Os portugueses que conduzem têm um gesto muito próprio, muito típico, muito simbólico, que é o de porem uma mãozinha de fora da janela no momento em que avançam: quando não têm prioridade mas mesmo assim vão em frente, quando esperam que lhes cedamos a vez, quando fazem, contra nós, alguma coisa que os compromete e envergonha um pouco, ou quando se preparam para a fazer. Esse maravilhoso símbolo que é a mão lançada de fora, como uma bandeirola, vive da sua ambiguidade; vive de não se saber com precisão o que significa e de, no mesmo lance, significar diversa e talvez opostamente: ela quer dizer, por um lado: «Pára, que eu vou avançar»; quer dizer, ao mesmo tempo, vagamente: «Obrigadinho», ou «Estás a deixar-me entrar? Obrigado, pá...», ou, também: «Vá lá, faz-me um jeitinho» e, sobretudo (ia-me esquecendo) um: «Desculpa» ou «Desculpa aí, pá!»
Não sei se, por si só, este gesto tão peculiar me autorizaria a interpretar a essência lusa. Mas, a fazer fé no livro de José Gil, Portugal Hoje: O Medo de Existir, que, francamente, produz toda uma filosofia sobre a portugalidade a partir da observação de gestos mínimos, ou de frases corriqueiras, ou de comportamentos típicos, por que não? Vejamos, pois: o português tem sempre em mente passar à frente de alguém. Não estabelece grandes metas: basta-lhe entrar numa rotunda, ou não parar num stop, ou ultrapassar uma velhinha que guia um automóvel pouco aguerrido. O que interessa é que possa ficar com a sensação de que enrolou alguém, de que, se não foi muito longe, pelo menos ficou à frente de um gajo menos lesto, tirou o lugar ao outro, pregou uma partida. Mas é próprio do pequeno espírito luso que a sua pulhice, aquilo que, na terminologia filosófica de José Gil se chama o «xico-espertismo», nunca se assuma por inteiro na agressividade que a move: assim, se por trás da sua «ultrapassagem» está um rancorzinho de trazer por casa, uma ferocidade miúda, é necessário que ela se possa transformar, se for caso disso, num repentino acto de submissão, num agradecimento de última hora ou mesmo num pedido de desculpas. A mãozinha do condutor português é a medida da sua ambiguidade, e esta, como no caso do gesto que estamos vendo, e tanto pode ir da ferocidade de um «Pára aí» até à delicadeza de um «Dás-me licença?» ou à cortesia de um «Desculpa lá o mau jeito» é, por sua vez, a medida da cobardia das suas ousadias...
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