sábado, maio 13, 2006

GRAÇAS E DESGRAÇAS DE UM CÃO DO CARAÇAS (I)

O Dunga veio pequenino para o seio da nossa família: era um rafeiro meigo e lãzudo, com que procurávamos fazer esquecer, ao nosso filho único, então com cinco anos, a monomania de que lhe oferecessemos «um mano».

Quando, cinco anos mais tarde, o segundo filho acabou por nascer - uma menina -, o Dunga ressentiu-se enormemente: experimentou todos os ciúmes e angústias que haviam passado ao lado do Duarte.
Tornou-se briguento, estúpido e mau. Era uma fonte de permanentes desentendimentos: rosnava, chegou a morder, desobedecia sistematicamente, vingava-se dos ralhos e dos castigos fazendo chichi no tapete ou nos cortinados. Passava entre as grades verdes do quintal e fugia de casa.
Agarrados à ideia simplória de que os humanos são mais inteligentes dos que os canídeos, tapámos com uma rede os intervalos entre as grades por onde ele se escapulia. E ainda estávamos a terminar a obra-prima, já eu pensava precipitadamente: Homens: Um - Cães: Zero. Pois bem: o Dunga aprendeu rapidamente a soltar com os dentes as tirinhas que prendiam a rede às grades; abria espaços; continuou, portanto, a fugir.

Esmagávamo-lo sob uma disciplina espartana, ou esforçávamo-nos diligentemente por isso, mas, entretanto, vinha a minha sogra passar connosco aqueles eternos períodos de tempo imóvel e, nas nossas costas, subvertia as regras, furava as proibições, ria-se de nós em óbvia cumplicidade com o cão.

Em virtude de todo este processo, o Dunga degradava-se: mais velhote, hirsuto, sujo, feio e negligenciado, era como se tivéssemos recolhido um sem-abrigo antipático e de mau feitio. Parecia um trapo.
O Duarte já não tinha tempo nem vontade de brincar com ele, a minha mulher andava sempre à beira de um ataque de nervos, pronunciando palavras que me faziam temer seriamente pelo seu equilíbrio psicológico, como: «Ai, se tivesse aqui uma caçadeira...!» Eu, secretamente, começara a odiar o cão.

Em contrapartida, a minha filha, esse novo e central ser que emergira no meio de nós, dedicava ao cão uma atenção muito fixa. Assustava-se com os latidos despropositados em que o Dunga se estava a especializar, mas interessava-se muito por ele e o seu olhar seguia-o com uma uma curiosidade divertida.
O Dunga, pressentindo ali um aliado, nunca tentou fazer-lhe mal. Queria aproximar-se, cheirá-la, lamber-lhe as mãos.
Decidimos, portanto, levá-lo ao veterinário.
Tomou um fabuloso e exigente banho, foi tosquiado e desparasitado: no regresso, parecia outro.

Sem a sua lã negra e desgrenhada, tornava-se um cão magrinho e ágil, de patas finas, uns olhos lindíssimos, finalmente a descoberto, e uma cauda artisticamente aparada.
Quase instantânea e instintivamente, o amor que recalcáramos por tanto tempo desabou de novo sobre ele.
O interesse da minha filha mantém-se muito vivo. E o carinho que espontaneamente rebrotou, fácil, sem custo, fá-lo feliz e acalma-o como um soporífero.

Parece mesmo um final feliz. Claro que, infelizmente, a história continua - não foi por acaso que acrescentei ao título um «I».
Mas, entretanto, pergunto-me: se é este o poder afrodisíaco de uma simples tosquiadela, não estará na altura de eu próprio ir cortar o cabelo?

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