kaostico
Conheci de ouvido o Barata Moura talvez no fim dos anos setenta, quando ele era um alegre baladeiro, de barba encaracolada e viola em punho. Sei que, para além da intervenção contra a burguesia, também cantava para as crianças: o Joana Come a Papa, A Banda do Maestro Pinguim, A cidade do Penteado e outras, que talvez ainda hoje atiremos aos nossos filhos, eram a marca do Barata Moura - havia um disco seu chamado «O Fungagá da Bicharada»
Conheci um outro Barata Moura, talvez nos anos oitenta, na Universidade de Lisboa: era Professor de Filosofia; estou a vê-lo sobre o estrado do anfiteatro, a mesma barba encaracolada, os óculos de aros grossos, a imitar tartaruga, escorregando pela cana do nariz, a voz poderosa e bem colocada, mas para nos lançar na luta-livre da reflexão filosófico-política. E, precisamente pelo desnível entre estes dois Barata-Mouras, o das cantigas infantis e o das filosofias maduras, pelo reconhecimento de uma tão paradoxal diversidade na pessoa, deixei-me arrastar, hipnotizado, adorando-o secretamente, usando cada uma das suas palavras como degrau interior.
Tornei a reencontrá-lo, muito mais tarde, como Orientador de um inesquecível Seminário de Mestrado: Kant, Hegel, Fichte, o idealismo alemão sob a lente de Marx, que tudo invertia e renovava...
Nunca mais o ouvi cantar. Nem, entretanto, falar. Tornara-se Reitor da Universidade, perdi-o de vista. Reencontrei-o no outro dia, no ecrã da minha televisão, muito «Reitor», muito cheio de si, debitando lugares-comuns perante uma entrevistadora reverente e uma assistência maravilhada, concordando, respeitoso, dialogante, com um outro interveniente, Dom Policarpo, para, um minuto depois, retorquir com uma estranha má-criação à intervenção de uma pobre Maria José Nogueira Pinto, do alto de um pedestal que levava consigo, paternalista, douto, superior, implacável, só tornando a serenar, a seguir, diante das palavras, novamente, de Dom Policarpo...
De certo modo, tudo isto me entristeceu. Neste Barata Moura que se acerta com o quase-Papa e reduz grosseiramente a outra pessoa a nada, tive dificuldade em reconhecer o filósofo dos meus intemporais tempos da universidade - como se o estatuto de Reitor houvesse exercido um terrível e triste efeito no seu espírito.
Se ao menos, em vez de nos deixar assistir ao espectáculo de ficar completamente gagá, regressase uma última vez, por alguns instantes, ao Fungagá...
sexta-feira, novembro 18, 2005
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