sexta-feira, dezembro 07, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. TERCEIRO CAPÍTULO

E, de facto, o dia seguinte foi um dia repousado.
Trouxe o filho da escola e ficaram os dois em casa, o pai arrumando os selos da sua colecção, Leo desenhando as próprias histórias em quadradinhos, muito mórbidas, cheias de monstros que pareciam devorar as páginas que mal os continham, mal os albergavam.
James bebeu um whisky e fumou dois ou três cigarros, apesar da proibição do médico.
Não conversaram. Falavam pouco um com o outro.
Também no dia seguinte, Leo tornou a não ir estudar com o seu amigo; o que, de algum modo, para James, acabou por se tornar embaraçoso, como se a presença do filho, de que se desabituara, fosse um peso estranho, um incómodo indefinível, silencioso e fantasmagórico. Sabia-o por ali. Ou fechado no quarto, ou sentado na cozinha, lanchando sem ruído.
Teria sido, talvez, por causa dessa sensação que a presença soturna do seu filho provocava, como um peso estranho no seio da sua liberdade e do seu espaço, que acabou por nem discutir quando, no terceiro dia, Leo lhe disse:
- Jonas pediu que o ajudasse hoje à tarde com o Latim. Temos exercício já na próxima semana. Posso ir?

Era sexta-feira. Chovia intensamente. Às sete horas da tarde, Leo não tinha regressado do «estudo». Ao princípio, não o preocupou que o rapaz tardasse, mas sim a chuva que certamente iria apanhar de caminho. Contudo, não lhe apetecia sair de casa. Egoísta, deixava-se estar, com o copo de whisky nas mãos, colado à janela.
Às oito, bruscamente, tomou uma decisão. Entrou no carro, dirigiu-se à casa velha.

Não havia luz. Buzinou. Não avistou, em nenhum lado, o que a senhora justificava como sendo um crucifixo que os protegia dos temporais. Saiu do automóvel, abrindo o guarda-chuva com que desta vez se prevenira, correu até à porta de casa, amaldiçoando a lama em que os seus sapatos novos se afundavam frequentemente. Não viu campainha; bateu com estrondo, usando o cabo do guarda-chuva.
Ao fim de um bocado, a porta entreabriu-se. Os olhos de Mrs. Miriam brilhavam por uma frincha, com um corte oblíquo que lhe dividia o rosto entre a sombra e uma vaga claridade.
- Boa noite, Mrs. Miriam. Venho buscar o Leo.
A porta não se abria mais do que aquilo. Ninguém o convidava a entrar. A voz da senhora era, naquele cenário diluviano, a única realidade que conservava uma espécie de secura absoluta.
- Boa noite, Mr. Lawford. O Leo já saiu. Há mais de uma meia hora.
Esteve a um instante de lhe perguntar se o deixava entrar para se sentar a descansar. Seria uma pequena ironia. Desistiu, não fosse ela abrir-lhe efectivamente a porta. Na verdade, estava desejoso de regressar.
- Ah! Então adeus. Boa noite.
- ...

Entrou no carro. Rodou a chave. Como nos filmes de terceira ou quarta ordem, o motor não lhe obedeceu. Quando, por fim, após várias tentativas enervantes, o carro principiou a rosnar, percebeu que não conseguia tirá-lo dali. Casara-se com a terra. Afundara ligeiramente no chão lamacento. Estava enterrado. Saiu do veículo, com vontade de erguer o punho contra os céus inclementes. Fez esforços baldados para o soltar das raízes que ganhara. Nunca libertaria, sozinho, o automóvel daquela espécie de paixão funesta.
Correu à casa horrorosa. Bateu estrondosamente. Agora, estava furioso. Quando Mrs. Miriam reentreabriu, empurrou-a com maus modos, procurando o calor do corredor, a luz do interior.
- O Jonas está cá? Vou precisar da ajuda dele. Ou está cá mais alguém? Talvez o crucifixo possa operar um milagre sobre o meu automóvel, que não se desenterra daquela lama? Posso entrar?
A senhora convidava-o e impedia-o, simultaneamente. Via-se que, ao mesmo tempo que lhe abria a porta, que o conduzia em direcção à sala, o cercava, o travava; proibia-o, subtilmente, de decidir os seus próprios passos, proibia-o de transgredir uma qualquer linha invisível, como se temesse que ele lhe invadisse a casa, lhe espiasse os quartos, lhe revoltasse as normas.
- Venha então para aqui, está mais quente. O Jonas não está. Não. Não está cá mais ninguém. Mas eu posso ajudá-lo.
Sentou-o junto ao fogo brando da lareira. Passara de uma fala seca, ríspida, nervosa, para um discurso nervosamente rápido, entremeado pelo que pareciam ser gargalhadas histéricas.
- Dê cá o seu casaco, vou ver se arranjo uma pá e uma lanterna, deixe-se estar aqui, quer beber alguma coisa quente?, não?, não se mexa que eu já volto.

James Lawford sentou-se. A chuva batia lá fora, ininterruptamente. Por um instante, aconchegado pelo calor, talvez tenha chegado a adormecer. Olhou para o relógio de pulso. Não haviam passado sequer cinco minutos. Ergueu a cabeça. A senhora voltara...! Estava ali. James estreitou os olhos, tentando perceber melhor que raio fazia Mrs. Miriam assim tão quieta. E deu um salto da cadeira, logo que deu conta do seu engano: não era Mrs. Miriam que o contemplava fixamente; encontrava-se diante do rosto magro e anguloso que descobrira, no outro dia, à janela: qual figura de cera, de uma palidez quase luminosa, como certos peixes das profundezas que transportam consigo a sua própria luz, assim a estranha personagem nadava na profundidade da velha casa, clareando a obscuridade marítima da sala. Mas não era um crucifixo.

2 comentários:

Gil Duarte disse...

A intervenção de Zorbas, primeiro, de Angel, mais tarde, fez-me perceber que os pastelinhos estão a causar alguma perturbação. Sim, eu tenho em vista dar aos pastelinhos um papel muuuito importante. Só vos digo: não os percam de vista...

zorbas disse...

Estudar latim?! Só se for para dar o tal ar gótico à história. Mas estou a gostar... E quando é que (re)aparecem os pastelinhos???