Deus-Pai estava arrasado. «Ah», dir-me-ão, «não pode ser, e tal, Deus não fica arrasado, e tal, que é feito da Omnipotência, e coiso...?»!
Estava, sim. Estava. Precisavam de conhecer a Deusa-Mestra, que há uma Eternidade vinha pondo em causa a Obra divina. Acrescentava sempre, com a delicadeza conveniente, que, do ponto de vista estético, é claro, a Criação de Deus estava perfeita. Per-fei-ta - nem outra coisa se esperaria dEle.
«Acontece», acrescentava a Deusa-Mestra, «que a estética não pode ser pensada a não ser de acordo com a função das coisas. A funcionalidade é a palavra de ordem. Os seres podem ser bonitos, sim senhor, e nisso, Ó Deus, és Deus Único. Mas, e a funcionalidade...???»
Dava exemplos de «ligeiras» alterações que fora fazendo. Que lhe não levasse nada a mal, hã? Não era na substância, nem na estética - era na «funcionalidade», e só, que se deveriam introduzir emendas.
«Vejamos o homem», dizia. «Olha para os dedos; olha para a língua. Não vês o que está errado aqui? Eu explico. Já percebeste que, para provar, o homem vai ter de pôr em contacto, digamos, comida estragada, com a língua, no interior da boca, já dentro do corpo? E se quiser cuspir, não é verdade que certamente uma pequena parte já se escapou pelo sistema abaixo e começou a envenenar-lhe os estômago? Não. O paladar tem de estar na ponta dos dedos. O homem prova com os dedos, percebes? Saboreia com os dedos. Se não gostar, deita fora...»
Deus-Pai estava esgotado...
«E o rabo lá atrás? Olha que lindo. Para que lhe serve o rabo, com aquela forma almofadada, não é para o proteger? Não tem de ser assim uma espécie de pára-choques? Então tem de estar à frente, não é verdade? À frente é que se encontram os órgãos mais importantes, se ele cai de fronte é que se trata de uma queda fatal... o rabo tem de ficar, ou no peito, ou a proteger o sexo...»
Era inútil contra-argumentar.
«E o nariz ao pé da boca??? Em pleno rosto??? Que diacho de ideia. Assim cheira algo de mau cheiro e vomita, parece tudo um órgão único, nariz e boca, uma máquina para cheirar e vomitar, cheirar e vomitar. É disparate, Deus! Se tiramos o rabo lá de trás, passamos para lá o nariz...»
E, considerando, por um fragmento da longa Eternidade que iriam ter de passar juntos, que Deus-Pai pudesse estar a sentir-se ofendido, concluiu:
«É claro que, à parte estes pormenores, a tua Obra está bonita. Ah, muito bonita mesmo. Bonita a valer! Quanto a isso, nada a assinalar: és um espectáculo!»
sexta-feira, julho 25, 2008
terça-feira, julho 22, 2008
UM CONTO SIMPLESMENTE HOR-RO-RO-SO!
O filho chamou-o, uma vez mais, do quarto pejado de posters de lutadores de wrestling.
Eram cinco horas da manhã. Cinco da matina, porra!
Entrou furibundo, com o seu daïmon, uma espécie de Daniel Sampaio pessoal, segredando-lhe no interior do cérebro: «Calma, calma, calma! Olha que te vais arrepender, vê lá como é que lidas com o miudo, olha, eh, calma, calma, calma!»
Como de costume, sabendo que realmente se arrependeria, apertou, contraindo as paredes do cérebro, o pequeno daïmon até lhe ouvir um estertor, e, diante do filho, berrou-lhe com toda a força:
- Que foi agora, pá!? Que é agora!?
- Não consigo dormir, pai! Vem-me sempre à cabeça a imagem de um menino sem olhos...
- Tou lixado com este gajo. Vais-te voltar para o lado, que são cinco horas da matina, hã?, e eu trabalho, eu tenho de me levantar daqui a pouco, e não tenho paciência, eu já não tenho paciência. Ala!
E regressou à cama.
Pouco tempo depois, ou muito tempo depois, porque tudo se passava naquela indefinição da noite em que o «pouco» e o «muito» perdem o sentido, um menino sem olhos despertou-o. Pensou, inicialmente, que se tratasse de um sonho, mas não. Era real: um menino sem olhos, sentado aos pés da sua cama: apresentou-se-lhe tranquilamente como um feiticeiro, e disse que tinha uma surpresa para ele. Uma terrível surpresa!
- Olha, venho só prevenir-te de que vou lançar um feitiço. O teu filho irá desaparecer...
- Como!? Para sempre...?
- Não, para sempre não. Na verdade, todos os dias o verás durante algum tempo...
- Mas...
- ... À noite... à hora de dormir... cheio de medo, chamando por ti, durante uma hora inteira, a partir das cinco da manhã... todos os dias, todos os dias, todos os dias...
E assim foi.
Podem não acreditar, mas esse tornou-se o momento mais feliz de cada um dos seus dias. Aquele fragmento de tempo que aguarda mais ansiosamente. O Génio não lhe mentira: todas as noites, a partir das cinco da manhã, ouve o apelo do seu filho.
E entra no seu quarto para o apaziguar. Abraça-o, consola-o. Com lágrimas nos olhos. Sabendo que, de manhã, pouco depois do instante em que o miudo, esgotado, por fim acalma e adormece, ele adormecerá também - porque não consegue não adormecer, por mais que lute contra a invasão sorrateira do sono -, e então, de alguma obscura e mágica forma, o menino volatilizar-se-á; e que quando ele acordar, já o não verá; e não tornará a vê-lo senão à noite, à hora dos pavores.
O seu daïmon, mal refeito da tentativa de assassínio que sobre ele perpetrara, segreda-lhe:
- Eu avisei-te!
E ele responde-lhe:
- Cala-te!
E todos os dias anseia pelo pedido de ajuda do seu filho.
Eram cinco horas da manhã. Cinco da matina, porra!
Entrou furibundo, com o seu daïmon, uma espécie de Daniel Sampaio pessoal, segredando-lhe no interior do cérebro: «Calma, calma, calma! Olha que te vais arrepender, vê lá como é que lidas com o miudo, olha, eh, calma, calma, calma!»
Como de costume, sabendo que realmente se arrependeria, apertou, contraindo as paredes do cérebro, o pequeno daïmon até lhe ouvir um estertor, e, diante do filho, berrou-lhe com toda a força:
- Que foi agora, pá!? Que é agora!?
- Não consigo dormir, pai! Vem-me sempre à cabeça a imagem de um menino sem olhos...
- Tou lixado com este gajo. Vais-te voltar para o lado, que são cinco horas da matina, hã?, e eu trabalho, eu tenho de me levantar daqui a pouco, e não tenho paciência, eu já não tenho paciência. Ala!
E regressou à cama.
Pouco tempo depois, ou muito tempo depois, porque tudo se passava naquela indefinição da noite em que o «pouco» e o «muito» perdem o sentido, um menino sem olhos despertou-o. Pensou, inicialmente, que se tratasse de um sonho, mas não. Era real: um menino sem olhos, sentado aos pés da sua cama: apresentou-se-lhe tranquilamente como um feiticeiro, e disse que tinha uma surpresa para ele. Uma terrível surpresa!
- Olha, venho só prevenir-te de que vou lançar um feitiço. O teu filho irá desaparecer...
- Como!? Para sempre...?
- Não, para sempre não. Na verdade, todos os dias o verás durante algum tempo...
- Mas...
- ... À noite... à hora de dormir... cheio de medo, chamando por ti, durante uma hora inteira, a partir das cinco da manhã... todos os dias, todos os dias, todos os dias...
E assim foi.
Podem não acreditar, mas esse tornou-se o momento mais feliz de cada um dos seus dias. Aquele fragmento de tempo que aguarda mais ansiosamente. O Génio não lhe mentira: todas as noites, a partir das cinco da manhã, ouve o apelo do seu filho.
E entra no seu quarto para o apaziguar. Abraça-o, consola-o. Com lágrimas nos olhos. Sabendo que, de manhã, pouco depois do instante em que o miudo, esgotado, por fim acalma e adormece, ele adormecerá também - porque não consegue não adormecer, por mais que lute contra a invasão sorrateira do sono -, e então, de alguma obscura e mágica forma, o menino volatilizar-se-á; e que quando ele acordar, já o não verá; e não tornará a vê-lo senão à noite, à hora dos pavores.
O seu daïmon, mal refeito da tentativa de assassínio que sobre ele perpetrara, segreda-lhe:
- Eu avisei-te!
E ele responde-lhe:
- Cala-te!
E todos os dias anseia pelo pedido de ajuda do seu filho.
domingo, julho 20, 2008
CURSO RÁPIDO DE AUTOMOBILISMO
O TRAÇO CONTÍNUO
Não se devem fazer ultrapassagens pouco firmes quando há um traço contínuo. Este deve servir como uma régua: é precisamente para se fazerem ultrapassagens direitinhas, sem desvios, nem guinadas, nem zigue-zagues - é só seguir a linha!
Não se devem fazer ultrapassagens pouco firmes quando há um traço contínuo. Este deve servir como uma régua: é precisamente para se fazerem ultrapassagens direitinhas, sem desvios, nem guinadas, nem zigue-zagues - é só seguir a linha!
quarta-feira, julho 16, 2008
O REGRESSO DE J. C.
Jesus Cristo regressou à terra no dia 6 de Julho.
Esteve, aliás, em Lisboa. Ao que consta, por volta das quinze horas desse mesmo dia mostrava algum espanto pelo facto de não ter conseguido encontrar pescadores dispostos a segui-lo. (Mas os pescadores preparavam precisamente uma onda de protestos contra a «intransigente política da União Europeia»).
As únicas pessoas que viu capazes de o acompanhar por todo o lado, eram os membros de um casal, mas essa possível colaboração depressa veio a revelar-se um equívoco: tratava-se de Testemunhas de Jeová; queriam acompanhá-lo por todo o lado, sim, mas no sentido aborrecido e irritante da palavra, empenhados em convertê-lo. «Eu estou convertido! Eu sou o filho! Pertenço à Santíssima Trindade», insistia...
Teve de lhes fugir.
Mais tarde, foi inquirido por uns senhores das Finanças que alegavam ter recebido uma denúncia de um tal Fernando Pessoa, que dizia que ele, Jesus Cristo, não pereceberia nada de finanças. E que, portanto - deduziam eles -, não se tinha declarado como mágico, nem pagava imposto sobre milagres.Descobriram até que ponto Pessoa estava certo. Preparavam-se já para lhe confiscar tudo o que possuía. Umas sandálias e, ao que parece, a sua Omnipotência - a qual, contudo, em Portugal esbarra com diversos entraves! E julgo que não pode ser exercida sem a devida autorização e documento comprovativo de divindade, isto na versão simplex...
À noite, quando se orientava de modo a retornar à Pensão Florinda, onde se albergara, foi detido por dois senhores vestidos de negro, com viseira e escudo.
Eram agentes da ASAE: acusavam-no de não ter respeitado as medidas mínimas de higiene e segurança na forma como transformara uma série de pedras e de calhaus, sujíssimos, em sardinhas para uma multidão. Ainda por cima, as referidas sardinhas teriam sido grelhadas em grelhadores de zinco, que também não obedeciam a quaisquer normas.
As últimas pessoas que o viram, relatam estas palavras, que teria pronunciado:
- Pai! Agora é que vais ter de afastar de mim este cálice, que isto está mais bera do que no tempo dos Romanos!
Não tornou a ser visto.
Esteve, aliás, em Lisboa. Ao que consta, por volta das quinze horas desse mesmo dia mostrava algum espanto pelo facto de não ter conseguido encontrar pescadores dispostos a segui-lo. (Mas os pescadores preparavam precisamente uma onda de protestos contra a «intransigente política da União Europeia»).
As únicas pessoas que viu capazes de o acompanhar por todo o lado, eram os membros de um casal, mas essa possível colaboração depressa veio a revelar-se um equívoco: tratava-se de Testemunhas de Jeová; queriam acompanhá-lo por todo o lado, sim, mas no sentido aborrecido e irritante da palavra, empenhados em convertê-lo. «Eu estou convertido! Eu sou o filho! Pertenço à Santíssima Trindade», insistia...
Teve de lhes fugir.
Mais tarde, foi inquirido por uns senhores das Finanças que alegavam ter recebido uma denúncia de um tal Fernando Pessoa, que dizia que ele, Jesus Cristo, não pereceberia nada de finanças. E que, portanto - deduziam eles -, não se tinha declarado como mágico, nem pagava imposto sobre milagres.Descobriram até que ponto Pessoa estava certo. Preparavam-se já para lhe confiscar tudo o que possuía. Umas sandálias e, ao que parece, a sua Omnipotência - a qual, contudo, em Portugal esbarra com diversos entraves! E julgo que não pode ser exercida sem a devida autorização e documento comprovativo de divindade, isto na versão simplex...
À noite, quando se orientava de modo a retornar à Pensão Florinda, onde se albergara, foi detido por dois senhores vestidos de negro, com viseira e escudo.
Eram agentes da ASAE: acusavam-no de não ter respeitado as medidas mínimas de higiene e segurança na forma como transformara uma série de pedras e de calhaus, sujíssimos, em sardinhas para uma multidão. Ainda por cima, as referidas sardinhas teriam sido grelhadas em grelhadores de zinco, que também não obedeciam a quaisquer normas.
As últimas pessoas que o viram, relatam estas palavras, que teria pronunciado:
- Pai! Agora é que vais ter de afastar de mim este cálice, que isto está mais bera do que no tempo dos Romanos!
Não tornou a ser visto.
terça-feira, julho 15, 2008
VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ [IV]
Era verdade.
Os Glauss atacavam em massa.
Eram muitos, com aquela particularidade irritante de atacarem do ponto onde não podíamos prever.
A minha nave abanava ronceiramente.
Cruzavam-se raios por todos os lados. Havia explosões e tudo sacudia, como numa sucessão de sismos.
E de um momento para o outro, por frestas e rupturas que se alargavam e multiplicavam, os Glauss entravam, horrendos.
Curiosamente, a rainha e as suas súbditas, que tanto se enraiveciam contra as ordens de Mäix, desapareciam agora em gritos estridentes, cobardes, aflitos e, mais do que aflitos, aflitivos.
Voltei-me para o professor Karamba, enervado:
- Os teus poderes não foram capazes de prever este ataque? Que raio de...?
Não havia qualquer professor Karamba.
Regressado à sua verdadeira forma, já sem antenas minúsculas, encarando-me com uma fixidez sardónica, o Imperador dos Glauss sorria-me.
E falou:
- Não te assustes! Nós viemos simplesmente raptar a rainha e suas fêmeas. Não ofereçam resistência e nós vamos em paz. O nosso povo carece de fêmeas. Estas fêmeas carecem de macho. É tudo.
Sorri, mal crendo na felicidade que me ofereciam.
Quando sairam, levando consigo as Antoneqas da minha nave, mandei gravar, à entrada da cabine, esta frase histórica:
«Às vezes, os inimigos podem ser uma benção!»
FIM
Os Glauss atacavam em massa.
Eram muitos, com aquela particularidade irritante de atacarem do ponto onde não podíamos prever.
A minha nave abanava ronceiramente.
Cruzavam-se raios por todos os lados. Havia explosões e tudo sacudia, como numa sucessão de sismos.
E de um momento para o outro, por frestas e rupturas que se alargavam e multiplicavam, os Glauss entravam, horrendos.
Curiosamente, a rainha e as suas súbditas, que tanto se enraiveciam contra as ordens de Mäix, desapareciam agora em gritos estridentes, cobardes, aflitos e, mais do que aflitos, aflitivos.
Voltei-me para o professor Karamba, enervado:
- Os teus poderes não foram capazes de prever este ataque? Que raio de...?
Não havia qualquer professor Karamba.
Regressado à sua verdadeira forma, já sem antenas minúsculas, encarando-me com uma fixidez sardónica, o Imperador dos Glauss sorria-me.
E falou:
- Não te assustes! Nós viemos simplesmente raptar a rainha e suas fêmeas. Não ofereçam resistência e nós vamos em paz. O nosso povo carece de fêmeas. Estas fêmeas carecem de macho. É tudo.
Sorri, mal crendo na felicidade que me ofereciam.
Quando sairam, levando consigo as Antoneqas da minha nave, mandei gravar, à entrada da cabine, esta frase histórica:
«Às vezes, os inimigos podem ser uma benção!»
FIM
sábado, julho 12, 2008
GUTERRES E OS OUTROS
Devo uma explicação. Tenho muito prazer.
Num anterior «post» associava, entre parêntesis e sem mais comentários, Ana Drago a Guterres, como exemplo do que é excepcional, pela positiva, no quadro da mediocridade em que se afunda a paisagem partidária portuguesa.
Se, em relação a Ana Drago, não me chegaram ecos de espanto, já em relação a Guterres tive inúmeros sinais da mais profunda estupefacção.
Guterres cometeu, de facto, um tenebroso erro político. Procurou ser um Gentleman, no mais nobre sentido da palavra, num país da treta. Os países da treta não lidam bem com Gentlemen. Não os entendem e, portanto, acabam por não os merecer. E, como dizia Talleyrand: um erro, em política, pode ser pior do que um crime.
Guterres é um homem cultivadíssimo. É engenheiro, o que só lhe fica evidentemente bem, sem que, no seu caso, isso signifique o desenvolvimento de um único hemisfério e o total bloqueio de outro. Ou seja: em Guterres os dois hemisférios cerebrais funcionam em pleno, revelando-nos um homem que sabe de números E de poesia, planeia pontes MAS ouve ópera, raciocina científica MAS TAMBÉM artisticamente, fala línguas e argumenta com uma invulgar agilidade. Basta fazermos a comparação com praticamente qualquer outro líder partidário português para termos a noção de que estamos perante pessoas que jogam em campeonatos diferentes. Pois bem: o que lhe valeu o seu engenho argumentativo foi, entre os portugueses, a imagem de verborreico e o nome de «picareta falante», que lhe inventou o rei da maledicência, do ataque gratuito e dos copos, que é Vasco Pulido Valente!
O grande desígnio de Guterres, se bem se lembram, era o diálogo. Entre todos os sectores e em todas as áreas, esforçou-se denodadamente por incentivar o diálogo. Não é estranho que essa tentativa, porventura ingénua, tenha tão facilmente passado por fraqueza, por falta de convicção ou de firmeza? Não sei se o diálogo terá sido sempre bem conduzido por ele. Se não terá errado. Pôr portugueses a dialogar com seriedade é obra. Mas daí à firmeza a raiar a intolerância com que o seu Delfim de então, José Sócrates, acabou por conquistar o Poder e governar Portugal vai uma diferença que nos permite pôr os dois lado a lado... e chorar de saudades!
Finalmente, e isto é o pior, Guterres ficará na História como o exemplo extremo de cobardia, como se tivesse abandonado o lugar que principiava a tornar-se pantanoso, no momento em que mais se esperaria que tivesse coragem de cumprir a sua missão até ao fim. E considero isso, essa imagem de indignidade, a maior das injustiças que o povo comete em face de um gesto, invulgaríssimo, é certo, entre os políticos portugueses, de verdadeiro desapego pelo Poder. Guetteres deixou o governo para outros, porque «tirou as devidas ilações» do voto dos portugueses, quando o PS perdeu a maioria das Câmaras do país.
Aproveitou a porta aberta? Pois sim. Estava cansado de governar? Talvez. Quem não estaria de um país destes?
Num anterior «post» associava, entre parêntesis e sem mais comentários, Ana Drago a Guterres, como exemplo do que é excepcional, pela positiva, no quadro da mediocridade em que se afunda a paisagem partidária portuguesa.
Se, em relação a Ana Drago, não me chegaram ecos de espanto, já em relação a Guterres tive inúmeros sinais da mais profunda estupefacção.
Guterres cometeu, de facto, um tenebroso erro político. Procurou ser um Gentleman, no mais nobre sentido da palavra, num país da treta. Os países da treta não lidam bem com Gentlemen. Não os entendem e, portanto, acabam por não os merecer. E, como dizia Talleyrand: um erro, em política, pode ser pior do que um crime.
Guterres é um homem cultivadíssimo. É engenheiro, o que só lhe fica evidentemente bem, sem que, no seu caso, isso signifique o desenvolvimento de um único hemisfério e o total bloqueio de outro. Ou seja: em Guterres os dois hemisférios cerebrais funcionam em pleno, revelando-nos um homem que sabe de números E de poesia, planeia pontes MAS ouve ópera, raciocina científica MAS TAMBÉM artisticamente, fala línguas e argumenta com uma invulgar agilidade. Basta fazermos a comparação com praticamente qualquer outro líder partidário português para termos a noção de que estamos perante pessoas que jogam em campeonatos diferentes. Pois bem: o que lhe valeu o seu engenho argumentativo foi, entre os portugueses, a imagem de verborreico e o nome de «picareta falante», que lhe inventou o rei da maledicência, do ataque gratuito e dos copos, que é Vasco Pulido Valente!
O grande desígnio de Guterres, se bem se lembram, era o diálogo. Entre todos os sectores e em todas as áreas, esforçou-se denodadamente por incentivar o diálogo. Não é estranho que essa tentativa, porventura ingénua, tenha tão facilmente passado por fraqueza, por falta de convicção ou de firmeza? Não sei se o diálogo terá sido sempre bem conduzido por ele. Se não terá errado. Pôr portugueses a dialogar com seriedade é obra. Mas daí à firmeza a raiar a intolerância com que o seu Delfim de então, José Sócrates, acabou por conquistar o Poder e governar Portugal vai uma diferença que nos permite pôr os dois lado a lado... e chorar de saudades!
Finalmente, e isto é o pior, Guterres ficará na História como o exemplo extremo de cobardia, como se tivesse abandonado o lugar que principiava a tornar-se pantanoso, no momento em que mais se esperaria que tivesse coragem de cumprir a sua missão até ao fim. E considero isso, essa imagem de indignidade, a maior das injustiças que o povo comete em face de um gesto, invulgaríssimo, é certo, entre os políticos portugueses, de verdadeiro desapego pelo Poder. Guetteres deixou o governo para outros, porque «tirou as devidas ilações» do voto dos portugueses, quando o PS perdeu a maioria das Câmaras do país.
Aproveitou a porta aberta? Pois sim. Estava cansado de governar? Talvez. Quem não estaria de um país destes?
VAI TRABALHAR, Ó!
Nuno Lopes é um jovem inteligente e talentoso.
Não é um cómico, no sentido redutor que a palavra tem. Sendo que, em si mesmo, não há mal nenhum em ser-se um cómico: Ricardo Araújo Pereira é-o assumidamente e repete à exaustão que não quer que nele vejam outra coisa; fez, todavia, da comédia em Portugal (e não sejamos injustos: fê-lo na peugada de um Raul Solnado e de um Herman José) uma Arte maior, provocadora, crítica, pensante. Mas RAP é RAP: um caso excepcional no panorama português.
Nuno Lopes não quer ser, ao contrário, um cómico: trata-se de um actor pleno e completo. Na verdade, de um excelente actor e, na minha opinião, um magnífico «gestor» (derrapamos sempre nestes lugares comuns, mas que fazer?) da sua carreira.
Fez telenovela no Brasil, onde outros portugueses, também convidados para outras tantas telenovelas, andaram a desgraçar a imagem de Portugal. Fez um papel discreto, de um jovem português apaixonado e, mesmo para quem não seja apreciador do género, os momentos em que ele surgia eram momentos brilhantes, que davam luz à novela. Valia bem a pena tirar os olhos do jornal ou do livro que estávamos lendo para nos fixarmos nessas suas aparições.
Nuno Lopes faz, sobretudo, teatro.
Nos momentos em que envereda pelo registo humorístico, evita sabiamente tiros no pé, como o «Levanta-te e Ri» ou os «Malucos do Riso».
Ele era impagável no papel de primo de uma personagem representada por Maria Rueff, integrados no que seria um grupo de teatro de uma associação recreativa de um lugarejo; era impagável no programa da Maria, imitando com génio e um invulgar poder de observação o Marco do Big Brother.
A sua última personagem, nos Contemporâneos, que não tem nome e repete incessantemente «Vai mas é trabalhar, ó!» é igualmente impagável.
Pelo que tenho visto por aí, em comentários dispersos, este boneco é um incompreendido e um mal-amado: as pessoas, que às vezes confundem as coisas, sentem-se incomodadas com um indivíduo cheio de tiques e deficiências que, num sarcasmo cortante e delirante, diz mal dos anões ou das velhinhas.
Acontece que a situação cómica pode ter diversas leituras: na minha perspectiva, não se trata de ridicularizar anões ou velhinhas, mas de parodiar uma mentalidade mesquinha e cruel, pretensiosa e invejosa.
A personagem, aliás, é profundamente democrática na sua maledicência: ele, que, por seu lado, não trabalha, canalizando todo o seu tempo e energia para a crítica dos outros, tanto se sente enraivecido com os portugueses bem-sucedidos (Vanessa Fernandes, Pacman: «Vai mas é trabalhar, ó! O que tu queres é aparecer!») como com os deficientes e os miseráveis. E trata-se, neste último caso, de levar ao extremo esta ideia bem portuguesa de que os males dos outros também podem ser matéria de inveja, porque convidam a uma invejável piedade ou a demais benefícios. «Ai eu sou anãozinho, sou tão querido, não sou?, vejam lá, só os anões é que são queridos, os outros não são queridos...» ou «Sou uma velhinha, ai ai, sou uma velhinha, não tenho pensão, o marido morreu-me, os filhos não querem saber de mim - o que tu queres é que tenham pena de ti, vai mas é trabalhar ó».
E mais não digo, porque não vale a pena estragar com excesso de reflexão aquilo que vale pelo seu efeito quando visto.
No blogue da Janota encontram alguns filmezinhos imperdíveis.
No youtube têm uma longa série. São uma vintena ou uma trintena de sketches.
Não gostas, pois não? Claro que não. (Ai, eu sou muito politicamente correcto, sou muito certinho, não é?, não aprecio ver gozar com anõezinhos, as pessoas gostam todas muito de mim, não tenho graça nenhuma, chamo-me Boaventura Sousa Santos ou assim). Tu queres é aparecer, mas é. Se não tens graça devias ir trabalhar para a agência funerária «Agnus Dei», ou então ter a função de fazer «shiiiu» no cinema quando os espectadores parvos se põem a comentar alto ou a rir despropositadamente, sempre eras mais útil à sociedade. Vai mas é trabalhar, ó!
Não é um cómico, no sentido redutor que a palavra tem. Sendo que, em si mesmo, não há mal nenhum em ser-se um cómico: Ricardo Araújo Pereira é-o assumidamente e repete à exaustão que não quer que nele vejam outra coisa; fez, todavia, da comédia em Portugal (e não sejamos injustos: fê-lo na peugada de um Raul Solnado e de um Herman José) uma Arte maior, provocadora, crítica, pensante. Mas RAP é RAP: um caso excepcional no panorama português.
Nuno Lopes não quer ser, ao contrário, um cómico: trata-se de um actor pleno e completo. Na verdade, de um excelente actor e, na minha opinião, um magnífico «gestor» (derrapamos sempre nestes lugares comuns, mas que fazer?) da sua carreira.
Fez telenovela no Brasil, onde outros portugueses, também convidados para outras tantas telenovelas, andaram a desgraçar a imagem de Portugal. Fez um papel discreto, de um jovem português apaixonado e, mesmo para quem não seja apreciador do género, os momentos em que ele surgia eram momentos brilhantes, que davam luz à novela. Valia bem a pena tirar os olhos do jornal ou do livro que estávamos lendo para nos fixarmos nessas suas aparições.
Nuno Lopes faz, sobretudo, teatro.
Nos momentos em que envereda pelo registo humorístico, evita sabiamente tiros no pé, como o «Levanta-te e Ri» ou os «Malucos do Riso».
Ele era impagável no papel de primo de uma personagem representada por Maria Rueff, integrados no que seria um grupo de teatro de uma associação recreativa de um lugarejo; era impagável no programa da Maria, imitando com génio e um invulgar poder de observação o Marco do Big Brother.
A sua última personagem, nos Contemporâneos, que não tem nome e repete incessantemente «Vai mas é trabalhar, ó!» é igualmente impagável.
Pelo que tenho visto por aí, em comentários dispersos, este boneco é um incompreendido e um mal-amado: as pessoas, que às vezes confundem as coisas, sentem-se incomodadas com um indivíduo cheio de tiques e deficiências que, num sarcasmo cortante e delirante, diz mal dos anões ou das velhinhas.
Acontece que a situação cómica pode ter diversas leituras: na minha perspectiva, não se trata de ridicularizar anões ou velhinhas, mas de parodiar uma mentalidade mesquinha e cruel, pretensiosa e invejosa.
A personagem, aliás, é profundamente democrática na sua maledicência: ele, que, por seu lado, não trabalha, canalizando todo o seu tempo e energia para a crítica dos outros, tanto se sente enraivecido com os portugueses bem-sucedidos (Vanessa Fernandes, Pacman: «Vai mas é trabalhar, ó! O que tu queres é aparecer!») como com os deficientes e os miseráveis. E trata-se, neste último caso, de levar ao extremo esta ideia bem portuguesa de que os males dos outros também podem ser matéria de inveja, porque convidam a uma invejável piedade ou a demais benefícios. «Ai eu sou anãozinho, sou tão querido, não sou?, vejam lá, só os anões é que são queridos, os outros não são queridos...» ou «Sou uma velhinha, ai ai, sou uma velhinha, não tenho pensão, o marido morreu-me, os filhos não querem saber de mim - o que tu queres é que tenham pena de ti, vai mas é trabalhar ó».
E mais não digo, porque não vale a pena estragar com excesso de reflexão aquilo que vale pelo seu efeito quando visto.
No blogue da Janota encontram alguns filmezinhos imperdíveis.
No youtube têm uma longa série. São uma vintena ou uma trintena de sketches.
Não gostas, pois não? Claro que não. (Ai, eu sou muito politicamente correcto, sou muito certinho, não é?, não aprecio ver gozar com anõezinhos, as pessoas gostam todas muito de mim, não tenho graça nenhuma, chamo-me Boaventura Sousa Santos ou assim). Tu queres é aparecer, mas é. Se não tens graça devias ir trabalhar para a agência funerária «Agnus Dei», ou então ter a função de fazer «shiiiu» no cinema quando os espectadores parvos se põem a comentar alto ou a rir despropositadamente, sempre eras mais útil à sociedade. Vai mas é trabalhar, ó!
sexta-feira, julho 11, 2008
O QUE FAZ UMA POLÍTICA DE ENSINO-PARA-OS-POBREZINHOS
O senhor Paulo Rangel não me interessa menormente.
O seu discurso gongórico, retoricamente aplainado, ensaiado certamente muitas vezes ao espelho e «dito» (no sentido em que se fala de «dizer» poesia), na Assembleia da República, num falsete anasalado, revela, em geral, pouco interesse. Prestou-se bem aos apartes jocosos e aos sarcasmos das raposas velhas do PS. É bem feito. Que se entredevorem!
Refiro-me aqui ao discurso, «en passant», porque no meio de uma profusão de figuras de estilo, tinha o mérito de, quase por acaso, chamar a atenção para um pormenor frequentemente esquecido:
Pensa-se, dizia Paulo Rangel, que o «facilitismo» é a melhor forma de ajudar os alunos pobres, os meninos das classes mais desfavorecidas - e isso, concluía ele, é um erro crasso!
O «facilitismo» significa, a médio ou a longo prazo, retirar aos estudantes economicamente mais debilitados a única verdadeira oportunidade de se formarem com qualidade e de se tornarem, do ponto de vista cultural, pessoas de excelência: onde, e com quem, teriam oportunidade de aprender o melhor da melhor forma? De conviver com a Poesia e com a Arte, de preferir bom teatro e bom cinema? Onde mais - e com quem - aprenderiam a argumentar e a debater? De que outra maneira apurariam o gosto, conheceriam a delicadeza de não atender o telemóvel numa conferência, durante um filme ou numa sessão seja do que for? Que outras oportunidades teriam e terão, alguma vez, de ganhar bolsas de estudo que lhes permitam ser aceites nas melhores universidades do estrangeiro, em competição com os mais qualificados e promissores jovens do mundo inteiro? Onde e com quem aprenderão a não dizer «sêjamos», «vistes» ou «tem a haver com»...?
Basta olharmos para a qualidade média dos políticos portugueses para nos inteirarmos. Com poucas e honrosas excepções (ocorre-me Ana Drago e Guterres: e, depois, há uma espécie de neblina selectiva na minha memória que me não deixa ser capaz de associar mais ninguém a esse campeonato), da Esquerda à Direita, a «classe» política é um exemplo feroz do mal que o facilitismo escolar pode provocar.
Um Ministério da Educação a sério, bem preparado, de gente culta, veria isto. Mas o Ministério, coitado, é, ele próprio, um exemplo daquilo que o eduquês pode produzir; e tem, é verdade, preocupações mais urgentes: criar uma galeria com as fotografias de todos os ministros que passaram pela 5 de Outubro desde 1962.
O seu discurso gongórico, retoricamente aplainado, ensaiado certamente muitas vezes ao espelho e «dito» (no sentido em que se fala de «dizer» poesia), na Assembleia da República, num falsete anasalado, revela, em geral, pouco interesse. Prestou-se bem aos apartes jocosos e aos sarcasmos das raposas velhas do PS. É bem feito. Que se entredevorem!
Refiro-me aqui ao discurso, «en passant», porque no meio de uma profusão de figuras de estilo, tinha o mérito de, quase por acaso, chamar a atenção para um pormenor frequentemente esquecido:
Pensa-se, dizia Paulo Rangel, que o «facilitismo» é a melhor forma de ajudar os alunos pobres, os meninos das classes mais desfavorecidas - e isso, concluía ele, é um erro crasso!
O «facilitismo» significa, a médio ou a longo prazo, retirar aos estudantes economicamente mais debilitados a única verdadeira oportunidade de se formarem com qualidade e de se tornarem, do ponto de vista cultural, pessoas de excelência: onde, e com quem, teriam oportunidade de aprender o melhor da melhor forma? De conviver com a Poesia e com a Arte, de preferir bom teatro e bom cinema? Onde mais - e com quem - aprenderiam a argumentar e a debater? De que outra maneira apurariam o gosto, conheceriam a delicadeza de não atender o telemóvel numa conferência, durante um filme ou numa sessão seja do que for? Que outras oportunidades teriam e terão, alguma vez, de ganhar bolsas de estudo que lhes permitam ser aceites nas melhores universidades do estrangeiro, em competição com os mais qualificados e promissores jovens do mundo inteiro? Onde e com quem aprenderão a não dizer «sêjamos», «vistes» ou «tem a haver com»...?
Basta olharmos para a qualidade média dos políticos portugueses para nos inteirarmos. Com poucas e honrosas excepções (ocorre-me Ana Drago e Guterres: e, depois, há uma espécie de neblina selectiva na minha memória que me não deixa ser capaz de associar mais ninguém a esse campeonato), da Esquerda à Direita, a «classe» política é um exemplo feroz do mal que o facilitismo escolar pode provocar.
Um Ministério da Educação a sério, bem preparado, de gente culta, veria isto. Mas o Ministério, coitado, é, ele próprio, um exemplo daquilo que o eduquês pode produzir; e tem, é verdade, preocupações mais urgentes: criar uma galeria com as fotografias de todos os ministros que passaram pela 5 de Outubro desde 1962.
domingo, julho 06, 2008
VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ [III]
Havia pior do que aquelas. A rainha, que sentia as entranhas devoradas de inveja e ciúme pelo facto de ser eu, tão mais novo, o líder daquela delirante expedição, e fazia menção de nunca pronunciar o meu nome, chamando-me, quando precisava, do alto da sua realeza, com um mero estalar de dedos carregado de superioridade e desprezo.
A discussão de que vos falo só acalmou quando a rainha me estalou, uma vez mais, dois dedos e eu lhe voltei ostensivamente as costas.
O silêncio caiu com uma força quase esmagadora no interior da sala habituada ao ruído...
E no momento seguinte, pareciam todas mais calmas, mais leves, mais suaves, quase doces: era um paradoxo igualmente insuportável, o espectáculo de fêmeas tão feias emitindo aqueles arrulhos, aquelas vozes de veludo, como se lhes escorresse ternura das bocas preparadas para gritar e cuspir.
Soube depois, muito mais tarde, que a rainha passara o resto do dia a chorar. Não vi - estivera fechado no meu próprio cubículo privado a chorar: no meu caso, de raiva por não poder bater-lhes!
O Professor Karamba alertava-me, agora, para os problemas que se abatiam sucessivamente sobre a «nave ronceira», como a designavam os velozes Angelius.
- Acha que são elas? - perguntei. - Tentativas de vingança?
- Se não conscientemente, inconscientemente... mas...
A rainha estalava-me, entretanto, os dedos ossudos. Calámo-nos. Estalou com mais força. Espirrou um humilhante «pssssiu».
Pus-me de pé, enervado.
Aproximei-me dela:
- Oiça! Se... - principiei.
Não tive tempo de acrescentar uma única palavra. Porque a rainha falou, começando imediatamente a chorar:
- Os Glauss! Vão atacar-nos. Estão em todo o lado!
[CONTINUA]
A discussão de que vos falo só acalmou quando a rainha me estalou, uma vez mais, dois dedos e eu lhe voltei ostensivamente as costas.
O silêncio caiu com uma força quase esmagadora no interior da sala habituada ao ruído...
E no momento seguinte, pareciam todas mais calmas, mais leves, mais suaves, quase doces: era um paradoxo igualmente insuportável, o espectáculo de fêmeas tão feias emitindo aqueles arrulhos, aquelas vozes de veludo, como se lhes escorresse ternura das bocas preparadas para gritar e cuspir.
Soube depois, muito mais tarde, que a rainha passara o resto do dia a chorar. Não vi - estivera fechado no meu próprio cubículo privado a chorar: no meu caso, de raiva por não poder bater-lhes!
O Professor Karamba alertava-me, agora, para os problemas que se abatiam sucessivamente sobre a «nave ronceira», como a designavam os velozes Angelius.
- Acha que são elas? - perguntei. - Tentativas de vingança?
- Se não conscientemente, inconscientemente... mas...
A rainha estalava-me, entretanto, os dedos ossudos. Calámo-nos. Estalou com mais força. Espirrou um humilhante «pssssiu».
Pus-me de pé, enervado.
Aproximei-me dela:
- Oiça! Se... - principiei.
Não tive tempo de acrescentar uma única palavra. Porque a rainha falou, começando imediatamente a chorar:
- Os Glauss! Vão atacar-nos. Estão em todo o lado!
[CONTINUA]
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