quarta-feira, março 04, 2009

O PRESIDENTE QUE MANDOU PROIBIR TODA A MÚSICA: UM

Tocava em segredo.
A flauta fora-lhe oferecida pelo pai; curiosamente, o segredo da sua música fora uma condição imposta pelo pai.
É estranho que se fale de música secreta: um livro pode ser lido em silêncio; um desenho pode ficar oculto; quase toda a forma de arte, que me lembre, pode permanecer fechada. Há gavetas, há pastas, há chaves. Para quase toda a obra é possível inventar-se uma tampa. Para quase toda. Mas para a música, dificilmente, porque a partir do momento em que eu sopre ou dedilhe uma nota, não garanto que não haja, algures, algum ouvido pronto a captá-la. Não há gavetas para as notas, não há tampas, não há chaves.

Ilídio compreendia, no entanto, o seu pai.
O pai ainda vivera o tempo em que o seu pequeno país era considerado a pátria da música. Em que os grandes compositores e os grandes músicos eram respeitados e amados. Em que podiam ouvir cânticos entoados pelas ruas. Em que todos os dias havia espectáculos.
Um bisavô de Ilídio fora músico. A música era o seu sangue. Ouvia-a no interior do seu corpo. Tinha até mais força do que o sangue, porque nunca ouvira o sangue a correr nas veias.

O pai de Ilídio não teria mais do que seis anos, quando a música começara a ser proibida pelo presidente.
Quase com raiva. O que era estranho, posto que o próprio presidente fora, durante anos, um melómano, um defensor das Artes e enorme patrono da música.
Abria salas, mandava construir coretos, financiava orquestras.
Depois, começaram a surgir as proibições.
E as perseguições.

Ilídio recebera uma flauta, pois, numa época em que não havia flautas e ninguém saberia o que fazer com elas.
Numa altura em que, na antiga pátria da música, a música era interdita.
Teve de aprender a tocá-la sozinho.
Soprando. Desafinando. Descobrindo. Afinando. Assobiando leve, leve, leve e docemente por um canudo em madeira.
Mas tinha de o fazer em segredo.

(Tinha sempre o medo e a esperança - o medo mesclado com a esperança - de que, algures, fosse onde fosse, alguém ouvisse a melodia que tirava do nada, ou de quase nada, de um simples pau com alguns buracos...)

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