Daisy começou bem, com uma pergunta que me pareceu particularmente interessante:
DAISY: Pai, por que é que os duendes do Noddy são maus?
EU: Porque gostam de fazer partidas.
DAISY: Porquê?
EU: Porque se divertem assim...
DAISY: Porquê?
EU: Porque ninguém gosta deles.
DAISY: Porquê?
Já percebi que não tenho saída. Está, flagrantemente, na fase dos «porquês?». Porquê? Não sei; sei que estou farto. Mas sinto-me inteligente. Opto por uma solução que me parece engenhosa, ehehe.
EU: Daisy, os duendes são maus porque as mães deles eram más.
DAISY: Porquê?
EU: Porque as mães das mães deles eram más.
DAISY: Porquê?
EU: Porque as mães das mães das mães deles eram más.
Divirto-me, mas ela percebeu que não saímos disto. Zanga-se. Inicia uma birra. Pede-me que não continue a responder com as mães.
EU: Sim, Daisy. Então, deixa-me explicar de outra maneira. Isto não tem que ver com as mães, de facto. Os duendes do Noddy são maus porque os pais deles eram maus.
DAISY: Porquê?
EU: Porque os pais dos pais deles eram maus.
Daisy percebe imediatamente o meu caminho. Grita. Já estou irritado.
EU: Pronto. Daisy. Então vou-te dar uma resposta definitiva. Mas não podes perguntar-me porquê. Ficas-te com ela. É isto: os duendes do Noddy são maus porque todos os duendes são maus. Porque é da natureza dos duendes serem maus.
DAISY [furiosa]: Mas isso é uma grande mentira, pai. Os duendes do Pai Natal não são maus. São bons. E ajudam o Pai Natal a dar prendas a todos os meninos. Não são maus, são bons.
Calo-me. E calo-me. E calo-me.
sábado, julho 31, 2010
ANTÓNIO FEIO
Era bom e generoso. Como actor, foi capaz de fazer coisas muito más, valha a verdade, mas também do melhor. Os diálogos que mantinha com José Pedro Gomes, como Zezé e Toni, dois pintas típicos, cheios de filosofia barata e espírito de observação contundente, eram verdadeiramente impagáveis. E nunca esqueçamos que Feio, na companhia do mesmo José Pedro Gomes, se abalançou a representar O Que Diz Molero, de Dinis Machado, obra difícil e maior da Literatura Portuguesa.
Agarrava-se à vida com unhas e dentes, uma esperança desesperada, uma obstinação e uma teimosia que lhe eram próprias. Não ganhou.
O país, que não só o perdeu como, ainda por cima, continua com Sócrates e Queirós, está deprimidíssimo.
quinta-feira, julho 22, 2010
O CONCURSO DE VERÃO
DN e JN estão ambos publicando, em conjunto, às 3ªs, 5ªs, sábados e domingos, aquilo a que chamam um conjunto de Autores Clássicos da Literatura.
Poderíamos dizer que, simultaneamente, a lista desses autores seleccionados, e de que vão editando obras-primas, tem de ser encarada como um teste, um passatempo, qualquer coisa ao género de «Descubra o Intruso» ou «Que Objecto Não Pertence a esta Série?».
Poderia explicar melhor, mas basta-me apresentar a série:
Lewis Carroll
Oscar Wilde
Eduardo Pitta
Prosper Mérimée
Machado de Assis
Victor Hugo
Carlos Quiroga
Patrick Süskind
Walter Scott
Eça de Queirós
R. L. Stevenson
Marguerite Duras
Leão Tolstoi
Alexandre Herculano
Enid Meadowcroft
Sheridan Le Fanu
Joseph Conrad
Fialho de Almeida
Herman Broch
Arthur Schnitzler
Fiodor Dostoievski
Antoine Saint-Exupéry
D.H. Lawrence
Edgar Allan Poe
Jorge Luís Borges
Henry James
Bram Stoker.
Se quisermos excluir à partida os autores estrangeiros, ficamos com os seguintes portugueses: Eduardo Pitta, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Fialho de Almeida. O único contemporâneo ou, pelo menos, o autor vivo que consta é, portanto, um senhor chamado Eduardo Pitta. Não Gonçalo M. Tavares (que poderia já ser considerado um «clássico»), não José Luís Peixoto - ou, entre os mais antigos, Mário de Carvalho. (Já não falo de Agustina). Não: Eduardo Pitta. Por que diabo!? A que propósito!? Segundo que critério? Com que argumento!?
Fico indignado. Tento explicar, ao meu filho, a razão desta indignação. «Não vejo outra explicação, senão que o homem tenha sido o próprio responsável pela lista, ou seja amigo ou amante de alguém...»
Meu filho ainda ensaia: «Mas, pai, não pode ser uma questão de gosto? Tu não gostares, mas o senhor que decidiu, achar que é muito bom, tal como tu admitirias o Gonçalo Tavares, que o senhor pode achar que é muito mau?»
Como explicar-lhe que, se o critério é uma lista de "clássicos", Eduardo Pitta não cabe de jeito nenhum, por muitas voltas que se dêem, por critérios dúbios que se inventem? Como explicar-lhe que não faz sentido juntar-se, numa lista de "clássicos" da Literatura, Eduardo Pitta e, por exemplo, Victor Hugo?
«Victor Hugo Cardinalli?», pergunta-me o miúdo. «O dos circos? Olha, eu nem sabia que esse escrevia "clássicos"...»
E eu, frustrado e vencido, calo-me. Calo-me!
Poderíamos dizer que, simultaneamente, a lista desses autores seleccionados, e de que vão editando obras-primas, tem de ser encarada como um teste, um passatempo, qualquer coisa ao género de «Descubra o Intruso» ou «Que Objecto Não Pertence a esta Série?».
Poderia explicar melhor, mas basta-me apresentar a série:
Lewis Carroll
Oscar Wilde
Eduardo Pitta
Prosper Mérimée
Machado de Assis
Victor Hugo
Carlos Quiroga
Patrick Süskind
Walter Scott
Eça de Queirós
R. L. Stevenson
Marguerite Duras
Leão Tolstoi
Alexandre Herculano
Enid Meadowcroft
Sheridan Le Fanu
Joseph Conrad
Fialho de Almeida
Herman Broch
Arthur Schnitzler
Fiodor Dostoievski
Antoine Saint-Exupéry
D.H. Lawrence
Edgar Allan Poe
Jorge Luís Borges
Henry James
Bram Stoker.
Se quisermos excluir à partida os autores estrangeiros, ficamos com os seguintes portugueses: Eduardo Pitta, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Fialho de Almeida. O único contemporâneo ou, pelo menos, o autor vivo que consta é, portanto, um senhor chamado Eduardo Pitta. Não Gonçalo M. Tavares (que poderia já ser considerado um «clássico»), não José Luís Peixoto - ou, entre os mais antigos, Mário de Carvalho. (Já não falo de Agustina). Não: Eduardo Pitta. Por que diabo!? A que propósito!? Segundo que critério? Com que argumento!?
Fico indignado. Tento explicar, ao meu filho, a razão desta indignação. «Não vejo outra explicação, senão que o homem tenha sido o próprio responsável pela lista, ou seja amigo ou amante de alguém...»
Meu filho ainda ensaia: «Mas, pai, não pode ser uma questão de gosto? Tu não gostares, mas o senhor que decidiu, achar que é muito bom, tal como tu admitirias o Gonçalo Tavares, que o senhor pode achar que é muito mau?»
Como explicar-lhe que, se o critério é uma lista de "clássicos", Eduardo Pitta não cabe de jeito nenhum, por muitas voltas que se dêem, por critérios dúbios que se inventem? Como explicar-lhe que não faz sentido juntar-se, numa lista de "clássicos" da Literatura, Eduardo Pitta e, por exemplo, Victor Hugo?
«Victor Hugo Cardinalli?», pergunta-me o miúdo. «O dos circos? Olha, eu nem sabia que esse escrevia "clássicos"...»
E eu, frustrado e vencido, calo-me. Calo-me!
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a estupidez é arrogante e tende a impor-se
quarta-feira, julho 21, 2010
MENTIROSOS
Haroldo P. Frutuoso publicou, em Brasília, nos anos oitenta, uma dissertação académica, na área da sociologia (mas com inescapáveis implicações psicológicas e éticas), acerca da mentira.
A tese é comprometedora. H. P. Frutuoso pega numa afirmação de Kant, segundo a qual «a mentira nunca poderia ser o imperativo categórico», porque uma sociedade «guiada pela mentira», pelo «espírito da mentira», pela aceitação do mentir, como lei absoluta, rapidamente soçobraria. Nunca, numa tal sociedade, se poderia crer numa promessa ou num juramento; nenhum contrato faria sentido ou teria o menor valor. Pega nessa afirmação e inverte-a, perguntando-se: como poderia uma sociedade - qualquer sociedade -, pelo contrário, sobreviver sem a mentira?
A tese faz pensar. Haroldo não defende, naturalmente, que a mentira possa ser aceite como lei. «Isso», escreve na página 130, «seria uma contradição. A natureza da mentira é ser não-lei: sua natureza é, justamente, "enganar", decepcionar a regra, não de frente, mas de modo oculto.»
O que ele, sim, defende, é que um ser que exige, como fundamento último da sua existência, a mentira de um deus que o houvesse criado e o receba em seus braços imateriais após a morte, é um ser que nunca suportaria viver sem a mentira nos diferentes departamentos do seu quotidiano.
Harolodo sustenta que o próprio eu é, reparem, uma "mentira": não existe "eu" senão como mito pessoal de cada um - a consciência que o "sujeito" toma como sendo seu centro e sua sede mais não é do que o frágil bote, mais aparente do que real, em que a pessoa se não sente à mercê de forças inconscientes, a natureza em fúria, o mar agitado. Pede, se estão lembrados, esta imagem emprestada a Schopenhauer.
Mas em termos sociais, pretende Haroldo, todas as relações carecem de um grau maior ou menor de mentira, mais ou menos consciente, para se poderem manter. A verdade é anti-social. A verdade é anti-humana. Se a humanidade inteira coincidisse no cumprimento da regra de "dizer a verdade", e a respeitasse escrupulosamente durante um certo tempo, um instante que fosse, terrível seria o tsunami de catástrofes, suicídios, homicídios que daí adviria...
Espanta-me que se tenha a coragem de publicar uma tese assim. Penso que, a ser o seu conteúdo verdadeiro, preferível seria que nos mentissem acerca disso...
A tese é comprometedora. H. P. Frutuoso pega numa afirmação de Kant, segundo a qual «a mentira nunca poderia ser o imperativo categórico», porque uma sociedade «guiada pela mentira», pelo «espírito da mentira», pela aceitação do mentir, como lei absoluta, rapidamente soçobraria. Nunca, numa tal sociedade, se poderia crer numa promessa ou num juramento; nenhum contrato faria sentido ou teria o menor valor. Pega nessa afirmação e inverte-a, perguntando-se: como poderia uma sociedade - qualquer sociedade -, pelo contrário, sobreviver sem a mentira?
A tese faz pensar. Haroldo não defende, naturalmente, que a mentira possa ser aceite como lei. «Isso», escreve na página 130, «seria uma contradição. A natureza da mentira é ser não-lei: sua natureza é, justamente, "enganar", decepcionar a regra, não de frente, mas de modo oculto.»
O que ele, sim, defende, é que um ser que exige, como fundamento último da sua existência, a mentira de um deus que o houvesse criado e o receba em seus braços imateriais após a morte, é um ser que nunca suportaria viver sem a mentira nos diferentes departamentos do seu quotidiano.
Harolodo sustenta que o próprio eu é, reparem, uma "mentira": não existe "eu" senão como mito pessoal de cada um - a consciência que o "sujeito" toma como sendo seu centro e sua sede mais não é do que o frágil bote, mais aparente do que real, em que a pessoa se não sente à mercê de forças inconscientes, a natureza em fúria, o mar agitado. Pede, se estão lembrados, esta imagem emprestada a Schopenhauer.
Mas em termos sociais, pretende Haroldo, todas as relações carecem de um grau maior ou menor de mentira, mais ou menos consciente, para se poderem manter. A verdade é anti-social. A verdade é anti-humana. Se a humanidade inteira coincidisse no cumprimento da regra de "dizer a verdade", e a respeitasse escrupulosamente durante um certo tempo, um instante que fosse, terrível seria o tsunami de catástrofes, suicídios, homicídios que daí adviria...
Espanta-me que se tenha a coragem de publicar uma tese assim. Penso que, a ser o seu conteúdo verdadeiro, preferível seria que nos mentissem acerca disso...
terça-feira, julho 20, 2010
NÃO TEMOS CHEIRO!? AI NÃO!
Por que razão a nossa percepção é, quase automaticamente, imediatamente - racista?
Porque tende a ocultar, de nós mesmos, as nossas próprias características: é o que torna tão evidentes as características dos outros.
Por outras palavras: habituamo-nos à nossa pele, tal como, na casa de banho, nos habituamos ao nosso mau-cheiro, e não temos consciência deste. Porém, o cheiro dos outros impõe-se-nos.
Duvido que pudéssemos ser ainda racistas, se fizéssemos alguma ideia de como realmente cheiramos ao nariz alheio.
Porque tende a ocultar, de nós mesmos, as nossas próprias características: é o que torna tão evidentes as características dos outros.
Por outras palavras: habituamo-nos à nossa pele, tal como, na casa de banho, nos habituamos ao nosso mau-cheiro, e não temos consciência deste. Porém, o cheiro dos outros impõe-se-nos.
Duvido que pudéssemos ser ainda racistas, se fizéssemos alguma ideia de como realmente cheiramos ao nariz alheio.
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segunda-feira, julho 19, 2010
ANARQUISTA, GRAÇAS A DEUS
Porque não sei de nenhum outro nome para qualificar uma pessoa que defende o que defendo, aceito que me considerem anarquista.
Sou um anarquista heterodoxo, claro. (Pensando bem: se me revisse em alguma ortodoxia, dificilmente faria sentido que me intitulasse "anarquista"). Para começar, porque não prescindo da autoridade - no sentido de autoritas, ou seja, não de um poder que se impõe de cima para baixo, mas de um outro que se manifesta a partir de dentro, emanando do sujeito como expressão do que o dignifica e torna respeitável aos olhos dos outros.
O meu anarquismo não projecta a sua existência em qualquer futuro longínquo. Exerce-se agora e aqui. Não preciso de defrontar o poder do Estado ou combater a força da escola ou da igreja. Não sei nem me interessa saber se o anarquismo é viável como política social. O meu anarquismo é realizado diariamente em microclima. Daí que despreze tanto a acéfala tentativa de se esvaziar os micro-contextos. O universo do meu anarquismo é o grupo - os alunos, os colegas, os amigos. Os clubes, os movimentos. Que triste sina a deste micro-anarquismo, de resto, em tempos de se preferir a cultura dos Mega e do Global à cultura do micro...
O meu anarquismo é só indirectamente uma forma de política. É, primária e directamente, uma forma de ética e de cultura. Consiste nisto: em contexto de grupo, turma, comunidade, procuro que não haja um poder formal, que amesquinhe ou submeta os outros. Uma aula de filosofia é um claro exemplo de anarquia - não porque eu não seja o professor, não porque me não assuma como tal, mas porque todo o meu trabalho se dirige à liberdade de cada um, chama por ela, entende-se com ela, procura-a num terreno de convivência entre liberdades.
Dir-me-ão, e justamente, que, em última análise, as notas existem, e que eu as atribuo. E que se trata, de facto, de um exercício de poder. Dir-me-ão que sou eu quem corrige - nem que seja, afinal, os erros de sintaxe. Dir-me-ão que, portanto, aquilo que designo por "anarquismo" encapota, afinal, um poder. Será, então, uma forma de manipulação.
Mas entenda-se que, nas minhas contradições, na medida em que me cinjo ao sistema, estou, no interior do mesmo, como o moscardo socrático, que não deixa descansar, como o elemento que corrói o sistema ou que, pelo menos, procura fazer crescer a consciência para além do que o sistema pode suportar. Não espero, com isso, que o sistema venha, a prazo, a explodir. Não tenho, repito, um projecto a longo prazo. Mas sou, no sistema, uma consciência extra-sistema. Sou, no planeta Terra, um extra-terrestre. Aponto, indico, abro, rasgo. Exerço. Contesto, critico. Exerço. Não estou, senão aparentemente, ao serviço do Ministério. Na realidade, crio cultura. É o que exerço. Nada de especial, é o que qualquer professor pode fazer, se nem todos o fazem. E onde a cultura não está submetida a lógicas de poder - seja a lógica do Estado, a lógica dos bons-costumes, a lógica, sequer, do mercado -, o que existe é uma sociedade insubmissa, espaço da fruição anarquista.
Eis a minha proposta.
Sou um anarquista heterodoxo, claro. (Pensando bem: se me revisse em alguma ortodoxia, dificilmente faria sentido que me intitulasse "anarquista"). Para começar, porque não prescindo da autoridade - no sentido de autoritas, ou seja, não de um poder que se impõe de cima para baixo, mas de um outro que se manifesta a partir de dentro, emanando do sujeito como expressão do que o dignifica e torna respeitável aos olhos dos outros.
O meu anarquismo não projecta a sua existência em qualquer futuro longínquo. Exerce-se agora e aqui. Não preciso de defrontar o poder do Estado ou combater a força da escola ou da igreja. Não sei nem me interessa saber se o anarquismo é viável como política social. O meu anarquismo é realizado diariamente em microclima. Daí que despreze tanto a acéfala tentativa de se esvaziar os micro-contextos. O universo do meu anarquismo é o grupo - os alunos, os colegas, os amigos. Os clubes, os movimentos. Que triste sina a deste micro-anarquismo, de resto, em tempos de se preferir a cultura dos Mega e do Global à cultura do micro...
O meu anarquismo é só indirectamente uma forma de política. É, primária e directamente, uma forma de ética e de cultura. Consiste nisto: em contexto de grupo, turma, comunidade, procuro que não haja um poder formal, que amesquinhe ou submeta os outros. Uma aula de filosofia é um claro exemplo de anarquia - não porque eu não seja o professor, não porque me não assuma como tal, mas porque todo o meu trabalho se dirige à liberdade de cada um, chama por ela, entende-se com ela, procura-a num terreno de convivência entre liberdades.
Dir-me-ão, e justamente, que, em última análise, as notas existem, e que eu as atribuo. E que se trata, de facto, de um exercício de poder. Dir-me-ão que sou eu quem corrige - nem que seja, afinal, os erros de sintaxe. Dir-me-ão que, portanto, aquilo que designo por "anarquismo" encapota, afinal, um poder. Será, então, uma forma de manipulação.
Mas entenda-se que, nas minhas contradições, na medida em que me cinjo ao sistema, estou, no interior do mesmo, como o moscardo socrático, que não deixa descansar, como o elemento que corrói o sistema ou que, pelo menos, procura fazer crescer a consciência para além do que o sistema pode suportar. Não espero, com isso, que o sistema venha, a prazo, a explodir. Não tenho, repito, um projecto a longo prazo. Mas sou, no sistema, uma consciência extra-sistema. Sou, no planeta Terra, um extra-terrestre. Aponto, indico, abro, rasgo. Exerço. Contesto, critico. Exerço. Não estou, senão aparentemente, ao serviço do Ministério. Na realidade, crio cultura. É o que exerço. Nada de especial, é o que qualquer professor pode fazer, se nem todos o fazem. E onde a cultura não está submetida a lógicas de poder - seja a lógica do Estado, a lógica dos bons-costumes, a lógica, sequer, do mercado -, o que existe é uma sociedade insubmissa, espaço da fruição anarquista.
Eis a minha proposta.
domingo, julho 18, 2010
SMALL IS BEAUTIFULL
De que signo serão as pessoas que "reflectem", no Ministério da Educação?
De onde surge este manancial de ideias grotescas, sem estudo, aprofundamento nenhum, entre um "eduquês" ultrapassado em toda a parte e a obsessão da estatística? De onde vem esta gente? Como se faz ouvir e singra? Com que direito liquida, destrói, desconsidera, esvazia, em nome de uns resultados falsos ou de não sei que raio!?
A minha escola, entre erros e insuficiências, defeitos e conflitos, construiu, ao longo de trinta anos, uma cultura singular, uma dinâmica própria, um projecto vivo. Promove a democracia nas relações entre os órgãos e nos laços entre todas as pessoas, os líderes, os professores, os alunos, os funcionários. Une docentes e discentes em torno de projectos que vingam pela sua força, não pela imagem nem para "fazer bonito" em qualquer tipo de avaliação. Tem, há muitos anos, uma revista premiada, recebeu, ao longo do tempo, intelectuais como Agualusa, Gastão Cruz, Gonçalo M. Tavares, Jorge Leitão Ramos, Pedro Mexia. Há um Clube de Cinema, há um fanzine. Convida políticos. Há professores que entusiasmam os rapazes e as raparigas a cultivarem hortas, das quais consumimos os produtos frescos, e professores de matemática empenhados em ideias e projectos para agarrar alunos e auxiliá-los na difícil aprendizagem das matemáticas.
Com que direito se iria fundir este oásis de espírito e cultura num Mega-Agrupamento, sob uma direcção única, abstracta e desconhecedora, segundo um projecto anónimo e desatento às particularidades e às diferenças?
Com que direito, e por que razão, e com que justificação, se encaixariam vários pequenos viveiros numa massa global, inculta, cumprindo objectivos meramente economicistas ou servindo sedes políticas? A que propósito desfazer a virtude do "micro", dos pequenos universos de sentido, em prol de um Sentido Único, devorador, imposto de cima para baixo, numa imparável e cega marcha de agregação?
Recordando Talleyrand: «É que isso é pior do que um crime! É um erro!»
De onde surge este manancial de ideias grotescas, sem estudo, aprofundamento nenhum, entre um "eduquês" ultrapassado em toda a parte e a obsessão da estatística? De onde vem esta gente? Como se faz ouvir e singra? Com que direito liquida, destrói, desconsidera, esvazia, em nome de uns resultados falsos ou de não sei que raio!?
A minha escola, entre erros e insuficiências, defeitos e conflitos, construiu, ao longo de trinta anos, uma cultura singular, uma dinâmica própria, um projecto vivo. Promove a democracia nas relações entre os órgãos e nos laços entre todas as pessoas, os líderes, os professores, os alunos, os funcionários. Une docentes e discentes em torno de projectos que vingam pela sua força, não pela imagem nem para "fazer bonito" em qualquer tipo de avaliação. Tem, há muitos anos, uma revista premiada, recebeu, ao longo do tempo, intelectuais como Agualusa, Gastão Cruz, Gonçalo M. Tavares, Jorge Leitão Ramos, Pedro Mexia. Há um Clube de Cinema, há um fanzine. Convida políticos. Há professores que entusiasmam os rapazes e as raparigas a cultivarem hortas, das quais consumimos os produtos frescos, e professores de matemática empenhados em ideias e projectos para agarrar alunos e auxiliá-los na difícil aprendizagem das matemáticas.
Com que direito se iria fundir este oásis de espírito e cultura num Mega-Agrupamento, sob uma direcção única, abstracta e desconhecedora, segundo um projecto anónimo e desatento às particularidades e às diferenças?
Com que direito, e por que razão, e com que justificação, se encaixariam vários pequenos viveiros numa massa global, inculta, cumprindo objectivos meramente economicistas ou servindo sedes políticas? A que propósito desfazer a virtude do "micro", dos pequenos universos de sentido, em prol de um Sentido Único, devorador, imposto de cima para baixo, numa imparável e cega marcha de agregação?
Recordando Talleyrand: «É que isso é pior do que um crime! É um erro!»
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UM DEFEITO DO VIZINHO PERFEITO
Há pessoas, não sei, que parece que, para melhor exibir a luz das suas qualidades, têm de diminuir os outros.
Assim sucede com o meu vizinho M., à parte isso, de facto, muito boa pessoa e homem prestativo.
Porém, quando o apresento a alguém - à minha tia, a algum amigo, a certa visita -, se tenho necessidade de lembrar que é uma «espécie de Salvador da Pátria», e recordar como «foi ele que subiu, por uma escada de madeira, ao primeiro andar, para arrancar à casa de banho a minha filha, que se tinha fechado por dentro à chave», etc, etc, etc, raramente não recebo por resposta qualquer coisa a sublinhar um defeito, uma incompetência, um falhanço meus.
No outro dia, apresentava-o à minha mãe, com o sorriso e as fórmulas do costume, Salvador da Pátria, Um vizinho cheio de recursos, etc, etc, etc - e responde-me ele, mirando com desconfiança os pneus do meu automovelzeco:
«Está com os pneus muito em baixo, vizinho. Tem de ver isso, o vizinho não se preocupa com o carro!? Olhe que eu, o meu...!»
Mas a melhor foi de uma vez em que o apresentava já me nem lembro a quem. Blá, blá, blá, Sempre que estou em apuros, aqui o vizinho, e blá, blá, blá.
E ele, estudando-me fixamente o rosto:
«Ó vizinho. O vizinho não sabe fazer a barba!»
Assim sucede com o meu vizinho M., à parte isso, de facto, muito boa pessoa e homem prestativo.
Porém, quando o apresento a alguém - à minha tia, a algum amigo, a certa visita -, se tenho necessidade de lembrar que é uma «espécie de Salvador da Pátria», e recordar como «foi ele que subiu, por uma escada de madeira, ao primeiro andar, para arrancar à casa de banho a minha filha, que se tinha fechado por dentro à chave», etc, etc, etc, raramente não recebo por resposta qualquer coisa a sublinhar um defeito, uma incompetência, um falhanço meus.
No outro dia, apresentava-o à minha mãe, com o sorriso e as fórmulas do costume, Salvador da Pátria, Um vizinho cheio de recursos, etc, etc, etc - e responde-me ele, mirando com desconfiança os pneus do meu automovelzeco:
«Está com os pneus muito em baixo, vizinho. Tem de ver isso, o vizinho não se preocupa com o carro!? Olhe que eu, o meu...!»
Mas a melhor foi de uma vez em que o apresentava já me nem lembro a quem. Blá, blá, blá, Sempre que estou em apuros, aqui o vizinho, e blá, blá, blá.
E ele, estudando-me fixamente o rosto:
«Ó vizinho. O vizinho não sabe fazer a barba!»
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sexta-feira, julho 16, 2010
A SUBTILEZA DOS DINOSSAUROS
Alguns leitores tomarão certamente este título por ironia. Não é o caso.
Há que não subestimar o valor dos dinossauros. Os garotos amam-nos; pedem que lhos comprem em miniaturas maravilhosas, com que encenam terríveis combates; não perdem um filme com os simpáticos monstros pré-históricos. Há miúdos que conhecem os seus variados nomes. Os quartos de todos os putos exibem-nos em posters impressionantes. E não é por obra do acaso que os dinossauros irradiam esse fascínio todo.
Considero-os uma autêntica civilização. Criaram, do ponto de vista da anatomia ou das "competências", quase tudo o que as mais variadas espécies ostentam, hoje, pelo ar, pela terra, pelas águas. Uns quantos puseram-se a voar e, simplifiquemos!, inventaram assim os pássaros; mas havia-os para todos os gostos, até do ponto de vista político, ideológico e filosófico: vegetarianos e carnívoros, senhores e escravos, obesos e anorécticos, com instrumentos e aptidões contrários, aleatoriamente distribuídos, num contínuo teste à adaptação.
Civilizacionalmente, fazem-me lembrar os Antigos Gregos que, no seu tempo, também foram e também inventaram praticamente tudo: sejamos nós cínicos, idealistas, materialistas, sensualistas, atomistas, individualistas ou colectivistas, caramba!, não estamos a fazer nada - como lembra o Adriano de Marguerite Yourcenar - que não tivesse sido, primeiro, uma escolha de algum Antigo Grego.
É por isso que me parece que a evolução não é sempre correcta. Se o progresso tende a simplificar, não estou certo de que essa simplificação seja uma vantagem real: e sei, sobretudo, que aquilo que aparenta ser "demasiado" gigantesco e complicado, como um dinossauro, contém em si uma subtileza, um génio, que a pura eliminação desse todo, ou a sua simplificação, necessariamente farão desaparecer.
Alguém acredita que a música tenha evoluído, de Bach a Luís Represas?
Alguém crê, para além dos criminosos do costume, que a tendência para se acabar com o estudo do Latim, mais os seus casos complicados, que, todavia, apuram e treinam a inteligência e o conhecimento mais profundo da mecânica das línguas vivas, suas herdeiras, pode ser ocupada pelo estudo do Espanhol, agora em voga nas áreas de Línguas e Literaturas?
Alguém está realmente convencido de que, poupar-se, aos jovens estudantes, a leitura obrigatória dos Clássicos da Literatura Portuguesa, na disciplina de Português, seja uma evolução, uma adaptação vantajosa, um progresso real?
Ou que, em resumo, progredimos com a a simplificação rasteira consubstanciada por um acordo ortográfico como este?
Qualquer dinossauro perceberia a estupidez! Mas esses eram mais subtis do que parece. Por isso, em última análise, aliás, desapareceram...
Há que não subestimar o valor dos dinossauros. Os garotos amam-nos; pedem que lhos comprem em miniaturas maravilhosas, com que encenam terríveis combates; não perdem um filme com os simpáticos monstros pré-históricos. Há miúdos que conhecem os seus variados nomes. Os quartos de todos os putos exibem-nos em posters impressionantes. E não é por obra do acaso que os dinossauros irradiam esse fascínio todo.
Considero-os uma autêntica civilização. Criaram, do ponto de vista da anatomia ou das "competências", quase tudo o que as mais variadas espécies ostentam, hoje, pelo ar, pela terra, pelas águas. Uns quantos puseram-se a voar e, simplifiquemos!, inventaram assim os pássaros; mas havia-os para todos os gostos, até do ponto de vista político, ideológico e filosófico: vegetarianos e carnívoros, senhores e escravos, obesos e anorécticos, com instrumentos e aptidões contrários, aleatoriamente distribuídos, num contínuo teste à adaptação.
Civilizacionalmente, fazem-me lembrar os Antigos Gregos que, no seu tempo, também foram e também inventaram praticamente tudo: sejamos nós cínicos, idealistas, materialistas, sensualistas, atomistas, individualistas ou colectivistas, caramba!, não estamos a fazer nada - como lembra o Adriano de Marguerite Yourcenar - que não tivesse sido, primeiro, uma escolha de algum Antigo Grego.
É por isso que me parece que a evolução não é sempre correcta. Se o progresso tende a simplificar, não estou certo de que essa simplificação seja uma vantagem real: e sei, sobretudo, que aquilo que aparenta ser "demasiado" gigantesco e complicado, como um dinossauro, contém em si uma subtileza, um génio, que a pura eliminação desse todo, ou a sua simplificação, necessariamente farão desaparecer.
Alguém acredita que a música tenha evoluído, de Bach a Luís Represas?
Alguém crê, para além dos criminosos do costume, que a tendência para se acabar com o estudo do Latim, mais os seus casos complicados, que, todavia, apuram e treinam a inteligência e o conhecimento mais profundo da mecânica das línguas vivas, suas herdeiras, pode ser ocupada pelo estudo do Espanhol, agora em voga nas áreas de Línguas e Literaturas?
Alguém está realmente convencido de que, poupar-se, aos jovens estudantes, a leitura obrigatória dos Clássicos da Literatura Portuguesa, na disciplina de Português, seja uma evolução, uma adaptação vantajosa, um progresso real?
Ou que, em resumo, progredimos com a a simplificação rasteira consubstanciada por um acordo ortográfico como este?
Qualquer dinossauro perceberia a estupidez! Mas esses eram mais subtis do que parece. Por isso, em última análise, aliás, desapareceram...
quarta-feira, julho 14, 2010
HÁ QUEM NÃO MEREÇA SER DONO DE UM CAFÉ
«Quanto mais cedo vem, menos faz», rosna a senhora de bom aspecto, co-proprietária do cafézito onde, às vezes, pequeno-almoço. Tem bom ar, a senhora, desde que não fale durante muito tempo: se lhe prestamos atenção, percebemos os "fizestes" e os "prontos" com que tudo estraga.
O tipo a que se refere, o tal que «quanto mais cedo vem, menos faz», é o marido: um trombudo desinteressante, careca e com o nariz cheio de peles de uma psoríase (é assim?) galopante. Quando está só ele, serve-me rapidamente, irritado de que o incomodem, e torna a sentar-se a uma das suas mesas fazendo palavras cruzadas.
As palavras da senhora vieram-me à memória. Faltava-me uma bica, eram praí já umas dez horas, e o café fechado.
Fui a outro, num primeiro andar, com uma varanda-esplanada e uma outra senhora que arranja as sandes de queijo com as mãos nuas.
E quem vejo, sentado na varanda-esplanada, lendo vários jornais, chupando o seu galão e fumando cigarros?
Nem mais. O «Zé». Que não gosta, realmente, de trabalhar - prefere gastar: então, com um café próprio, e vai tomar café a outro lado?
O tipo a que se refere, o tal que «quanto mais cedo vem, menos faz», é o marido: um trombudo desinteressante, careca e com o nariz cheio de peles de uma psoríase (é assim?) galopante. Quando está só ele, serve-me rapidamente, irritado de que o incomodem, e torna a sentar-se a uma das suas mesas fazendo palavras cruzadas.
As palavras da senhora vieram-me à memória. Faltava-me uma bica, eram praí já umas dez horas, e o café fechado.
Fui a outro, num primeiro andar, com uma varanda-esplanada e uma outra senhora que arranja as sandes de queijo com as mãos nuas.
E quem vejo, sentado na varanda-esplanada, lendo vários jornais, chupando o seu galão e fumando cigarros?
Nem mais. O «Zé». Que não gosta, realmente, de trabalhar - prefere gastar: então, com um café próprio, e vai tomar café a outro lado?
sexta-feira, julho 02, 2010
A CONSPIRAÇÃO
«A mim não me enganam», jura-nos, num café, certa mulher de alguma idade, os óculos refulgindo lúcida e severamente. Não fala com ninguém em particular, pelo que, queira eu ou não, tenho de me considerar, como os demais, um interlocutor em potência. Faço o meu sorriso estúpido destas ocasiões e vou assentindo com a cabeça.
«O Queirós», prossegue ela, «tem qualquer coisa contra Portugal. Aquilo é vingança antiga. Ou então estão a pagar-lhe. Ou as duas coisas, estão a pagar-lhe, e bem!, porque ele estava de candeias às avessas com o país; pagaram-lhe para ele conseguir que a selecção não fosse longe. Não viram os disparates todos que o homem fez? Mandou embora o Deco, pôs o Ronaldo a jogar sempre fora do lugar, quase não metia o levezinho do Sporting, trocou o Hugo Almeida quando ele estava no melhor...»
Pondero, com uma súbita atenção nos ouvidos. E ela, deduzindo com rigor toda a trama da maquiavélica traição de Queirós:
«E eles sabem isso tudo, eles lá sabem uns dos outros, não se lembram de que o Mourinho veio dizer que a selecção não ganhava nem com o Ronaldo a correr a mil a hora? Ora aí está. O Mourinho sabe o que diz, por alguma razão o disse, ele lá sabia qualquer coisa...»
Não deixa de ser uma explicação. E, pensando bem, é talvez mais lógica do que a ideia de que alguém possa, sem qualquer razão, por si só, ser tão mau, tão mau, tão mau como o Queirós foi. Enfim, alguém que ganhe algo com esta derrota!
Eu ando adormecido. Felizmente que, às vezes, aparece um português lúcido para me abrir os olhinhos.
«O Queirós», prossegue ela, «tem qualquer coisa contra Portugal. Aquilo é vingança antiga. Ou então estão a pagar-lhe. Ou as duas coisas, estão a pagar-lhe, e bem!, porque ele estava de candeias às avessas com o país; pagaram-lhe para ele conseguir que a selecção não fosse longe. Não viram os disparates todos que o homem fez? Mandou embora o Deco, pôs o Ronaldo a jogar sempre fora do lugar, quase não metia o levezinho do Sporting, trocou o Hugo Almeida quando ele estava no melhor...»
Pondero, com uma súbita atenção nos ouvidos. E ela, deduzindo com rigor toda a trama da maquiavélica traição de Queirós:
«E eles sabem isso tudo, eles lá sabem uns dos outros, não se lembram de que o Mourinho veio dizer que a selecção não ganhava nem com o Ronaldo a correr a mil a hora? Ora aí está. O Mourinho sabe o que diz, por alguma razão o disse, ele lá sabia qualquer coisa...»
Não deixa de ser uma explicação. E, pensando bem, é talvez mais lógica do que a ideia de que alguém possa, sem qualquer razão, por si só, ser tão mau, tão mau, tão mau como o Queirós foi. Enfim, alguém que ganhe algo com esta derrota!
Eu ando adormecido. Felizmente que, às vezes, aparece um português lúcido para me abrir os olhinhos.
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