quarta-feira, maio 17, 2006

GRAÇAS E DESGRAÇAS DE UM CÃO DO CARAÇAS (II)

Sempre ouvi dizer que não se escolhe a família. Errado: tenho-a escolhido de tal maneira, que há familiares que vou deixando de frequentar e outros que fazem, cada vez mais, parte quase do meu dia-a-dia.

O que não podemos realmente escolher (senão em teoria) é a vizinhança.

Tenho um vizinho que inventou para si o título pomposo mas vazio de «Administrador da Rua». Na função que se concedeu, manda-me que não estacione o automóvel em determinados sítios ou que não ponha o caixote de lixo demasiado longe do meu portão - tudo isto «porque», quando chegámos «o bairro era já uma "piquena" aldeia, com as suas regras», que não estão escritas em lado nenhum, mas deveríamos acatar «em prol da harmonia da rua».
Este vizinho, de resto, é uma espécie de disléxico em matéria de cores de baldes do lixo previstas para os diferentes dias da semana. Falo do sistema da empresa «Tratolixo»: balde amarelo, para plásticos e metais, recolhido à segunda-feira por exemplo, balde azul, para papel e cartão, noutro dia. Eu e o meu filho inventámos um jogo: damos palpites ao acaso sobre a cor que o vizinho escolherá para cada dia. A única certeza é a de que nunca é a que deveria ser...

Ao lado de nós, partilhando um mesmo muro - um muro baixo, diga-se - está um casal de maus-fígados: um senhor careca e de bigode e uma senhora que oiço sempre aos gritos.
Uma vez, do seu alpendre, via-a vituperando contra um bando de meninas que saíam da escola. Não sei que lhe teriam feito. Mas a mulher dirigia-se, principalmente, à mais alta, garantindo-lhe:
- ... porque tu tens cara para apanhar um par de estalos, percebes!?
Ao que a menina, meio-paralisada, respondia:
- Está bem.

Foi este último casal que arranjou um mini-cão, um bicho pequeno, que se tornará um dia enorme a avaliar pelo tamanho da patorra, mas, entretanto, não passa de uma bolinha peluda.
O Dunga, meu cão de quem vos tenho falado, sentiu-lhe o cheiro no ar, tomou-se de amores, saltou o muro comum - o que nunca antes fizera - e passou a ensaiar surtidas, cada vez mais prolongadas, àquele apetecível quintal.
Estarrecidos, nós gritávamos:
- Dunga! AQUI! JÁ AQUI, DUNGA!!!
Mesmo que o Dunga quisesse, não poderia regressar pelos seus meios: o muro, baixo e fácil de transpor do nosso quintal para o quintal dos vizinhos, é, contudo, absurdamente alto no sentido inverso. Mas o pior é que o Dunga não quer: sexualmente inebriado, tremendo de excitação, tem como ideia única e fixa montar o cachorrinho.
É um espectáculo horroroso.

Lá pedíamos a um dos filhos do casal, assim que o apanhávamos a espreitar o que seria tanta gritaria, que fizesse o favor de pegar no nosso cão e no-lo devolver.
A menina, prestativa, tentava agarrar no Dunga - Dunga esse que, furioso pela interrupção, se tornava ameaçador e ladrava.
O meu filho pedia que o deixassem entrar. Mas o Dunga rosnava-lhe. Foi por isso que o Duarte, um dia, se saiu com esta espécie de poema espontâneo:
- Tenho medo do Dunga. Medo e raiva. Um dia fico tão furioso, que até o meu medo fica com medo de mim...
Quando o Duarte corajosamente o trazia apesar de tudo, prendíamos o cão em casa. E então víamo-lo, inconsolável, pendurado de uma janelinha com vista para o quintal do vizinho, ganindo baixinho, completamente apaixonado.

Quando nos esquecíamos e abríamos a porta, zás, o Dunga que, esse, não se esquecia, passava por nós em voo e mergulhava no quintal dos outros.

O drama repete-se. Ciclicamente. O Duarte chora de nervos. A minha mulher recomeçou a pedir uma caçadeira.

Quando me vê aproximar-me, pela rua, de Dunga pela coleira, a senhora vizinha adverte-me, numa mal contida agressividade:
- Não venha para aqui com essa enguia...
Nem lhe respondo, dignamente ofendido.

O Dunga tem murchado.
Isto é, transposto para o mundo canino, a tragédia de Romeu & Julieta.
Ou melhor, de Romeu & Romeu.

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