segunda-feira, agosto 20, 2007

A GLORIOSA REUNIÃO DE LÍDERES AFRICANOS

O núcleo duro de tudo aquilo que forma ideológica e simbolicamente a esquerda e, até, une de algum modo as diferentes esquerdas, reflecte-se com alguma segurança na ideia e na prática da descolonização.

Num tempo de repensamento, em que foram sendo sistematicamente postos em causa, por teóricos de esquerda,as chaves da própria esquerda (desde o papel do proletariado à possibilidade da revolução, desde a noção de igualdade à necessidade de liquidar a instituição burguesa que seria «a família»), num derradeiro dogma não vi ainda tocar: a bondade da descolonização, como forma de libertação de povos oprimidos e garantia de progresso para todos.

Uma vez que, à falta de melhor, me considero eventualmente (ainda) de esquerda, até quando a detesto, e mesmo, por vezes, marxista (tendência Groucho Marx), e porque, por outro lado, sou um desenraizado, ou seja, alguém que nasceu e viveu (até aos dezoito anos) em Moçambique,interessa-me profundamente a questão da descolonização.

Olhando para a glamourosa reunião de líderes africanos que Portugal orgulhosamente prepara, não posso deixar de sentir um ligeiro calafrio ante essa mirambolante colecção de ditadores que conseguimos juntar. Desde o senhor José Eduardo dos Santos ao senhor Mugabe, a quem não fomos capazes de negar assento, o espectáculo a que assistimos é, afinal, o dos nossos erros ou o da falência do grande ideal da esquerda: pegou-se em grandes e ricos territórios cujas fronteiras eram, já de si, uma ficção colonial, fazendo tábua rasa de rivalidades e lutas antiquíssimas entre diferentes etnias, esqueceram-se completamente os colonos que, mal ou bem, com direito ou sem ele, tinham investido nessas terras tudo o que eram e tudo o que possuíam, entregou-se o poder a elites formadas unicamente no combate e na guerrilha, esperando que estivessem preparadas para assumir os modelos políticos europeus, como se, por sua vez, estes fossem os únicos possíveis, e os mais indicados, e lavámos daí as nossas mãos.
Em face das insanidades e devaneios dos ditadores que entretanto emergiam, limitávamo-nos a assobiar para o lado, já demasiado assolados pelos nossos próprios complexos de culpa para arcarmos ainda com novas culpas...

Não sejamos lineares: houve, na luta anti-colonial, verdadeiros heróis, homens e mulheres exemplares, de uma força e de uma dignidade extraordinárias? Samora Machel ou Nelson Mandela são símbolos maiores de tudo aquilo em que a África livre poderia ter-se tornado? Sem dúvida.
As condições tiveram excessivo peso? Os países colonizadores não podiam, após anos e anos de dura luta, senão acatar, e nos termos em que o fizeram, a emancipação dos povos colonizados? Essas condições pareciam soprar, fortemente, todas num mesmo sentido, como se não houvesse escolha, como se algo de moira fatal imbuísse o vento da História? Sem dúvida.
Porque, afinal, a História não é uma constante entrada em novos patamares de escolhas. Frequentemente, mesmo o que nos soa como «escolhas» feitas (pelos reis, pelos governantes, por Mário Soares na altura...) são a expressão de teias de condicionalismos demasiado poderosos, que empurram fatidicamente para um ponto determinado.

Mas a conclusão é, então, que o movimento da História está muito longe de se poder representar como um «progresso». (Ah, sim! Essa outra grande e optimista convicção de todas as esquerdas).

Penso nisto, enquanto imagino Robert Mugabe sentando-se no seu lugar, sorrindo à esquerda e à direita, ao mesmo tempo que coloca nas orelhas os fones de tradução simultânea a que, certamente, há-de, também ele, ter direito... (como se compreendesse a tradução de quaisquer ideias que não sejam as suas próprias)...

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