Quando tomou bruscamente consciência de si, como se acabasse de acordar, estava na casa de banho, em pé, completamente nu, diante do espelho, segurando uma lente de contacto num indicador estendido. Não se lembrava de como, quando, por que fora para ali. Os seus últimos gestos haviam-se apagado. Em rigor, nem sequer sabia se, por exemplo, ia pôr aquela lente de contacto, e se no olho direito, se no esquerdo, ou se a estava tirando. Sabia simplesmente que era o Taveira, vivia sozinho, trabalhava em propaganda médica.
Pensando na sua estranha situação, na sua estranha nudez, na sua vida de todos os dias, deixou que uma memória que não dizia respeito nem àquela casa de banho, nem verdadeiramente àquele homem que o espelho reflectia, uma memória de algures, principiasse a invadi-lo. O sonho, pensou. Era a memória de um sonho que tivera... quando?
No sonho, Taveira não era Taveira. Era Brzk. E não tinha uma casa de banho numa casa de S. Domingos de Rana. Vivia na parte mais profunda e obscura do interior do planeta Qwy, a parte aonde não chegava a luz da lua interior, artificial, de que dependiam os seres da primeira camada ou círculo.
Na zona profunda em que vivia Brzk, o último círculo, só as lagartas luminosas produziam uma ténue claridade, que ele e o seu grupo ampliavam juntando, inteligentemente, várias dessas lagartas em receptáculos transparentes: uma espécie de candeeiros...
O seu grupo, envelhecido, banido, esfomeado e subversivo, vivia, apesar de tudo, num estado de permanente euforia: os cães dançavam e os homens e as mulheres devoravam, durante longas cerimónias, de cariz sexual, as lagartas luminosas, que se não os alimentavam, alegravam o espírito.
Por vezes, o bando sofria ataques. Animais ferozes ou religiosos fanáticos, que os odiavam, surpreendiam-nos com uivos, gritos e pedras-maléficas.
Quando o planeta fora invadido por semideuses, mergulhados no seu eterno combate com os invejados deuses, tudo mudou. A estratégia dos semideuses invejosos não previa o confronto directo: em vez disso, raptavam espécies nos mais diversos recantos do universo, escravizavam-nas e lançavam-nas, transformadas em hordas de combate, contra os divinos.
Foi por tudo isto que a Assembleia dos Pálidos, que reinava na primeira camada, seres superiores, próximos da lua interior, decidiu fazer um trato com o grupo de Brzk: por muito andrajosos, por muito subversivos, eles eram, naquela altura, os únicos - talvez por não terem muito a perder - a poderem ser enviados aos semideuses, deixando-se escravizar por eles, com a secreta missão de assassinar a mãe mortal - que, numa sucessão imortal de filhas de filhas, de filhas, embora se julgasse que era sempre a mesma... - alimentava(m), desde sempre, os invejosos semideuses...
Taveira suspirou. A lente de contacto principiara a secar no seu dedo. Havia um equívoco. Teria Taveira estado a sonhar? Como poderia um simples sonho ser tão demorado, tão completo, tão vívido, e possibilitar uma memória tão intensa, tão carregada de sentido - tão cheia precisamente do sentido que, pelo contrário, o quotidiano de Taveira nunca revelara? Por que raio não seria o contrário? Por que não seria ele, de facto, Brzk? Por que não seria Taveira, inversamente, o mais miserável, o mais medíocre dos seus sonhos? Suspirou novamente. Fechou os olhos: procurava despertar. Procurava regressar ao seu planeta, de onde, por um desnível do universo, com certeza que era essa a explicação, por um desnível do universo caíra numa pele que lhe não pertencia...
Pensando na sua estranha situação, na sua estranha nudez, na sua vida de todos os dias, deixou que uma memória que não dizia respeito nem àquela casa de banho, nem verdadeiramente àquele homem que o espelho reflectia, uma memória de algures, principiasse a invadi-lo. O sonho, pensou. Era a memória de um sonho que tivera... quando?
No sonho, Taveira não era Taveira. Era Brzk. E não tinha uma casa de banho numa casa de S. Domingos de Rana. Vivia na parte mais profunda e obscura do interior do planeta Qwy, a parte aonde não chegava a luz da lua interior, artificial, de que dependiam os seres da primeira camada ou círculo.
Na zona profunda em que vivia Brzk, o último círculo, só as lagartas luminosas produziam uma ténue claridade, que ele e o seu grupo ampliavam juntando, inteligentemente, várias dessas lagartas em receptáculos transparentes: uma espécie de candeeiros...
O seu grupo, envelhecido, banido, esfomeado e subversivo, vivia, apesar de tudo, num estado de permanente euforia: os cães dançavam e os homens e as mulheres devoravam, durante longas cerimónias, de cariz sexual, as lagartas luminosas, que se não os alimentavam, alegravam o espírito.
Por vezes, o bando sofria ataques. Animais ferozes ou religiosos fanáticos, que os odiavam, surpreendiam-nos com uivos, gritos e pedras-maléficas.
Quando o planeta fora invadido por semideuses, mergulhados no seu eterno combate com os invejados deuses, tudo mudou. A estratégia dos semideuses invejosos não previa o confronto directo: em vez disso, raptavam espécies nos mais diversos recantos do universo, escravizavam-nas e lançavam-nas, transformadas em hordas de combate, contra os divinos.
Foi por tudo isto que a Assembleia dos Pálidos, que reinava na primeira camada, seres superiores, próximos da lua interior, decidiu fazer um trato com o grupo de Brzk: por muito andrajosos, por muito subversivos, eles eram, naquela altura, os únicos - talvez por não terem muito a perder - a poderem ser enviados aos semideuses, deixando-se escravizar por eles, com a secreta missão de assassinar a mãe mortal - que, numa sucessão imortal de filhas de filhas, de filhas, embora se julgasse que era sempre a mesma... - alimentava(m), desde sempre, os invejosos semideuses...
Taveira suspirou. A lente de contacto principiara a secar no seu dedo. Havia um equívoco. Teria Taveira estado a sonhar? Como poderia um simples sonho ser tão demorado, tão completo, tão vívido, e possibilitar uma memória tão intensa, tão carregada de sentido - tão cheia precisamente do sentido que, pelo contrário, o quotidiano de Taveira nunca revelara? Por que raio não seria o contrário? Por que não seria ele, de facto, Brzk? Por que não seria Taveira, inversamente, o mais miserável, o mais medíocre dos seus sonhos? Suspirou novamente. Fechou os olhos: procurava despertar. Procurava regressar ao seu planeta, de onde, por um desnível do universo, com certeza que era essa a explicação, por um desnível do universo caíra numa pele que lhe não pertencia...
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