segunda-feira, dezembro 03, 2007

REIS MAGOS A JACTO

NOTA: A essência do cristianismo reside no perdão; espero que os meus leitores cristãos sejam mais coerentes do que eu, e façam do meu texto um pretexto para o exercício de me perdoarem...


Na qualidade de ateu empedernido, tornou-se-me, no início do período mais coerente da minha vida, praticamente impossível a convivência com o presépio e tudo quanto este simboliza. Depois de muito instado, chegava a aceitar a àrvore de Natal. Com dificuldade e muitos resmungos, é certo, mas vá: à àrvore ainda fechava os olhos! Agora, um presépio, um menino ao frio, sobre palhinhas deitado, um pai que não era pai mas fazia de conta que não se importava, uma mãe que alegava permanecer intocada apesar de todas as evidências, uns reis cuja sensatez os levava a oferecer, como prendas para um recém-nascido, coisas tão desadequadas como ouro, incenso, mirra, uns pastores, uma vaca, um burro, isso era já mais do que podia suportar.

Mais tarde, não por ter ganho fé em Deus, mas por ter perdido a fé na coerência - a qual, no limite, se confunde com intolerância -, dei por mim a olhar para presépios e a descobrir uma espécie de beleza discreta na subordinação de tantos adultos a um bebé. Pensava para comigo: «E isso não é nada! Deixem o menino chegar à idade da minha Margaridinha, que já vão ver o poder que uma criança realmente tem sobre os crescidos!»

Num dia de arrumações, descobri, em algum baú herdado, um conjunto de figuras de presépio, e senti-me fundir, senti-me derreter, quase enternecido, derramando-me por sequências de imagens dos Natais da minha infância, dos presépios que então me fascinavam; não só os de casa - ou das sucessivas casas por onde passei -, mas também o(s) presépio(s) da(s) escola(s). Recordei-me de como certo dia, na adoração de um deles, quase pegava fogo à roupa. Não me perguntem como, porque não reparara em nada e, quando regressei a casa com a camisa queimada, não sabia explicar exactamente o que sucedera. E nunca soube!

Mas ainda assim, mesmo depois dessa viagem pelo tempo, precisei de semanas para digerir esta súbita saudade, esta inexplicável vontade de retomar o presépio. Pensava: «Que mal faz?» Justificava: «Trata-se tão-só de aceitar um mito belo sem ver nele mais do que um mito belo, trata-se de celebrar a família, sob a forma de um grupo disfuncional como, no fundo, todas as famílias são hoje. (Presépio: Pai ausente, padrasto indiferente, mãe em delírio, filho megalómano...)

Quando, por fim, encolhi os ombros numa muda aceitação deste símbolo, quis, em todo o caso, que ela tivesse qualquer coisa de singular. Digamos: uma concessão ao ateu rabugento em mim- Que, ao menos, não fosse um presépio comum. Que não fosse um passo em direcção à massificação natalícia. Que tivesse um toque pós-moderno. Um toque... ateu?!

A minha ideia, ó delírio, consistia simplesmente nisto: elevar o presépio, colocando-o sobre um pedestal de caixas que escondesse, aos olhos de todos, um comboio eléctrico. Esperem: o comboio carregaria, subtilmente, os três reis magos. Mas, insisto, ninguém veria comboio algum. Em contrapartida, os embevecidos espectadores que eu idealizava, seriam postos ante o espectáculo da autonomia de Baltazar, Gaspar e Belchior, como se estes se deslocassem, sozinhos, numa alegre cavalgada (ou camelada) em direcção ao menino Jesus. O comboio seria, portanto, o mecanismo secreto, o motor escondido da sua aproximação.

O que separa o génio do ridículo é, por vezes, uma linha tão ténue, que grandes ideias acabam por afundar no gozo e na troça gerais.

Poupo-vos a descrição do que aconteceu diante dos olhos incrédulos dos primeiros espectadores que convidei: os reis magos, numa desenfreada e absurda pressa, como se estivessem já muito atrasados, descrevendo um movimento demasiado ruidoso, demasiado circular e repetitivo, em torno de Jesus, mas sem nunca realmente O visitarem, incapazes de quebrar o perpétuo circuito em que se viam lançados, provocaram, sobretudo, gargalhadas. Que público reaccionário. Que falta de sensibilidade artística. Que tacanhez para o que é novo, o que é diferente, o que não foi feito para este tempo.

E assim, morrem grandes ideias. Aposto que a História está carregada de destroços que prometiam tanto...!

Se calhar, desisto do presépio.

2 comentários:

lara_1012 disse...

Não desistas! Ainda te falta lá o esquadrão suicida da Judean People's Front. Ou da People's Front of Judea...

zorbas disse...

E esqueceste-te dos anjos cantando nos céus!...
O trágico resulta quando a ideia sublime se concretiza e materializa.