sábado, março 28, 2009

CORAGEM

Não sou católico. Rasguei o cartão e desvinculei-me do catolicismo ainda jovem, assim que desatei a perceber que a sua essência obrigava a que eu acreditasse: a) na existência de Deus; b) na do Pai Natal; c) na de um homem - Cristo - que não era obcecado por sexo. Ora esta última hipótese parecia-me altamente improvável...

Isto dito, devo confessar que, do seio da igreja católica apostólica romana portuguesa tenho visto sair, nos últimos tempos, posições de uma coragem que merece referência e vénia. Faço a referência. A vénia não posso senão muito levemente, e só com a cabeça, porque estou sentado ao computador.

Por um lado, ao Bispo de Viseu, que teve a ousadia de vir dizer, contra as palavras de Sua Santidade, que o preservativo é importante: que, mais, há situações em que se torna até um imperativo moral.

Por outro lado, a um senhor pároco, o qual (num assomo de indignação contra o jogo em que um árbitro resolveu roubar o Sporting, perante a passividade da polícia - e a do Benfica, de resto, que pouco se mexeu durante os noventa minutos...), gritou, em plena homilia, que não baptizaria, doravante, nenhuma criança com o nome do mesmo árbitro: que se os pais insistissem nesse impronunciável nome, mil vezes maldito, fossem baptizar o filho à Luz!

Não quero que me tomem por algum irresponsável, que coloca tão diferentes atitudes no mesmo saco e ao mesmo nível. Não sou nenhum idiota, não sou nenhum inconsciente. Sei ver que a segunda posição é muito mais corajosa do que a primeira: ambas poderão sofrer represálias, é certo, mas as represálias dirigidas contra o Bispo de Viseu hão-de vir, afinal, simplesmente do Papa: e o Papa é um velhinho de saias.
Quanto ao pároco, talvez tenha de se haver com os Diabos Vermelhos. E parece-me que, para um padre, isso não é bom!!!

sexta-feira, março 27, 2009

UM INSTANTE NO ENTARDECER

toda a viuvez do universo se materializou,
de súbito,
no vazio da janela e, por um momento, toda a viuvez era
a velha que aí assomava, de lenço preto preto
e uma bondade bruta
na alma
oculta sob a carta astrológica de rugas
prevendo-lhe o passado inteiro.

dentro do entardecer: um passeio de pedra, escadinhas tortuosas,
uma parede branca e a ferida
da janela
atirando, pequeninamente, para a grandeza trágica
da viuvez toda,
resumida toda num rosto e num lenço,
tais eram as partes do instante em que flutuava um tum tum tum,
se ouvia flutuar o tum tum tum
de sucessivos toques de um pé numa bola.

Sob a atenção agrestemente carinhosa do rosto de preto preto
na ferida da janela
(e tudo isto envolto pelo ferimento do entardecer),
uma neta miúda de cabelos em desequilíbrio
mantinha a bola no ar, sobre a ponta da sandalinha,
em vez de saltar à corda, pensei eu, estupidamente,
tum tum tum,
ou de brincar com bonecas:
tum tum tum.

E era triste que a tarde acabasse por matar tudo aquilo.

terça-feira, março 24, 2009

QUASE ALGUÉM MAIS

Ardekura Saikaro estava sentado, com a cabeça tombando, sonolenta, sobre uma pilha de testes por corrigir.
Era, portanto, um professor.
Mas, nos insterstícios da sua estranha, pesada e anormal sonolência vinha-lhe, por vezes, uma espécie de intuição; talvez nem fosse bem uma intuição: uma vaga vaga de sensações - não me enganei: era uma vaga, sim, só que não se tratava de uma nítida vaga e sim de uma vaga um tanto vaga -, um rápido, difuso e minúsculo advir de impressões, «impressões» que não tinham a força de «memórias», não chegava a ser um conjunto de memórias, mas que o remetiam para uma outra identidade, um heterónimo, um outro eu que as tivesse experimentado. Não percebia se era já um deslizar para o sono. Sonhava que era outro? Mas não lhe parecia. Sentia-se quase acordado. Sensações de um sonho incompleto que lhe povoavam a quase vigília, a meia vigília?
Ardekura Saikaro sentiu, portanto, que era outro. Que havia, nele, um outro. E estava quase a apropriar-se do seu heterónimo, quando, como se acordasse, o perdeu de vez.
«O cérebro prega-nos partidas», pensou.

O certo, é que nunca mais tornou a ser tão definitiva e completamente Adekura Saikaro.
Como se houvesse a possibilidade de o não ser.
E dizia a si mesmo:
«Sou Ardekura Saikaro ferido da suspeição de que poderei não ser Ardekura Saikaro...»

sexta-feira, março 20, 2009

COISAS, IDEIAS, DEFINIÇÕES, INVENÇÕES

Contra a praga de rapazes que andam aí furtando veículos, tenho andado a pensar num engenho que, simultanemente, colocaria os carros alheios, diante dos seus olhos, como fruta tentadora, obrigando-os a escolher entre o caminho do Bem e o do Mal, e trataria de punir no mesmo momento os que preferissem o caminho do Mal. Em que consiste? Numa chave que deixaríamos propositadamente na ranhura da porta do automóvel, com todo o ar de que o condutor aí a tivesse deixado por esquecimento (como às vezes me sucede): o ladrãozeco que pensasse «Olha, este facilita-me a vida» e tocasse na chave sofreria, de imediato, uma descarga eléctrica de que se não esqueceria.

Esta boa ideia pode ter uma previsível má consequência: esquecido como sou, pensaria muitas vezes «Olha, lá me esqueci outra vez da chave na porta do carro», e zzzzzzzzzzzzzzzt!!!

A Daisy dizia-me, no outro dia «Pai, caí!»; perguntei-lhe: «Caíste, filha? Onde?»; resposta: «Na rua!»; estranhando que pudesse ter ido à rua nesse dia, quis saber: «Ah sim? E que estavas tu a fazer na rua?»; retorquiu-me: «A cair!»

O que me faz recordar uma outra vez em que, em Espanha, tentando perceber se Daisy identificava o país onde se encontrava, o meu amigo M. lhe perguntou: «Olha, olha, diz lá! Onde tás tu?!»; ao que ela respondeu, com toda a simplicidade: «Aqui!»

O gosto é a coisa mais bem partilhada do mundo. Não conheço ninguém que não tenha gosto: trata-se, na maior parte dos casos, de mau gosto.

Redacção: O Dia do Pai.

Ontem, Dia do Pai, haviam-me pedido que fosse buscar mais cedo a Daisy ao infantário para «brincar com ela».
Fui.
Pelo caminho, cruzei-me com um pai de orelhas de cavalo em cartão e o filho cavalgando-lhe às costas. Vinham, justamente, do infantário. Havia outros pais em semelhantes figuras. Andavam numa espécie de Rally-pepper. Principiei a ver a minha vida a andar para trás.

Entrando corajosamente no antro, deparei com uma mesa carregada de comida. Aproximei-me, esfregando as mãos.
Uma Educadora barrou-me, mal-educadamente, o caminho:
«Isto é para os pais da sala M».

Retirei-me, envergonhado, em busca de Daisy.
Daisy fugiu de mim, assim que me viu.
Uma Educadora enfiou-me um garruço de lã e um cachecol. Fomos fazer um boneco de neve num tecido branco. Para a fotografia.
Depois, noutro local, colocaram-me uma boina, um colete e uma faixa e pediram-me que fosse dançarinhar com a minha filha. Para a fotografia.
Fui. Tirando que a minha filha não queria dançar. E fugia-me, enquanto a senhora esperava, pacientemente, de máquina em riste, e eu a caçava, de boina, colete e faixa.
Cheguei a casa um bocado arrasado.

terça-feira, março 10, 2009

WATCHMEN

Antes que a Angel e o Angelito, seu sobrinho cinéfilo, desatem a falar acerca de: Watchmen, The Movie (que não acredito que não tenham já ido ver), aproveito para tentar ser, no conjunto destes blogues amigos, o primeiro a fazê-lo.

Em primeiro lugar, porque fui.

Em segundo lugar, porque não gostei tanto como isso - e suponho que, nesta posição de espectador insatisfeito, irei estar, com toda a certeza, mais solitário do que Dr. Manhattan retirado em Marte para meditação.

Devo dizer, para já, que me havia tornado rapidamente em um fanático de: Watchmen: The Comic - referenciado há algum tempo pela Janota, seguido de muito perto pela Angel, que ia postando muito material que me arrepiava de prazer, comentado por Nuno Markl, descoberto, enfim, por mim na Biblioteca de Oeiras, comprado mais tarde na Fnac, este extraordinário romance gráfico tomou conta do leitor entusiasmado que posso ser: na linha de Neil Gaimon, recuperando porventura o melhor do espírito da DC e da Marvel - com o selo da DC Comics , precisamente -, inventando super-heróis credíveis num mundo que já perdeu a inocência de crer em super-heróis, explorando referências clássicas (está lá, por exemplo, algo como o acidente científico que originou The Incredible Hulk, ou o universo sombrio e neo-gótico onde a justiça depende do trabalho e do sofistacadíssimo material de um jovem milionário e sedento de vingança, que é Batman, ou, claro, o Surfista Prateado e a sua dificuldade em compreender a natureza humana, a qual, no entanto, tanto o perturba e comove), The Watchmen é uma Banda Desenhada completa, riquíssima, violenta q.b., com desenhos «clássicos» mas belíssimos, rigorosos e muito intensos.

Talvez em virtude desta incondicional paixão, a expectativa era elevada. Não dormia, mal comia, deixava crescer a barba enquanto o filme não chegava. Prevenia os meus alunos que não perdessem esta oportunidade única de compreenderem a Crítica da Razão Pura, de Kant, através da percepção do espaço e do tempo reveladas por uma personagem central, Dr. Manhattan, um ser de pura energia atómica que, nessa medida, não estaria sujeito às formas espacio-temporais que, segundo Kant, nos condicionam a priori.



E o filme veio. E eu fui com o meu filho. E, por uma vez, não resmunguei ante nada do que ele me propunha: aceitei comprar pipocas, coca-cola, aceitei jantar post-cine no MacDonald, fazer uma visita às lojas da moda, etc.

Não gostei.
Não gostei.
Claro que tem interesse observar até que ponto o realizador se procura aproximar do original: Rorschach é quase exactamente o Rorschach da BD, pequenino, ruivo, sardento, Nite Owl é idêntico, já para não falar do Comedian. O veículo de Nite Owl reproduz sem falhas o das imagens no álbum. Os diálogos são sedentamente bebidos da fonte: reparem, por exemplo, no impressionante monólogo de Rorschach que tanto me fascinou, na sua voz rouca e cínica. «Hão-de erguer a cabeça, e suplicar-me: Salva-nos! E eu olharei para baixo, e sussurrarei: Não!» Tudo é, aparentemente, a expressão, em cinema, da essência de Watchmen.

Contudo, aquela violência levada ao extremo visual, no filme, incomoda e, simultaneamente, banaliza: estamos perante uma espécie de Kill Bill.
Por outro lado, o que na BD se mantém credível tende a descair, em cinema, para o ridículo: um homem correndo, mascarado, pelas ruas, não salta, sem perder alguma coisa, das páginas das histórias em quadrinhos para a tela. Dou um único exemplo: podemos ver, em filme, sem esconder um frouxo de riso, a heroína que quebra pernas e arranca braços aos malfeitores, vestida num fato-de-banho amarelo, em latex, com meias de ligas e sapatos de salto alto? Ou: como nos sentimos em face de um ser azul, todo ele pura energia atómica, o extraordinário Dr. Manhattan que, no filme, parece ter olheiras, pés-de-galinha e papada?

Finalmente - e isto é decisivo -, aquele romance complexo, em que o tempo se adensa e multiplica num desafio constante às leis da Física, saltando para diante, recuando ao passado, numa espécie de cubismo temporal onde a regra é mais a simultaneidade do que a sucessão, funciona no álbum de Banda Desenhada: o leitor apropria-se vagarosamente, impõe o seu próprio ritmo, avança e, se não percebe, recua, torna ao princípio ou pára quando está já demasiado fatigado. Mas não se adapta à lógica de um filme onde tudo se torna, então, confuso, e o que se perdeu se torna, de algum modo, definitivamente irrecuperável, instalando o caos.

Força, Angel. Contra-ataca. Não deixes que eu mine o universo da consonância cinéfila através desta minha opinião. Destrói-me de uma vez. Como diria Rorschach, «Por que esperas? Mata-me!»

segunda-feira, março 09, 2009

OS PONTOS NOS II

1. É fácil, cómodo e apetecível criticar o governo como se este não estivesse equipado com o mínimo tipo de virtude. A verdade, porém, é que as últimas sondagens, como as anteriores e as de antes, continuam a prever uma nova maioria-PS: e isso obriga-nos a reconhecer, da parte do governo e do partido que o sustenta, um esforço denodado, rigoroso e vigoroso em duas áreas a que os portugueses se mostram sensíveis: a manipulação e a censura.

2. Por outro lado, o governo trata-nos da saúde. Em sentido figurado, mas também literal: impede-nos de progredir nas carreiras, não vamos nós ganhar o que gastaríamos em gorduras; torna as salas de espera dos hospitais locais infectos, com o sábio propósito de evitar que as pessoas se multipliquem nas Urgências de cada vez que são pisados por uma vizinha gorda. (Se assim fosse, iriam certamente ser aí contaminadas com novas doenças...). E, last but not the least, legisla sobre a quantidade de sal que deve ser usado no pão.

3. O pão português é pior do que o tabaco. Só conheço uma coisa pior do que o pão português. É... é... não consigo, aliás, lembrar-me do que seja, em virtude de andar a comer tanto pão. A minha tia Glorinha acha muito bem que o senhor Genheiro Sócrates (um Genheiro é alguém que não chegou a Engenheiro) garanta a qualidade do pão português. Este é tão mau como quase todos os portugueses, e tão pouco saudável que, da última vez que comi uma carcaça, ia-me afogando: talvez por não saber nadar; mas é também admissível que a carcaça pudesse ter alguma relação com o assunto...

4. Por fim, há que não esquecer que, o governo, dotou Todos os meninos (sendo que «todos» significa, na linguagem do governo: «Muito poucos») de computadores Magalhães.
Queixam-se, agora, alguns insatisfeitos - porque há sempre gente difícil de contentar -, de que existem, no Magalhães, aplicações, ou funções, ou programas, ou lá como é que se chama isso, que estão escritos em mau português, com erros ortográficos, de sintaxe, etc.
Ora, isso já é mesmo vontade de denegrir. Queixinhas! Penso que há má vontade ( se não má-fé) em que se simule tanto espanto. Ou, então, falta de informação.
Por mim, estou informado e não me espanto nada:
Quem já leu Despachos assinados pela sra. D. Margarida Moreira, como eu li, não iria certamente espantar-se com erros de português associados ao Ministério da Educação!

domingo, março 08, 2009

FERA NOCTÍVAGA

De manhã, ao acordar, vejo no tecto do meu quarto as pegadas sanguinolentas da fera que durante toda a noite por ali se passeou, desafiando as leis da gravidade.

Não tenho medo. Por enquanto. Sei que, à noite, durmo e sei - já percebi - que a fera não detecta seres que dormem. O seu faro busca vida, busca vigília, busca o pavor daqueles que não sejam capazes de pregar olho. (Imagino que me não baste «fingir» que durmo; imagino que ela se não deixaria enganar, como os leões não são enganados pela falsa coragem de um domador intimamente medroso...)

Às vezes, ao puxar o cobertor para cima, antes de apagar o candeeiro, penso: «Se acordar durante a noite, estou perdido!» ou «Se tiver insónias, acabarei caçado...»

Faltam-me dados: como é este ser de cabeça para baixo, deslocando-se no tecto, devoraria uma pessoa como eu, numa cama sobre o chão? Sugar-me-ia até si? Saltaria lestamente para me abocanhar e voltar ao tecto, com o meu corpo entre as suas presas? Como uma águia que pica, apanha o atemorizado coelho e sobe, de novo, com ele aprisionado nas garras?

Nada sei.

Sei que esta manhã, quando acordei, uma vez mais, lá estavam as pegadas: a forma das garras bem estampada, a sangue, no tecto.

sexta-feira, março 06, 2009

O PRESIDENTE QUE MANDOU PROIBIR TODA A MÚSICA: TRÊS

Conduzido à presença do presidente, começou a tremer.
O homem olhava-o, muito velho mas muito vivo, curioso de saber quem se atrevera a desafiá-lo.
Não fez q1ualquer pergunta. Mirava-o, simplesmente.
Ilídio queria sacar a flauta, mas tremia demasiado. Pensou: Estou perdido! Por um pouco - por um pouco não me salvo! Era só conseguir pegar na flauta, só isso, era só chegá-la aos lábios, só isso, mais nada, e soprar, só. Mas como conseguir com as mãos tremendo assim...?
Odiava-se por estar tão perto de mudar completamente a situação e não ser capaz de o fazer.
Passaram segundos. Minutos. Não havia tempo.

E de repente, lutando contra si mesmo, Ilídio segurou com força na flauta.
Viu o espanto acudir aos olhos do velho.
Se não lhe dessem um tiro, se o não abatessem, se conseguisse mais um pouco, um pouco mais, talvez...
Chegou a flauta aos lábios.
Ia conseguir: era só soprar e deixar que os dedos, sobre os buracos, manipulassem o som. Faltava tão pouco. Soprou. E, repentinamente, o seu sopro não era um sopro, era uma melodia ondeando, um fio de ar belíssimo, um desenho nos ouvidos...

Olhou para o presidente.
O espanto transformara-se. Em encantamento?
Não.
Em ironia.
E na distância que aquela ironia criava, Ilídio percebeu um vazio que a música não conseguia transpor, como se o presidente lhe fosse insensível, como se o presidente lhe estivesse fechado.
E o semblante do presidente fechava-se mais, como numa casa em que vemos cerrar com fúria janelas e portas. Já não era ironia, era raiva.

Ilídio não percebia.
Ilídio não percebia aquela fúria.
Ilídio percebeu.
De súbito.
O presidente não o podia ouvir. Ensurdecera; fechara-se completamente para a música, ele que tanto a amara.
O presidente era surdo.

A música não o salvaria, afinal.
Pelo contrário, perdia-o.

Deixou cair a flauta no chão.

FIM

quinta-feira, março 05, 2009

O PRESIDENTE QUE MANDOU PROIBIR TODA A MÚSICA: DOIS

Mas sucede que, de facto, Ilídio era escutado.
E ele, que sempre achara que, se o escutassem, se deixariam render ao poder da música, ele que julgava intimamente que só quem não ouvia música poderia proibi-la e, pelo contrário, quem ouvisse nem que fosse um trecho, não seria capaz de lutar contra ela, percebeu, um dia, que estava enganado.
Ilídio, que pensava que devia fazer tudo para que o não ouvissem, mas crendo, no fundo, que, se o ouvissem, não seriam capazes de fazer mal ao autor de algo tão belo, percebeu, um dia, que estava enganado.
Ilídio, um dia, viu a extensão do seu engano. Alguém o ouvira. Um vizinho, quem sabe, uma velha que passava na rua, um gato. Alguém ouvira. E se queixara, certa noite. E nessa mesma noite o vieram prender.

Mas quando soube que o presidente fazia questão de o ver pessoalmente, sentiu, de novo, espreguiçar-se a esperança: o presidente gostara de música, era sabido; o presidente, que devia ser muito velho (porque já era presidente, lembrem-se, quando o seu pai tinha seis anos), o presidente, que acompanhara, financiara, patrocinara orquestras e compositores, deixara, por alguma razão, de apreciar música, mas tinha certamente, no interior de si, uma reserva qualquer de curiosidade, uma melodia a correr-lhe ainda nas veias, uma nostalgia, um secreto desejo de harmonias sonoras.
E, portanto, Ilídio levou no bolso, para a entrevista com o senhor presidente, a sua flauta.
Escondida, mas pronta a disparar.
Escondida: mas, se tivesse tempo, se soubesse aproveitar o momento - estava certo - não havia como não conseguir acordar o senhor presidente, não havia como não fazê-lo recordar uma longínqua maravilha algures num recôndito ponto da sua memória, não havia como não salvar-se...

Escondida, mas pronta a salvá-lo e a salvar a música e a salvar a pátria, num bolso, a flauta.
Escondida, num bolso, a flauta.
A flauta, escondida.
Escondida, a flauta.
Ah: num bolso!

quarta-feira, março 04, 2009

O PRESIDENTE QUE MANDOU PROIBIR TODA A MÚSICA: UM

Tocava em segredo.
A flauta fora-lhe oferecida pelo pai; curiosamente, o segredo da sua música fora uma condição imposta pelo pai.
É estranho que se fale de música secreta: um livro pode ser lido em silêncio; um desenho pode ficar oculto; quase toda a forma de arte, que me lembre, pode permanecer fechada. Há gavetas, há pastas, há chaves. Para quase toda a obra é possível inventar-se uma tampa. Para quase toda. Mas para a música, dificilmente, porque a partir do momento em que eu sopre ou dedilhe uma nota, não garanto que não haja, algures, algum ouvido pronto a captá-la. Não há gavetas para as notas, não há tampas, não há chaves.

Ilídio compreendia, no entanto, o seu pai.
O pai ainda vivera o tempo em que o seu pequeno país era considerado a pátria da música. Em que os grandes compositores e os grandes músicos eram respeitados e amados. Em que podiam ouvir cânticos entoados pelas ruas. Em que todos os dias havia espectáculos.
Um bisavô de Ilídio fora músico. A música era o seu sangue. Ouvia-a no interior do seu corpo. Tinha até mais força do que o sangue, porque nunca ouvira o sangue a correr nas veias.

O pai de Ilídio não teria mais do que seis anos, quando a música começara a ser proibida pelo presidente.
Quase com raiva. O que era estranho, posto que o próprio presidente fora, durante anos, um melómano, um defensor das Artes e enorme patrono da música.
Abria salas, mandava construir coretos, financiava orquestras.
Depois, começaram a surgir as proibições.
E as perseguições.

Ilídio recebera uma flauta, pois, numa época em que não havia flautas e ninguém saberia o que fazer com elas.
Numa altura em que, na antiga pátria da música, a música era interdita.
Teve de aprender a tocá-la sozinho.
Soprando. Desafinando. Descobrindo. Afinando. Assobiando leve, leve, leve e docemente por um canudo em madeira.
Mas tinha de o fazer em segredo.

(Tinha sempre o medo e a esperança - o medo mesclado com a esperança - de que, algures, fosse onde fosse, alguém ouvisse a melodia que tirava do nada, ou de quase nada, de um simples pau com alguns buracos...)