James Lawford não pôde deixar de se aperceber da expressão de puro terror com que Caveira acatou a ordem de Mrs. Miriam.
- Estou cansado, realmente. Vou-me estender um pouco. Boa note, Mr. Lawford.
Saiu, trôpego, morrendo aos poucos.
- Então o Leo ainda cá está? - perguntou James.
-Sim, sim. Já lhe disse. Venha. Venha, que eu levo-o até ele. - A pausa que se seguiu foi tremenda. Mas as palavras que a quebraram, não o acalmaram. - Com que então conheceu Rudolph, não? - O tom da mulher era tenso, ligeiramente rouco. O olhar dela perseguia-o, febril. Prosseguiu. - Eu não sei o que ele lhe disse. Mas é preciso não acreditar em Rudolph, sabe? Nada do que ele diz é inteiramente verdade. Ele contou-lhe a fantasia de que foi escravo de uma velha? E disse-lhe o que lhe fez? Ou disse que fui eu que o fiz? Às vezes, acusa-me.
- Vagamente. - Logo que respondeu, percebeu que se tratava de uma resposta comprometedora. Não a dava por ingenuidade mas, no fundo, por ser incapaz de mentir diante dos olhos de Mrs. Miriam que o vasculhavam até às entranhas. Mudou de conversa. - O Leo? Onde vamos?
- Não houve velha nenhuma -, insistia ela. - É um delírio. Ninguém a comeu.
Entraram na cozinha.
- Olhe, não está aqui -, disse a mulher. - Pensei que sim, como ouvi ruído, julguei que tivessem vindo comer alguma coisa. Mas sente-se, Mr. Lawford, sente-se aqui um pouco. Não quer um pastelinho? Eu volto já, vou ver se lhe trago Leo. Estão com certeza no quarto. Diabo de rapazes.
Enquanto Mrs. Miriam saía, transportando consigo a pá, James principiou a sentir-se mais nervoso do que nunca. A ausência de Leo incomodava-o de uma forma bizarra. Sentia que uma angústia se apoderava lentamente do seu peito. O coração batia descompassadamente. Ouviu ganir. Não. Gritar, lá em cima. Rudolph, cadáver ambulante, pobre de Cristo crucificado, uivava de um modo que se lhe cravava no pescoço. Não foi capaz de se sentar. Andava de um lado para o outro. Leo, pensava! Onde estás tu? Onde estás tu?, perguntava-se em surdina, entre trovões que faziam estremecer a noite.
Reparou na caixa dos pastéis.
Retirou, delicadamente, um, segurando-o entre dois dedos, como se fosse uma pinça.
- Só faltava que a bruxa me envenenasse com um pastel - suspirou. E, no momento imediato, perante o absurdo da ideia, sorriu e acalmou.
Não tinha fome, mas mastigou o pastel como se fosse uma pastilha, algo que o fizesse mascar, que lhe permitisse movimentos em que concentrasse a sua energia angustiada.
Tenro. Tenro. Muuuito tenro e saboroso.
Bruscamente, cuspiu qualquer coisa.
Uma unha. Uma unha suja.
Instantaneamente, estupidamente, associou aquela unha a uma memória, e sussurrou:
- É verdade, não posso esquecer-me de dizer ao Leo para cortar as unhas. Está com elas tão sujas...
O horror desta associação, o significado profundo da relação que lhe surgia no espírito deixou-o apavorado. Cuspiu o pastel. Fora uma compreensão súbita, como um hediondo e repugnante relâmpago. Se tivesse demorado mais tempo a perceber, teria morrido sem saber o que tinha acontecido. Assim, a intuição trágica da verdade foi a última iluminação que teve em vida porque, no momento seguinte, uma pá pesada caía sobre a sua cabeça, fendia-a, matava-o.
Caiu no chão, o seu rosto sobre a pequena e suja unha.
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5 comentários:
...há mais? Ainda mais macabro e nojento?
Olha, voltaste. Bem-vinda again. Não, não continua. Suponho que isto é mesmo o mais macabro e nojento de que sou capaz!
Oh, obrigada!O/a Zorbas e a Angel inibiram-me um bocado até porque não faço ideia de quem sejam e o grau de familiaridade entre vocês é tal que me deixou confesso um pouco amuada. Já agora gosto no novo look do teu blog...não sei se reparaste no meu??? mas estou sempre a mudar, deve ser porque gosto de tantas coisas que não consigo decidir;)
Voltei porque os pastelinhos eram muito tentadores;)mas já acabaram, ooooh.
Está muuuuito giro :)
Porque será que num episódio tão macabro, a coisa que mais me mete impressão é o facto do tipo encontrar uma unha *suja* dentro do pastel? Eu não sou normal, pois não Gil?
1. Não, não és, felizmente...
2. Ainda bem que gostaste. Andei tão angustiado depois de ter escrito o último episódio, pensando: Já está! Agora é que acabei de perder os meus últimos amigos. Quem tenha lido, quando me vir vai fingir que não me conhece...
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