Karl Protzka é, com certeza absoluta, o escritor mais obscuro do mundo inteiro. Cidadão do Império Austro-Húngaro e de Viena de onde nunca saiu senão por poucos meses, viveu o auge e a decadência imperiais: é aquele mesmo a quem Musil se refere, nos «Diários», como o seu «amigo bizarro».
Eu próprio, que aqui dele falo, conheço-o pelo mero acaso de o meu avô ter sido o tradutor para português, penso que nos anos cinquenta, do único livro a que se resume a sua obra.
Chama-se «O Órgão Invisível». Tentei ler várias vezes o exemplar já velho e meio-carcomido que me veio parar às mãos, depois de ter passado orgulhosamente por várias estantes de familiares. Devo ter querido lê-lo com quinze ou dezasseis anos - que loucura! - e desistido ao fim da terceira ou quarta páginas; retomei-o aos vinte e não avancei muito mais; a seguir talvez aos vinte e tal, por fim aos trinta. Não sei com que idade mergulhei efectivamente naquele estranhíssimo romance que é o contrário de um romance (o meu avô fascinava-me repetindo amiúde estes pormenores, razão principal de todas as minhas tentativas de leitura), ou que é um não-romance se não um anti-romance: Protzka sonhava escrevê-lo mas, aparentemente, buscava, para o iniciar, uma série de condições ideais, desde a cadeira e a secretária ao papel, passando pela luz, pela caneta ou pelo estado de espírito perfeitos; em vez disso, nunca os reunindo, protelava, protelava sempre, mas ia enchendo caixas com apontamentos acerca do mundo que borbulhava em torno de si e do adiado romance: acerca do que os outros pensavam dele próprio e ele dos outros, acerca do que lhe perguntavam sobre o seu romance e de tudo quanto inventava: que estava a escrevê-lo (o que era falso), que o ia publicar, que concluíra o décimo quarto capítulo...!
Já depois de morto, os seus filhos reuniram esta gigantesca massa de apontamentos, organizando-a numa espécie de pararomance sobre o que seria o seu romance e, sobretudo, sobre a estranheza das relações humanas que se moviam à volta de um romance prometido, desejado, idealizado mas incapaz de vir à tona.
Das duas primeiras páginas, cito estas palavras:
«Uma relação - falo de toda e qualquer relação entre duas pessoas, filial ou fraterna, de amizade ou inimizade, erótica ou irónica - é um corpo que mergulha as suas pernas, por vezes até à cintura, por vezes até ao pescoço, no silêncio e no invisível: pois que o corpo de uma relação entre dois sujeitos é composto não principalmente pelo que os dois dizem um ao outro, e sim pelo que, sobretudo, não dizem um ao outro.[...] desse não-dizer transparecem sempre sintomas: mas transparecem mal, incompreendidos, falseados, deturpados. [...] Como essas indicações, que talvez nem o sejam, nunca se dizem, como nunca se esclarecem por palavras, como, na maioria dos casos, são meras ausências, adensam-se, a pouco e pouco, numa atmosfera de equívocos em que respiram todas as relações. Já imaginaram alguém que compreenda os desejos, ou as intenções de outrem, a partir, quase só, desse espelho invisível e deformante? O ter-lhe certa pessoa falado em último lugar numa reunião de amigos, ou o ter passado na rua como se o não visse, ou, pelo contrário, ter-lhe vindo imediatamente ao encontro, ou, durante a conversa, nunca o ter olhado nos olhos? [...] Ou um certo tom de voz (conhecem algo mais indefinível do que um «tom»?)! [...] O meu romance versará, no fundo (e a expressão «no fundo» é bem escolhida) essa trágica impotência: o paradoxo de um incomunicável resíduo de toda a comunicação ser, talvez, a parte mais importante de toda a comunicação.»
Nunca encontrei qualquer exemplar à venda. Em lado nenhum. Que eu saiba, não voltou a ser traduzido. O que releio frequentemente está muito gasto, muito velho. Gostaria de o mandar encadernar. Não tenho ideia de um outro autor tão profundo e tão extraordinário que seja tão profunda e tão extraordinariamente invisível.
domingo, maio 21, 2006
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