quarta-feira, maio 31, 2006

A EDUCAÇÃO DA MINISTRA

Por alguma inescrutável razão, associada, certamente, a uma persistente candura da minha parte, tudo isto ainda me espanta. Não deveria: a maturidade tem que ver com um conhecimento tão profundo dos seres humanos, que se não deixe surpreender com o que eles possam fazer. Mas espanto-me.
Que a educação pública (Pulido Valente propunha que se lhe chamasse «instrução», nunca mais do que isso) esteja, em Portugal, nas mãos de uma equipa chefiada - e simbolizada - por uma mulher que não gosta dos professores, os considera privilegiados e preguiçosos, irresponsáveis e desleixados; que entende que há uma reforma a fazer e que essa reforma se esgota em ensinar os professores a ensinar, em discipliná-los e em acusá-los dos males; que o insucesso deve ser abolido - o qual não existe, na sua perspectiva, senão porque os professores o provocam, sendo a solução, portanto... forçá-los a não atribuir negativas, ou penalizá-los quando o fazem; que, finalmente, como se o achincalhamento não fosse já suficiente, como se a quebra sistemática da autoridade, da última réstia de autoridade perante os meninos, não fosse grave e carregada de consequências, se deixe agora adivinhar a possibilidade de que os pais dos alunos avaliem os professores - é tudo de uma tamanha perversão ética e pedagógica, exprime uma tal inversão de valores, uma tão grande capacidade de errar no geral e no particular, uma tão grande capacidade de se enganar nos princípios e no concreto, que se torna praticamente insultuoso.

Não interessa perguntar quais as razões psicológicas - que as haverá - desta política suicida. O que alimenta um tal ódio e uma visão tão desfocada, tão, poderíamos dizer, poderosa e sublime no disparate, é-nos aqui indiferente.
Interessa reconhecer que os professores estão frustrados, que se sentem desprezados e desvalorizados; que este seu desvalor, que era já a parte principal da imagem que a sociedade fabricara da «escola» e dos «docentes», se agrava, nas mãos de uma ministra limitada e teimosa, até ao impossível; que não há alternativas - ou que os professores não têm alternativas que não sejam as sindicais, sendo que os sindicatos, por outro lado, primam pelo envelhecimento, pela falta de imaginação, pela incapacidade de analisar e pensar séria e profundamente.

Interessa perceber que os docentes não estão abatidos (no sentido de deprimidos ou cabisbaixos): abateram-nos (no sentido que a palavra adquire nos matadouros). Os professores foram sistematicamente abatidos.

Tão cedo, a cultura não se recomporá deste ataque.
O que está por detrás da seriedade e da inflexibilidade da ministra é, curiosamente, uma cultura do desleixo e da permissividade. Uma cultura de quebra de exigência no ensino. Porque a essa exigência, onde e quando existe, a ministra chama «produção de insucesso».
Hoje, os meninos agradecem.
Os pais dos meninos, obviamente, também.
Amanhã, ver-se-á!

domingo, maio 28, 2006

EM CERTOS MOMENTOS, É MELHOR SER O RATO DA CIDADE

A vida pode ser vivida serena e tranquilamente. Dispensamos a filosofia, essa espécie de doença obsessiva pela pergunta, esse trabalho paciente e vão de desfazer respostas para refazer novas e constantes questões, mergulhamos num túnel com as dimensões do nosso quotidiano, vamos percorrendo passo a passo esse caminho, não tendo como objectivo senão uma melhoria das condições de vida no interior do túnel e, um dia, percebemos que há um grupo fungando em redor e que esse grupo é constituido, afinal, pelos amigos que vieram chorar a nossa própria morte.

Não digo que a outra forma de vida seja a de estar sempre na corda bamba, sempre num frenesí, numa espécie de pára-quedismo, uma perpétua adolescência, um perpétuo desporto radical.
Não digo que a coragem de preferir outra via se deva exercer sistematicamente, nem que tenha de ser o corte sistemático com todas as amarras tecidas ao longo do túnel, tornando-nos em vagabundos do espaço, viajantes intergalácticos.
Digo, somente, que a vida se encarrega, ela própria, de nos enviar surpresas e nos propor riscos.
Às vezes, riscos que respiram perfeição e luz.

Que nem todos os riscos são aceitáveis, é-me evidente.
Que alguns são imperdíveis, que merecem muito, muito, muito de nós - ou que nos merecem mesmo por inteiro, também me parece claro.

Um risco é, de certa forma, o mundo que vem ao nosso encontro.

Por mim, não quero deixar, de vez em quando - se a a possibilidade me merecer, digo-o sem qualquer vaidade ou arrogância -, de ir ao encontro do mundo.

domingo, maio 21, 2006

RELEMBRANDO KARL PROTZKA

Karl Protzka é, com certeza absoluta, o escritor mais obscuro do mundo inteiro. Cidadão do Império Austro-Húngaro e de Viena de onde nunca saiu senão por poucos meses, viveu o auge e a decadência imperiais: é aquele mesmo a quem Musil se refere, nos «Diários», como o seu «amigo bizarro».
Eu próprio, que aqui dele falo, conheço-o pelo mero acaso de o meu avô ter sido o tradutor para português, penso que nos anos cinquenta, do único livro a que se resume a sua obra.
Chama-se «O Órgão Invisível». Tentei ler várias vezes o exemplar já velho e meio-carcomido que me veio parar às mãos, depois de ter passado orgulhosamente por várias estantes de familiares. Devo ter querido lê-lo com quinze ou dezasseis anos - que loucura! - e desistido ao fim da terceira ou quarta páginas; retomei-o aos vinte e não avancei muito mais; a seguir talvez aos vinte e tal, por fim aos trinta. Não sei com que idade mergulhei efectivamente naquele estranhíssimo romance que é o contrário de um romance (o meu avô fascinava-me repetindo amiúde estes pormenores, razão principal de todas as minhas tentativas de leitura), ou que é um não-romance se não um anti-romance: Protzka sonhava escrevê-lo mas, aparentemente, buscava, para o iniciar, uma série de condições ideais, desde a cadeira e a secretária ao papel, passando pela luz, pela caneta ou pelo estado de espírito perfeitos; em vez disso, nunca os reunindo, protelava, protelava sempre, mas ia enchendo caixas com apontamentos acerca do mundo que borbulhava em torno de si e do adiado romance: acerca do que os outros pensavam dele próprio e ele dos outros, acerca do que lhe perguntavam sobre o seu romance e de tudo quanto inventava: que estava a escrevê-lo (o que era falso), que o ia publicar, que concluíra o décimo quarto capítulo...!
Já depois de morto, os seus filhos reuniram esta gigantesca massa de apontamentos, organizando-a numa espécie de pararomance sobre o que seria o seu romance e, sobretudo, sobre a estranheza das relações humanas que se moviam à volta de um romance prometido, desejado, idealizado mas incapaz de vir à tona.

Das duas primeiras páginas, cito estas palavras:

«Uma relação - falo de toda e qualquer relação entre duas pessoas, filial ou fraterna, de amizade ou inimizade, erótica ou irónica - é um corpo que mergulha as suas pernas, por vezes até à cintura, por vezes até ao pescoço, no silêncio e no invisível: pois que o corpo de uma relação entre dois sujeitos é composto não principalmente pelo que os dois dizem um ao outro, e sim pelo que, sobretudo, não dizem um ao outro.[...] desse não-dizer transparecem sempre sintomas: mas transparecem mal, incompreendidos, falseados, deturpados. [...] Como essas indicações, que talvez nem o sejam, nunca se dizem, como nunca se esclarecem por palavras, como, na maioria dos casos, são meras ausências, adensam-se, a pouco e pouco, numa atmosfera de equívocos em que respiram todas as relações. Já imaginaram alguém que compreenda os desejos, ou as intenções de outrem, a partir, quase só, desse espelho invisível e deformante? O ter-lhe certa pessoa falado em último lugar numa reunião de amigos, ou o ter passado na rua como se o não visse, ou, pelo contrário, ter-lhe vindo imediatamente ao encontro, ou, durante a conversa, nunca o ter olhado nos olhos? [...] Ou um certo tom de voz (conhecem algo mais indefinível do que um «tom»?)! [...] O meu romance versará, no fundo (e a expressão «no fundo» é bem escolhida) essa trágica impotência: o paradoxo de um incomunicável resíduo de toda a comunicação ser, talvez, a parte mais importante de toda a comunicação.»

Nunca encontrei qualquer exemplar à venda. Em lado nenhum. Que eu saiba, não voltou a ser traduzido. O que releio frequentemente está muito gasto, muito velho. Gostaria de o mandar encadernar. Não tenho ideia de um outro autor tão profundo e tão extraordinário que seja tão profunda e tão extraordinariamente invisível.

quarta-feira, maio 17, 2006

GRAÇAS E DESGRAÇAS DE UM CÃO DO CARAÇAS (II)

Sempre ouvi dizer que não se escolhe a família. Errado: tenho-a escolhido de tal maneira, que há familiares que vou deixando de frequentar e outros que fazem, cada vez mais, parte quase do meu dia-a-dia.

O que não podemos realmente escolher (senão em teoria) é a vizinhança.

Tenho um vizinho que inventou para si o título pomposo mas vazio de «Administrador da Rua». Na função que se concedeu, manda-me que não estacione o automóvel em determinados sítios ou que não ponha o caixote de lixo demasiado longe do meu portão - tudo isto «porque», quando chegámos «o bairro era já uma "piquena" aldeia, com as suas regras», que não estão escritas em lado nenhum, mas deveríamos acatar «em prol da harmonia da rua».
Este vizinho, de resto, é uma espécie de disléxico em matéria de cores de baldes do lixo previstas para os diferentes dias da semana. Falo do sistema da empresa «Tratolixo»: balde amarelo, para plásticos e metais, recolhido à segunda-feira por exemplo, balde azul, para papel e cartão, noutro dia. Eu e o meu filho inventámos um jogo: damos palpites ao acaso sobre a cor que o vizinho escolherá para cada dia. A única certeza é a de que nunca é a que deveria ser...

Ao lado de nós, partilhando um mesmo muro - um muro baixo, diga-se - está um casal de maus-fígados: um senhor careca e de bigode e uma senhora que oiço sempre aos gritos.
Uma vez, do seu alpendre, via-a vituperando contra um bando de meninas que saíam da escola. Não sei que lhe teriam feito. Mas a mulher dirigia-se, principalmente, à mais alta, garantindo-lhe:
- ... porque tu tens cara para apanhar um par de estalos, percebes!?
Ao que a menina, meio-paralisada, respondia:
- Está bem.

Foi este último casal que arranjou um mini-cão, um bicho pequeno, que se tornará um dia enorme a avaliar pelo tamanho da patorra, mas, entretanto, não passa de uma bolinha peluda.
O Dunga, meu cão de quem vos tenho falado, sentiu-lhe o cheiro no ar, tomou-se de amores, saltou o muro comum - o que nunca antes fizera - e passou a ensaiar surtidas, cada vez mais prolongadas, àquele apetecível quintal.
Estarrecidos, nós gritávamos:
- Dunga! AQUI! JÁ AQUI, DUNGA!!!
Mesmo que o Dunga quisesse, não poderia regressar pelos seus meios: o muro, baixo e fácil de transpor do nosso quintal para o quintal dos vizinhos, é, contudo, absurdamente alto no sentido inverso. Mas o pior é que o Dunga não quer: sexualmente inebriado, tremendo de excitação, tem como ideia única e fixa montar o cachorrinho.
É um espectáculo horroroso.

Lá pedíamos a um dos filhos do casal, assim que o apanhávamos a espreitar o que seria tanta gritaria, que fizesse o favor de pegar no nosso cão e no-lo devolver.
A menina, prestativa, tentava agarrar no Dunga - Dunga esse que, furioso pela interrupção, se tornava ameaçador e ladrava.
O meu filho pedia que o deixassem entrar. Mas o Dunga rosnava-lhe. Foi por isso que o Duarte, um dia, se saiu com esta espécie de poema espontâneo:
- Tenho medo do Dunga. Medo e raiva. Um dia fico tão furioso, que até o meu medo fica com medo de mim...
Quando o Duarte corajosamente o trazia apesar de tudo, prendíamos o cão em casa. E então víamo-lo, inconsolável, pendurado de uma janelinha com vista para o quintal do vizinho, ganindo baixinho, completamente apaixonado.

Quando nos esquecíamos e abríamos a porta, zás, o Dunga que, esse, não se esquecia, passava por nós em voo e mergulhava no quintal dos outros.

O drama repete-se. Ciclicamente. O Duarte chora de nervos. A minha mulher recomeçou a pedir uma caçadeira.

Quando me vê aproximar-me, pela rua, de Dunga pela coleira, a senhora vizinha adverte-me, numa mal contida agressividade:
- Não venha para aqui com essa enguia...
Nem lhe respondo, dignamente ofendido.

O Dunga tem murchado.
Isto é, transposto para o mundo canino, a tragédia de Romeu & Julieta.
Ou melhor, de Romeu & Romeu.

MAS ENTÃO SÓ O FREUD É QUE PRECISA DE SER REVISTO, NÃO?

Há alguns anos, quando o Y era ainda meu amigo e acabara de ter uma filha, não pegava na menina ao colo nem via com bons olhos que alguém se atrevesse a fazê-lo, e dizia, peremptório:
- Não se deve fazer isso. Ficam com uma perspectiva completamente distorcida do mundo: centrada neles próprios e vendo tudo e todos de cima para baixo.
Tenho de vos dizer, desculpem, que na altura as palavras de Y, a quem eu devotava uma admiração praticamente ilimitada, faziam para mim muito sentido, como, aliás, todas as suas teorias (Y era um teorizador nato). Neste caso particular, um sentido porventura bizarro e cruel, mas inegável.
Com o tempo, porém, Y passou-se.
Cortou relações comigo e com o resto dos amigos e da família. De mim, dizia que eu o perseguia e o vigiava escondendo-me por trás de caixotes de lixo. Parece que uma vez me terá mesmo visto a espreitá-lo, meio-oculto pelo seu frigorífico. Tudo, aliás, em conluio com a família - e, principalmente com a mãe, que ele acusava de estranhas macumbas.
A minha ideia, segundo ele, era apoderar-me de um programa de computador por si inventado e com o qual projectava tornar-se um segundo Bill Gates.
Pensando em tudo, recordando isto, julgo que terá havido, da minha parte, alguma sabedoria instintiva no facto de nunca ter passado as suas teorias à prática, por muito que me fascinassem; e nunca ter sido capaz de não pegar no meu filho ao colo...

sábado, maio 13, 2006

GRAÇAS E DESGRAÇAS DE UM CÃO DO CARAÇAS (I)

O Dunga veio pequenino para o seio da nossa família: era um rafeiro meigo e lãzudo, com que procurávamos fazer esquecer, ao nosso filho único, então com cinco anos, a monomania de que lhe oferecessemos «um mano».

Quando, cinco anos mais tarde, o segundo filho acabou por nascer - uma menina -, o Dunga ressentiu-se enormemente: experimentou todos os ciúmes e angústias que haviam passado ao lado do Duarte.
Tornou-se briguento, estúpido e mau. Era uma fonte de permanentes desentendimentos: rosnava, chegou a morder, desobedecia sistematicamente, vingava-se dos ralhos e dos castigos fazendo chichi no tapete ou nos cortinados. Passava entre as grades verdes do quintal e fugia de casa.
Agarrados à ideia simplória de que os humanos são mais inteligentes dos que os canídeos, tapámos com uma rede os intervalos entre as grades por onde ele se escapulia. E ainda estávamos a terminar a obra-prima, já eu pensava precipitadamente: Homens: Um - Cães: Zero. Pois bem: o Dunga aprendeu rapidamente a soltar com os dentes as tirinhas que prendiam a rede às grades; abria espaços; continuou, portanto, a fugir.

Esmagávamo-lo sob uma disciplina espartana, ou esforçávamo-nos diligentemente por isso, mas, entretanto, vinha a minha sogra passar connosco aqueles eternos períodos de tempo imóvel e, nas nossas costas, subvertia as regras, furava as proibições, ria-se de nós em óbvia cumplicidade com o cão.

Em virtude de todo este processo, o Dunga degradava-se: mais velhote, hirsuto, sujo, feio e negligenciado, era como se tivéssemos recolhido um sem-abrigo antipático e de mau feitio. Parecia um trapo.
O Duarte já não tinha tempo nem vontade de brincar com ele, a minha mulher andava sempre à beira de um ataque de nervos, pronunciando palavras que me faziam temer seriamente pelo seu equilíbrio psicológico, como: «Ai, se tivesse aqui uma caçadeira...!» Eu, secretamente, começara a odiar o cão.

Em contrapartida, a minha filha, esse novo e central ser que emergira no meio de nós, dedicava ao cão uma atenção muito fixa. Assustava-se com os latidos despropositados em que o Dunga se estava a especializar, mas interessava-se muito por ele e o seu olhar seguia-o com uma uma curiosidade divertida.
O Dunga, pressentindo ali um aliado, nunca tentou fazer-lhe mal. Queria aproximar-se, cheirá-la, lamber-lhe as mãos.
Decidimos, portanto, levá-lo ao veterinário.
Tomou um fabuloso e exigente banho, foi tosquiado e desparasitado: no regresso, parecia outro.

Sem a sua lã negra e desgrenhada, tornava-se um cão magrinho e ágil, de patas finas, uns olhos lindíssimos, finalmente a descoberto, e uma cauda artisticamente aparada.
Quase instantânea e instintivamente, o amor que recalcáramos por tanto tempo desabou de novo sobre ele.
O interesse da minha filha mantém-se muito vivo. E o carinho que espontaneamente rebrotou, fácil, sem custo, fá-lo feliz e acalma-o como um soporífero.

Parece mesmo um final feliz. Claro que, infelizmente, a história continua - não foi por acaso que acrescentei ao título um «I».
Mas, entretanto, pergunto-me: se é este o poder afrodisíaco de uma simples tosquiadela, não estará na altura de eu próprio ir cortar o cabelo?

quinta-feira, maio 11, 2006

SOBRE O QUE AJUDA E O QUE DESAJUDA

O melhor que pode acontecer a um pensar em formação é deparar, no seu percurso, com um pensar mais forte - suficientemente forte para não desejar dominá-lo, rigoroso, crítico, exigente; o pior que lhe acontecerá, será encontrar e depender de um pensar fraco - tão fraco que anseie por dominá-lo -, superficial e benevolente.

segunda-feira, maio 08, 2006

O QUE NÃO VOLTA MAIS

Compreendo que me tornei, por fim, um homem, no momento em que encontro no sótão poeirento uma banda desenhada da Mafaldinha, corro para a sala para aproveitar o parco tempo que ainda me resta a sós em casa, deliciado, saudoso das personagens que me fizeram rir, e vou passando as páginas, à procura do Manelinho, da Susaninha, do Filipe, da Liberdade - cada vez mais cabisbaixo, esmorecido, voltando ainda atrás, esforçando para mim mesmo um pouco convincente sorriso, ou um sopro que não chega a conseguir passar por riso. Não foi a Mafaldinha que envelheceu: fui eu. Não foi o humor dela que se perdeu: foi o meu que se transformou.

Porque a Mafalda, aliás, a própria, nunca teve sentido de humor. Ríamo-nos das suas afirmações, da sua indignação em face das injustiças,mas a verdade é que nada, nela, era pensado ou dito com o intuito de ter graça. A piada residia precisamente nesse pormenor: a Mafaldinha via realmente o mundo assim, interrogava-o com veemência crítica. De certo modo, não nos ríamos com ela, mas à custa dela e do seu desajustamento de criança precoce num mundo estupidamente adulto.

O que descubro agora é que me enganei em relação a quase todos os meus heróis de adolescência. Por que raio gostava eu tanto do Bip-bip e me solidarizava com ele contra o coiote - quando, hoje, percebo que o Bip-bip é a simples encarnação da velocidade estúpida ou da estupidez veloz, uma ave rápida e sem outros dotes, que leva, contudo, sempre a melhor, sabe-se lá porquê, enquanto o coiote que, esse sim, é o protótipo do engenho e da astúcia, talvez mesmo da inteligência, ou de um magnífico maquiavelismo cheio de recursos, que se multiplica em planos, persistentemente, está destinado a cair de precipícios, a chocar com muros, a ver as suas bombas explodirem-lhe nas patas ou a apanhar com bigornas em cima..?
Hoje, claramente, estaria do lado do coiote. Ao mesmo tempo, reconheço que, sem a inocência que me fazia estar torcendo incondicionalmente pelo mais fraco, pela presa, as histórias fazem-me sentir levemente culpabilizado.

Também no Incrível Hulk tudo se tornou demasiado claro. O que eu apreciava na personagem era uma ambiguidade moral que nunca consegui desvendar e, de certo modo, me fascinava. O Hulk era bom ou era mau? Esta pergunta incómoda, que perturbava a minha natural necessidade de uma clareza maniqueista, trazia um leve travo de angústia. E, no entanto, tratava-se de uma angústia que me abria portas e me fascinava: se ele era bom (e devia ser: estávamos a falar da personagem principal), por que razão o perseguiam os polícias, às vezes o próprio exército? Tinha feito mal a alguém? Este sabor a confusão apaixonava-me. Hoje compreendo o Hulk; mais: compreendo que raramente os polícias e o exército constituem o lado «bom» de uma sociedade. Faz sentido. Mas sem o seu mistério intrínseco, o Hulk nunca mais me pareceu incrível.

Um adulto incapaz de regressar, por um momento que seja, aos heróis infanto-juvenis, e que até usa esta detestável expressão para se lhes referir, é um adulto defraudado.
Um adulto que perdeu de vista um tal segredo está prestes a tornar-se um tipo cinzento.
Um adulto que analisa tudo e olha cerebral e crescidamente para o Homem-Aranha, e que nunca mais voltou a querer ser o Batman, é um adulto que desperdiçou a sua infância.

domingo, maio 07, 2006

À ESPERA DE AJUDA MASCULINA

Mariana, que não conseguira adormecer por causa de uma sensação de desequilíbrio que não chegava a ser enjoo - a cabeça como se não tivesse corpo, o corpo como se não pudesse distinguir entre estar de pé e estar deitado -, soergueu-se repentinamente na cama, suando muito, como se a alma se quisesse despegar-se-lhe da carne, como se preferisse morrer de uma vez ao sacrifício de uma existência que se confundia com a má-disposição. Ou vomito ou morro, pensou. Ou vomito ou morro. Levantou-se. Correu, descalça, pelo corredor, até à casa de banho. Caiu ao pé da sanita, procurando, com as mãos, o frio do azulejo. Suava tanto. Sentia-se tão mal, tão mal, tão farta de ainda estar viva. Mas não vomitava. Percebeu que a sua ladainha, Ou vomito ou morro, ou vomito ou morro, se tornara inteiramente certa, um princípio religioso. Tenho de vomitar.
Ajoelhou-se, com as pernas a tremer, uma horrorosa fraqueza no corpo, uma fadiga que era o seu único motor vital, ou quase: o verdadeiro motor era a vontade de vomitar.
Baixou-se sobre a sanita. Pairou, como um corpo esvaído.
Introduziu um dedo na boca para forçar a erupção. Mais fundo. Mais. Engasgava-se, mas não mais do que isso.
Bruscamente, coitada, Mariana sentiu que algo, uma força, a empurrava por dentro de si, do estômago até à boca, cada vez mais decidida - um sobressalto, um rompante, uma dor nos músculos, um mal profundo e, sem chegar ao alívio, porque o esforço era enorme e se sobrepunha a tudo, ela vomitou.
Gritava como se parisse.
Uivava.
Estava só. Profundamente só. Não tinha pausas. Logo que uma primeira descarga tinha fim, chegava-lhe outra fúria das entranhas.
Gritava.

Até que ouviu, aí sim, pela primeira vez aliviada, entre os seus próprios urros e estertores, os passos do João, que se aproximava no corredor.

João ia ajudá-la. Segurar-lhe na cabeça que lhe doía. Apoiá-la, confortá-la. «Minha querida, minha querida». Anda, João, despacha-te, não vês que eu estou morrendo? Não vês? Anda, João. Parecia-lhe que o homem demorava uma eternidade a chegar. Ajoelhada, com a boca sobre o buraco da sanita, olhava, atenta, ansiosa, para a porta.

João chegou. Estava à porta. Querido João.

João disse-lhe, ensonado:

- Olha, meu amor, assim não consigo dormir. Amanhã tenho de acordar muito cedo. Vou fechar a porta da casa de banho por causa do barulho, está bem?

Fechou-a.
E regressou ao leito.

sexta-feira, maio 05, 2006

DIA DA MÃE NA CASA DA MINHA AMIGA SÃO

A minha amiga São quer, no Dia da Mãe, reunir um grupo de mães e de filhos para que estes possam proporcionar e dedicar àquelas uma qualquer criação sua: um poema, uma peça de teatro, uma música.

Deixo aqui em primeira mão o simplicíssimo texto que preparei para ler. É só o que vou fazer.

Eu sempre tive por esta mãe, mesmo quando já não era tão criança como isso, uma espécie de fé. Sempre esperei dela milagres e acreditei piamente que os faria.

Vou contar um episódio a que ela não assistiu, para mostrar de que tipo de fé vos estou a falar.

Quando eu tinha a idade do meu filho Duarte, ou era, talvez, um poucochinho mais novo, sentia um prazer inexplicável em andar no carro do meu tio António.

O tio António era um médico popular em Lourenço Marques, irmão de meu pai, proprietário de um bólide minúsculo, um descapotável, que corria pelas estradas sempre cheio de crianças. (O que hoje se não insinuaria, coitado do tio António...)

Num dia de Carnaval, o tio António levou-nos, a mim e aos meus primos, a uma festa que, penso eu, haveria algures na Baixa. Eu ia mascarado. Íamos todos mascarados.
O tio António buzinava numa buzina roufenha, já de si carnavalesca, enquanto nós, os garotos, lançávamos serpentinas pelo ar.

Subitamente, quando menos esperávamos, vimo-nos sugados para o interior de um caos de automóveis, ruídos e mascarados. (Os bêbedos e os mascarados eram, nessa época, o objecto superlativo dos meus terrores).
Os carros não se moviam. O ruído era, para recorrer a um lugar-comum, verdadeiramente ensurdecedor. E havia mascarados dançando por todo o lado, em cima de tejadilhos e de capôs, ou caindo sobre nós. Eu estava atordoado.
Já não me agradava tanto estar ali.
Sentia-me numa sucursal do inferno.

Então, aconteceu o pior:
Um carro, no meio da confusão, chocou, por trás, contra o bolidezinho do tio António.

Lembro-me de meu tio pondo-se, num instante, fora do automóvel para discutir, de pé, com o outro condutor, um senhor vestido de mulher; lembro-me desse senhor estar muito zangado, com as veias do pescoço inchadas; lembro-me dos seus perdigotos como se os revisse.
Lembro-me de mais pessoas que se vinham aproximando, quase todas mascaradas e algumas previsivelmente bêbedas, ou seja, um bando juntando descoordenadamente os meus dois maiores medos.
Lembro-me do tio António tomando nota, num caderninho, ou numa agenda, de não sei que dados do homem vestido de mulher.

Lembro-me, por fim, de que naquela confusão, a única coisa que eu repetia, meio escondido no bólide amachucado, era, com voz de choro:
- Se a minha mãe aqui estivesse...! Ah, se a minha mãe aqui estivesse...

Ninguém me ouvia por dentro da gritaria, dos apitos, das bebedeiras e da mascarada. Mas eu insistia, como numa oração, profundamente convicto:
- Se a minha mãe aqui estivesse!

ÚLTIMAS NOVIDADES

Não pensem, invisíveis e silenciosos leitores, que se livraram de mim.
Sucede simplesmente que tenho o computador avariado. Com o monitor a piscar, a piscar.
Raramente tenho podido aceder.
Mas tudo tem arranjo. Mais tarde ou mais cedo.
Voltarei.
Aaaaaah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah!
VOLTAREI.