se confunde com intolerância -, dei por mim a olhar para presépios e a descobrir uma espécie de beleza discreta na subordinação de tantos adultos a um bebé. Pensava para comigo: «E isso não é nada! Deixem o menino chegar à idade da minha Margaridinha, que já vão ver o poder que uma criança realmente tem sobre os crescidos!»
Num dia de arrumações, descobri, em algum baú herdado, um conjunto de figuras de presépio, e senti-me fundir, senti-me derreter, quase enternecido, derramando-me por sequências de imagens dos Natais da minha infância, dos presépios que então me fascinavam; não só os de casa - ou das sucessivas casas por onde passei -, mas também o(s) presépio(s) da(s) escola(s). Recordei-me de como certo dia, na adoração de um deles, quase pegava fogo à roupa. Não me perguntem como, porque não reparara em nada e, quando regressei a casa com a camisa queimada, não sabia explicar exactamente o que sucedera. E nunca soube!
Mas ainda assim, mesmo depois dessa viagem pelo tempo, precisei de semanas para digerir esta súbita saudade, esta inexplicável vontade de retomar o presépio. Pensava: «Que mal faz?» Justificava: «Trata-se tão-só de aceitar um mito belo sem ver nele mais do que um mito belo, trata-se de celebrar a família, sob a forma de um grupo disfuncional como, no fundo, todas as famílias são hoje. (Presépio: Pai ausente, padrasto indiferente, mãe em delírio, filho megalómano...)
Quando, por fim, encolhi os ombros numa muda aceitação deste símbolo, quis, em todo o caso, que ela tivesse qualquer coisa de singular. Digamos: uma concessão ao ateu rabugento em mim- Que, ao menos, não fosse um presépio comum. Que não fosse um passo em direcção à massificação natalícia. Que tivesse um toque pós-moderno. Um toque... ateu?!
A minha ideia, ó delírio, consistia simplesmente nisto: elevar o presépio, colocando-o sobre um pedestal de caixas que escondesse, aos olhos de todos, um comboio eléctrico. Esperem: o comboio carregaria, subtilmente, os três reis magos. Mas, insisto, ninguém veria comboio algum. Em contrapartida, os embevecidos espectadores que eu idealizava, seriam postos ante o espectáculo da autonomia de Baltazar, Gaspar e Belchior, como se estes se deslocassem, sozinhos, numa alegre cavalgada (ou camelada) em direcção ao menino Jesus. O comboio seria, portanto, o mecanismo secreto, o motor escondido da sua aproximação.
O que separa o génio do ridículo é, por vezes, uma linha tão ténue, que grandes ideias acabam por afundar no gozo e na troça gerais.
Poupo-vos a descrição do que aconteceu diante dos olhos incrédulos dos primeiros espectadores que convidei: os reis magos, numa desenfreada e absurda pressa, como se estivessem já muito atrasados, descrevendo um movimento demasiado ruidoso, demasiado circular e repetitivo, em torno de Jesus, mas sem nunca realmente O visitarem, incapazes de quebrar o perpétuo circuito em que se viam lançados, provocaram, sobretudo, gargalhadas. Que público reaccionário. Que falta de sensibilidade artística. Que tacanhez para o que é novo, o que é diferente, o que não foi feito para este tempo.
E assim, morrem grandes ideias. Aposto que a História está carregada de destroços que prometiam tanto...!
Se calhar, desisto do presépio.
Na qualidade de ateu empedernido, tornou-se-me, no início do período mais coerente da minha vida, praticamente impossível a convivência com o presépio e tudo quanto este simboliza. Depois de muito instado, chegava a aceitar a àrvore de Natal. Com dificuldade e muitos resmungos, é certo, mas vá: à àrvore ainda fechava os olhos! Agora, um presépio, um menino ao frio, sobre palhinhas deitado, um pai que não era pai mas fazia de conta que não se importava, uma mãe que alegava permanecer intocada apesar de todas as evidências, uns reis cuja sensatez os levava a oferecer, como prendas para um recém-nascido, coisas tão desadequadas como ouro, incenso, mirra, uns pastores, uma vaca, um burro, isso era já mais do que podia suportar.
Mais tarde, não por ter ganho fé em Deus, mas por ter perdido a fé na coerência - a qual, no limite, se confunde com intolerância -, dei por mim a olhar para presépios e a descobrir uma espécie de beleza discreta na subordinação de tantos adultos a um bebé. Pensava para comigo: «E isso não é nada! Deixem o menino chegar à idade da minha Margaridinha, que já vão ver o poder que uma criança realmente tem sobre os crescidos!»
Num dia de arrumações, descobri, em algum baú herdado, um conjunto de figuras de presépio, e senti-me fundir, senti-me derreter, quase enternecido, derramando-me por sequências de imagens dos Natais da minha infância, dos presépios que então me fascinavam; não só os de casa - ou das sucessivas casas por onde passei -, mas também o(s) presépio(s) da(s) escola(s). Recordei-me de como certo dia, na adoração de um deles, quase pegava fogo à roupa. Não me perguntem como, porque não reparara em nada e, quando regressei a casa com a camisa queimada, não sabia explicar exactamente o que sucedera. E nunca soube!
Mas ainda assim, mesmo depois dessa viagem pelo tempo, precisei de semanas para digerir esta súbita saudade, esta inexplicável vontade de retomar o presépio. Pensava: «Que mal faz?» Justificava: «Trata-se tão-só de aceitar um mito belo sem ver nele mais do que um mito belo, trata-se de celebrar a família, sob a forma de um grupo disfuncional como, no fundo, todas as famílias são hoje. (Presépio: Pai ausente, padrasto indiferente, mãe em delírio, filho megalómano...)
Quando, por fim, encolhi os ombros numa muda aceitação deste símbolo, quis, em todo o caso, que ela tivesse qualquer coisa de singular. Digamos: uma concessão ao ateu rabugento em mim- Que, ao menos, não fosse um presépio comum. Que não fosse um passo em direcção à massificação natalícia. Que tivesse um toque pós-moderno. Um toque... ateu?!
A minha ideia, ó delírio, consistia simplesmente nisto: elevar o presépio, colocando-o sobre um pedestal de caixas que escondesse, aos olhos de todos, um comboio eléctrico. Esperem: o comboio carregaria, subtilmente, os três reis magos. Mas, insisto, ninguém veria comboio algum. Em contrapartida, os embevecidos espectadores que eu idealizava, seriam postos ante o espectáculo da autonomia de Baltazar, Gaspar e Belchior, como se estes se deslocassem, sozinhos, numa alegre cavalgada (ou camelada) em direcção ao menino Jesus. O comboio seria, portanto, o mecanismo secreto, o motor escondido da sua aproximação.
O que separa o génio do ridículo é, por vezes, uma linha tão ténue, que grandes ideias acabam por afundar no gozo e na troça gerais.
Poupo-vos a descrição do que aconteceu diante dos olhos incrédulos dos primeiros espectadores que convidei: os reis magos, numa desenfreada e absurda pressa, como se estivessem já muito atrasados, descrevendo um movimento demasiado ruidoso, demasiado circular e repetitivo, em torno de Jesus, mas sem nunca realmente O visitarem, incapazes de quebrar o perpétuo circuito em que se viam lançados, provocaram, sobretudo, gargalhadas. Que público reaccionário. Que falta de sensibilidade artística. Que tacanhez para o que é novo, o que é diferente, o que não foi feito para este tempo.
E assim, morrem grandes ideias. Aposto que a História está carregada de destroços que prometiam tanto...!
Se calhar, desisto do presépio.
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