O indivíduo era horroroso: calvo de um modo perfeito, o rosto perfeitamente triangular, descarnado, como uma caveira (uma caveira à qual uns rapazes maldosos, irreverentemente, tivessem colado duas consideráveis e salientes orelhas).
Ou ele sorria, ou fazia um esgar. Tinha umas gengivas grandes, que o sorriso, ou lá o que era aquilo, revelava quase até ao nariz.
James Lawford costumava tranquilizar-se, na sua insegurança em relação a certos desconhecidos, fazendo o mesmo que Deus convidara Adão a fazer: nomeando-as. Como se, pelo poder mágico da palavra, atribuir um nome fosse domar e dominar uma criatura. Ali, hesitava: chamar-lhe-ia, no seu espírito, Crucificado Ambulante? Ou Cadáver?
Cadáver Crucificado Ambulante aproximava-se dele.
James sorriu-lhe:
- Boa noite. Isto é que está um tempo. O meu carro está atolado... sou... sou o pai de Leo.
Cadáver Crucificado não lhe respondeu. Ao fim de alguns segundos que pareceram fracções de eternidade, estendeu-lhe uma mão longa, inesperadamente peluda.
Falou:
- Eu não sei como me apresente. Mas sente-se, sente-se.
Tinha uma voz fraca. Arquejante. Ligeiramente aflautada. Era a segunda surpresa: esperara um tom cavo, lúgubre, possante.
Sentaram-se.
- A sua mulher... - procurava James obstruir o silêncio fosse como fosse, mesmo com incoveniências: tudo menos deixar que o silêncio subisse como uma trepadeira venenosa pela sala obscura - ... isto é, penso que é a sua mulher, Mrs. Miriam... foi procurar uma pá. No outro dia, vi-o à janela lá de cima. Também me viu?
- Vi-o.
- A sua mulher... ou melhor... enfim, Mrs. Miriam deve ter-se confundido; afirmava que eu não podia ter visto ninguém. Que o senhor era um crucifixo.
Riram ambos. Cadáver Crucificado durante pouco tempo, cansando-se de imediato e precisando de respirar fundo.
Depois, sem qualquer transição lógica, entrou, pausadamente, numa confissão absurda (provavelmente fantasiosa, julgou James), a que as características do lugar ou a presença, porventura rara, de um hóspede, pareciam impeli-lo:
- A minha mulher, como diz, procura proteger-me. [Pausa]. Mente sempre aos intrusos que julgam ter-me visto. [Pausa demorada, como para deixar a expressão «intrusos» penetrar no espírito do intruso]. Porque eu, realmente, não sou ninguém. [Tosse]. Não existo. Para efeito nenhum. Não tenho um único documento. [Pausa longa e, a seguir, em voz melancólica].Nasci em casa dos meus pais, nunca me registaram, fui oferecido, ou vendido [pausa] a uma velha que me teve como criado [pausa], eu diria escravo, durante toda a sua vida, aliás demasiado longa para meu gosto [pausa],até que eu já não podia suportá-la mais, e ela morreu.
Riu. A seguir, iniciou-se uma crise. Como se sufocasse, como se se lhe esgotasse o ar.
James estava impressionado. Ou assustado.
(CONTINUA)
sábado, dezembro 08, 2007
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5 comentários:
1. Tens razão, Zorbas, a ideia do latim talvez possa parecer exagerada. Mas é um pormenor extraordinário na criação da atmosfera, não é? Nota que tudo é vago em relação ao local (onde se passa verdadeiramente esta história com personagens de nomes anglo-saxónicos?) e ao tempo (são contemporâneos? Não há telemóveis nem mp-3, o homem usa chapéu e luvas...). Assim, o latim será menos estranho.
2. Quanto ao reaparecimento dos pastelinhos: olha, não queiras apressá-los. Teme-os. Reza para que não reapareçam tão cedo, ahahahahahahah!
Algo me diz que James Lawford não se foi meter em bons lençóis... ai não foi, não... Mas a Mrs. Miriam é mais assustadora do que o Cadáver... huuuummmm...
Mostrei o teu Blog a uns amigos. Queria mostrar tudo aquilo de que mais tinha gostado. Esclarece-me: onde pára aquela história do crime quase perfeito do homem que idealiza a morte da horrorosa mulher enquanto fazia fisioterapia?
Não quero dizer que esta história não esteja prometedora, mas é só isso: promete, mas não desenvolve.
Talvez possas pegar na deixa de ANGEL "não se foi meter em bons lençóis..."
Querida/o amiga/o:
1. A tragédia a que te referes chama-se «Um Criminoso com o Joelho Muito Mau». Episódios I, II e III entre 7 e 8 de Abril de 2006
2. Tudo o que vale a pena tem o seu tempo próprio de maturação. Concentra-te nos pastelinhos, teme-os e não te apresses. E não me apresses. E não os apresses. Beijos e abraços.
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