sexta-feira, maio 05, 2006

DIA DA MÃE NA CASA DA MINHA AMIGA SÃO

A minha amiga São quer, no Dia da Mãe, reunir um grupo de mães e de filhos para que estes possam proporcionar e dedicar àquelas uma qualquer criação sua: um poema, uma peça de teatro, uma música.

Deixo aqui em primeira mão o simplicíssimo texto que preparei para ler. É só o que vou fazer.

Eu sempre tive por esta mãe, mesmo quando já não era tão criança como isso, uma espécie de fé. Sempre esperei dela milagres e acreditei piamente que os faria.

Vou contar um episódio a que ela não assistiu, para mostrar de que tipo de fé vos estou a falar.

Quando eu tinha a idade do meu filho Duarte, ou era, talvez, um poucochinho mais novo, sentia um prazer inexplicável em andar no carro do meu tio António.

O tio António era um médico popular em Lourenço Marques, irmão de meu pai, proprietário de um bólide minúsculo, um descapotável, que corria pelas estradas sempre cheio de crianças. (O que hoje se não insinuaria, coitado do tio António...)

Num dia de Carnaval, o tio António levou-nos, a mim e aos meus primos, a uma festa que, penso eu, haveria algures na Baixa. Eu ia mascarado. Íamos todos mascarados.
O tio António buzinava numa buzina roufenha, já de si carnavalesca, enquanto nós, os garotos, lançávamos serpentinas pelo ar.

Subitamente, quando menos esperávamos, vimo-nos sugados para o interior de um caos de automóveis, ruídos e mascarados. (Os bêbedos e os mascarados eram, nessa época, o objecto superlativo dos meus terrores).
Os carros não se moviam. O ruído era, para recorrer a um lugar-comum, verdadeiramente ensurdecedor. E havia mascarados dançando por todo o lado, em cima de tejadilhos e de capôs, ou caindo sobre nós. Eu estava atordoado.
Já não me agradava tanto estar ali.
Sentia-me numa sucursal do inferno.

Então, aconteceu o pior:
Um carro, no meio da confusão, chocou, por trás, contra o bolidezinho do tio António.

Lembro-me de meu tio pondo-se, num instante, fora do automóvel para discutir, de pé, com o outro condutor, um senhor vestido de mulher; lembro-me desse senhor estar muito zangado, com as veias do pescoço inchadas; lembro-me dos seus perdigotos como se os revisse.
Lembro-me de mais pessoas que se vinham aproximando, quase todas mascaradas e algumas previsivelmente bêbedas, ou seja, um bando juntando descoordenadamente os meus dois maiores medos.
Lembro-me do tio António tomando nota, num caderninho, ou numa agenda, de não sei que dados do homem vestido de mulher.

Lembro-me, por fim, de que naquela confusão, a única coisa que eu repetia, meio escondido no bólide amachucado, era, com voz de choro:
- Se a minha mãe aqui estivesse...! Ah, se a minha mãe aqui estivesse...

Ninguém me ouvia por dentro da gritaria, dos apitos, das bebedeiras e da mascarada. Mas eu insistia, como numa oração, profundamente convicto:
- Se a minha mãe aqui estivesse!

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