Compreendo que me tornei, por fim, um homem, no momento em que encontro no sótão poeirento uma banda desenhada da Mafaldinha, corro para a sala para aproveitar o parco tempo que ainda me resta a sós em casa, deliciado, saudoso das personagens que me fizeram rir, e vou passando as páginas, à procura do Manelinho, da Susaninha, do Filipe, da Liberdade - cada vez mais cabisbaixo, esmorecido, voltando ainda atrás, esforçando para mim mesmo um pouco convincente sorriso, ou um sopro que não chega a conseguir passar por riso. Não foi a Mafaldinha que envelheceu: fui eu. Não foi o humor dela que se perdeu: foi o meu que se transformou.
Porque a Mafalda, aliás, a própria, nunca teve sentido de humor. Ríamo-nos das suas afirmações, da sua indignação em face das injustiças,mas a verdade é que nada, nela, era pensado ou dito com o intuito de ter graça. A piada residia precisamente nesse pormenor: a Mafaldinha via realmente o mundo assim, interrogava-o com veemência crítica. De certo modo, não nos ríamos com ela, mas à custa dela e do seu desajustamento de criança precoce num mundo estupidamente adulto.
O que descubro agora é que me enganei em relação a quase todos os meus heróis de adolescência. Por que raio gostava eu tanto do Bip-bip e me solidarizava com ele contra o coiote - quando, hoje, percebo que o Bip-bip é a simples encarnação da velocidade estúpida ou da estupidez veloz, uma ave rápida e sem outros dotes, que leva, contudo, sempre a melhor, sabe-se lá porquê, enquanto o coiote que, esse sim, é o protótipo do engenho e da astúcia, talvez mesmo da inteligência, ou de um magnífico maquiavelismo cheio de recursos, que se multiplica em planos, persistentemente, está destinado a cair de precipícios, a chocar com muros, a ver as suas bombas explodirem-lhe nas patas ou a apanhar com bigornas em cima..?
Hoje, claramente, estaria do lado do coiote. Ao mesmo tempo, reconheço que, sem a inocência que me fazia estar torcendo incondicionalmente pelo mais fraco, pela presa, as histórias fazem-me sentir levemente culpabilizado.
Também no Incrível Hulk tudo se tornou demasiado claro. O que eu apreciava na personagem era uma ambiguidade moral que nunca consegui desvendar e, de certo modo, me fascinava. O Hulk era bom ou era mau? Esta pergunta incómoda, que perturbava a minha natural necessidade de uma clareza maniqueista, trazia um leve travo de angústia. E, no entanto, tratava-se de uma angústia que me abria portas e me fascinava: se ele era bom (e devia ser: estávamos a falar da personagem principal), por que razão o perseguiam os polícias, às vezes o próprio exército? Tinha feito mal a alguém? Este sabor a confusão apaixonava-me. Hoje compreendo o Hulk; mais: compreendo que raramente os polícias e o exército constituem o lado «bom» de uma sociedade. Faz sentido. Mas sem o seu mistério intrínseco, o Hulk nunca mais me pareceu incrível.
Um adulto incapaz de regressar, por um momento que seja, aos heróis infanto-juvenis, e que até usa esta detestável expressão para se lhes referir, é um adulto defraudado.
Um adulto que perdeu de vista um tal segredo está prestes a tornar-se um tipo cinzento.
Um adulto que analisa tudo e olha cerebral e crescidamente para o Homem-Aranha, e que nunca mais voltou a querer ser o Batman, é um adulto que desperdiçou a sua infância.
segunda-feira, maio 08, 2006
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