Calculo que o problema resida em mim.
Desabituei-me de tal modo de ir ao cinema que, nas raras oportunidades em que me predisponho a fazê-lo por minha iniciativa, quer dizer, sem ser para acompanhar o meu filho adolescente e amigos a uma teen-pepineira, é certamente porque, entretanto, se aclama e premeia um filme em especial, ou porque uma pessoa, cuja opinião respeito, mo aconselha vivamente: deixo-me influenciar, deixo-me ofuscar, deixo que me alimentem as expectativas, me lancem atrás desse filme como um junkie em busca do «produto»; e, quase sempre, sucede que saio a encolher os ombros, desapontado de que tenha havido tanto alarido em torno de algo que me pareceu de uma melancólica banalidade...
Ponho de parte a hipótese (por pouco convincente) de eu estar vendo mais longe ou estar mostrando mais exigência do que os outros, nomeadamente os críticos consagrados. Sei que não é isso. Não pode ser. Talvez me escapem, isso sim, os pormenores que lhes fazem as delícias, que lhes motivam as análises exaustivas, que lhes provocam os verdadeiros orgasmos intelectuais, que suscitam os prémios, os óscares...
Os óscares, sim. Falemos, pois, da película que acabou sendo considerada a grande vencedora da noite oscarina: «Esta Terra Não é para Velhos», dos irmãos Coen, recorrentemente (e, na minha perspectiva, precipitadamente) apodados de génios.
Mas falemos,sobretudo, do óscar para o melhor actor secundário, o tão badalado Javier Bardem, elevado, por estes dias, ao estatuto de alguém que encarnou «brilhantemente» um «serial killer»: fascinante, frio, metódico, coerente, agindo à luz dos seus princípios, isto é, matando e fazendo o mal de acordo com uma moral inflexível, de acordo, poderíamos dizer, com uma visão, uma filosofia...
Houve tal unanimidade em redor do talento dos irmãos Coen, ou da perfeição de Tommy Lee Jones, ou do brilhantismo de Javier Bardem, que, tendo imediatamente ido ver o filme, lamento quase ter de vos confessar que não encontrei vestígios disso.
Bardem, principalmente - caiam-me em cima, raios vingadores - não me pareceu nem mais nem menos, na sua representação, do que aquilo a que o meu saudoso avô chamaria um canastrão: só ali consegui ver uma figura muito alta, muito rígida, com um penteado ridículo, uma excelente voz, é verdade, mas um pau-pérrimo trabalho de actor. (E vêm agora uns quantos eruditos dizer «tatatá» e mais isto e mais aquilo e relembrar não sei quê do «método», o de Stanislavski? E que «tatatá» e que frito e assado mais o regresso do modelo do «Actor's Studio»? Tudo, reparem, a propósito da representação do senhor Bardem???? Hum! Estão a brincar, pois estão?)
Mas hei-de estar enganado. Com certeza. Faltou-me foi perceber bem uma qualquer cena em que o Bardem usava uma entoação ambígua/intensa/trágica/implacável (riscar o que não interessa); ou, então, a mestria com que ele levanta os pés para não sujar as botas no sangue de uma vítima. Vão ver que é isso. Faltou-me deslindar algum pormenor.
Oiço-vos falar do Bardem, vejo o filme, vejo o Bardem e penso: Nááá! Não estamos a falar do mesmo...!
(O que me faz reflectir: será, angel, que uma vez mais me enganei e julguei que o Stallone, noutro filme qualquer, é que era o Bardem? Seria isso???)
sexta-feira, fevereiro 29, 2008
2057 (II)
Lap fez um sinal ao barman, que acorreu com um «Blootea».
- Não! - exigiu a rapariga. - Quero um dos azuis...
Fez-se um silêncio. Havia «Blootea» azul, é claro, muito raro, muitíssimo mais caro, levemente ácido, e de que só começávamos a gostar ao fim de algum tempo, razão pela qual nunca se bebia rapidamente nem fazia sentido bebê-lo em locais públicos.
- Um azul?! - perguntou o barman, pensando na estranheza de uma cliente que não arredava pé de um banquinho-ao-balcão e se preparava para, aí, gozar uma bebida demorada, enquanto potenciais clientes se acotovelavam à espera de um lugar vago.
- Azul?! - inquiriu por sua vez Lap, pensando, avaramente, na quantia que teria de desembolsar para ser agradável a uma focinho-de-gato. (Logo num dia em que, esquecido a mirar o peito da sacerdotiza, no templo, ficara com o cartão magnético sobre o aparelho das esmolas durante mais um décimo de segundo do que aquilo que planeara...)
- E por que não? -, desafiava a Oorkiana. - Não posso beber o que quero?
- Vocês não saem? Não? Não se vão embora...?- era a vez de mostrar a sua impaciência um puro e autêntico venusiano malhado, que se entretinha a brincar com o sabre.
A mulher estava num crescendo de fúria:
- E porquê? Já és o quinto que me apressa. Com que então não posso beber o que quero? E não posso demorar o tempo que me apetece? Não tenho escolha? E tu, eh, ó barman pateta, não estás cansado de me vigiar? Vai queixar-te a Lordingham, vai...
Houve uma movimentação estranha em redor deles. «Estranho, estranho», pensou Lap. «Na verdade, hoje, tudo é um pouco estranho! Deve ser por culpa da focinho-de-gato...»; havia como que uma agitação, ou um início de agitação, que tinha origem num rumor vago e surdo, o qual se transformou na voz rouca de alguém gritando: «Ponham-na fora!», tudo pontuado pelo dramatismo do venusiano a brincar com o sabre, de uma forma, talvez, ameaçadora...
Quando deu por si, Lap, que era avesso a tumultos, já pegara na rapariga pelo braço e saía com ela sobre um tapete rolante que lançava as pessoas em direcção à rua.
A rapariga protestava. Caía nas suas pernas.
- O meu «Blootea»!? Quero um «Blootea» azul. Não me digas que não és capaz de pagar um «Blootea» azul a uma rapariga que só quer fazer o que lhe apetece.
- Não sejas parva. Nós fazemos todos o que nos apetece. Anda, que pode ser que lhes apeteça a eles dar cabo de ti!
(E, ao que parece, continua a continuar).
- Não! - exigiu a rapariga. - Quero um dos azuis...
Fez-se um silêncio. Havia «Blootea» azul, é claro, muito raro, muitíssimo mais caro, levemente ácido, e de que só começávamos a gostar ao fim de algum tempo, razão pela qual nunca se bebia rapidamente nem fazia sentido bebê-lo em locais públicos.
- Um azul?! - perguntou o barman, pensando na estranheza de uma cliente que não arredava pé de um banquinho-ao-balcão e se preparava para, aí, gozar uma bebida demorada, enquanto potenciais clientes se acotovelavam à espera de um lugar vago.
- Azul?! - inquiriu por sua vez Lap, pensando, avaramente, na quantia que teria de desembolsar para ser agradável a uma focinho-de-gato. (Logo num dia em que, esquecido a mirar o peito da sacerdotiza, no templo, ficara com o cartão magnético sobre o aparelho das esmolas durante mais um décimo de segundo do que aquilo que planeara...)
- E por que não? -, desafiava a Oorkiana. - Não posso beber o que quero?
- Vocês não saem? Não? Não se vão embora...?- era a vez de mostrar a sua impaciência um puro e autêntico venusiano malhado, que se entretinha a brincar com o sabre.
A mulher estava num crescendo de fúria:
- E porquê? Já és o quinto que me apressa. Com que então não posso beber o que quero? E não posso demorar o tempo que me apetece? Não tenho escolha? E tu, eh, ó barman pateta, não estás cansado de me vigiar? Vai queixar-te a Lordingham, vai...
Houve uma movimentação estranha em redor deles. «Estranho, estranho», pensou Lap. «Na verdade, hoje, tudo é um pouco estranho! Deve ser por culpa da focinho-de-gato...»; havia como que uma agitação, ou um início de agitação, que tinha origem num rumor vago e surdo, o qual se transformou na voz rouca de alguém gritando: «Ponham-na fora!», tudo pontuado pelo dramatismo do venusiano a brincar com o sabre, de uma forma, talvez, ameaçadora...
Quando deu por si, Lap, que era avesso a tumultos, já pegara na rapariga pelo braço e saía com ela sobre um tapete rolante que lançava as pessoas em direcção à rua.
A rapariga protestava. Caía nas suas pernas.
- O meu «Blootea»!? Quero um «Blootea» azul. Não me digas que não és capaz de pagar um «Blootea» azul a uma rapariga que só quer fazer o que lhe apetece.
- Não sejas parva. Nós fazemos todos o que nos apetece. Anda, que pode ser que lhes apeteça a eles dar cabo de ti!
(E, ao que parece, continua a continuar).
quinta-feira, fevereiro 28, 2008
2057
Ao passar pelo templo consagrada ao Grande Designer do Universo, Lap sentia, como sentiu uma vez mais, inevitavelmente, uma grande força anímica que lhe dirigia os passos até ao interior do Ovo Central.
Ao encaminhar-se para o Ovo, sorriu à sacerdotiza que, no habitáculo da entrada, convidava os fiéis a desembolsar a sua livre contribuição. A santa mulher mal precisava de estender o aparelho: olhava com um olhar fixo e doce, sedutoramente intimidante, os seios opulentos descobertos, de forma a recordar que o corpo feminino representava a obra mais conseguida do Grande Designer do Universo, e acenava, de cada vez que alguém passava o cartão magnético pela ranhura do aparelho de esmolas. Uma vez no Ovo Central, Lap sentava-se no sofá que se dobrava sobre si, como um ovo, protegendo-o, acalmando-o, ajudando-o a respirar mais tranquilamente. Orava. «Ó Designer Supremo, agradeço-te!»; saía com lágrimas nos olhos.
Quando se dirigia a casa, passava por um bar. Sentava-se para beber um copo. Um «Blootea». Mas a estada no bar acabava por ser rápida. Às vezes, perguntava-se a si próprio por que raio não ficaria mais tempo sentado ao balcão, no banco de pernas longas, a conversar com o barman - mas a verdade é que, emborcado o vermelhíssimo «Blootea» (chá de sangue?), enfadava-se de estar sentado, descia e ia-se embora. Alguém ocupava de imediato o banco deixado vago.
Não nesse dia, porém. Nesse dia, reparou, com alguma estupefacção, numa mulher que, no banco ao lado do seu, onde, aliás, já se encontrava quando ele chegara, parecia ter-se tornado uma peça do mobiliário, como se ali estivesse há muito tempo. À frente dela, sobre o tampo do balcão, vários copos vazios sublinhavam que viera para ficar. Estava desgrenhada; devia ser do planeta Oork, a avaliar pelo focinho de gato e pelo tom esverdeado do cabelo. Suspirava.
- Olá, intruso -, disse a a rapariga, quando notou que Lap a observava.
- Intruso, eu!?
- Sim. Estás a invadir a minha tranquilidade. Pagas-me um «Blootea»?
Aquilo era novo. Tudo aquilo. A postura dela, a abordagem. O barman vigiava-a, atento.
(E, parece, continua).
Ao encaminhar-se para o Ovo, sorriu à sacerdotiza que, no habitáculo da entrada, convidava os fiéis a desembolsar a sua livre contribuição. A santa mulher mal precisava de estender o aparelho: olhava com um olhar fixo e doce, sedutoramente intimidante, os seios opulentos descobertos, de forma a recordar que o corpo feminino representava a obra mais conseguida do Grande Designer do Universo, e acenava, de cada vez que alguém passava o cartão magnético pela ranhura do aparelho de esmolas. Uma vez no Ovo Central, Lap sentava-se no sofá que se dobrava sobre si, como um ovo, protegendo-o, acalmando-o, ajudando-o a respirar mais tranquilamente. Orava. «Ó Designer Supremo, agradeço-te!»; saía com lágrimas nos olhos.
Quando se dirigia a casa, passava por um bar. Sentava-se para beber um copo. Um «Blootea». Mas a estada no bar acabava por ser rápida. Às vezes, perguntava-se a si próprio por que raio não ficaria mais tempo sentado ao balcão, no banco de pernas longas, a conversar com o barman - mas a verdade é que, emborcado o vermelhíssimo «Blootea» (chá de sangue?), enfadava-se de estar sentado, descia e ia-se embora. Alguém ocupava de imediato o banco deixado vago.
Não nesse dia, porém. Nesse dia, reparou, com alguma estupefacção, numa mulher que, no banco ao lado do seu, onde, aliás, já se encontrava quando ele chegara, parecia ter-se tornado uma peça do mobiliário, como se ali estivesse há muito tempo. À frente dela, sobre o tampo do balcão, vários copos vazios sublinhavam que viera para ficar. Estava desgrenhada; devia ser do planeta Oork, a avaliar pelo focinho de gato e pelo tom esverdeado do cabelo. Suspirava.
- Olá, intruso -, disse a a rapariga, quando notou que Lap a observava.
- Intruso, eu!?
- Sim. Estás a invadir a minha tranquilidade. Pagas-me um «Blootea»?
Aquilo era novo. Tudo aquilo. A postura dela, a abordagem. O barman vigiava-a, atento.
(E, parece, continua).
quarta-feira, fevereiro 27, 2008
A HISTÓRIA DA MENINA EDUCAÇÃO (a ser lida em capítulos sob a inovadora forma de comentários)
Como, porventura, os leitores não vão lembrar-se de procurar nos comentários, meio ocultos, de um meu post antigo, a continuação, ainda por vir, da excelente história by Zorbas - os leitores não o farão, quanto mais não seja pela boa razão de que eu tenho tantos leitores como alguns primeiros-ministros têm, por exemplo, sei lá, um curso de engenharia, digamos... -, gostaria de convidar o talentoso gato a aproveitar este novo post para, aqui, de comentário em comentário, continuar a sua história. Porque a Educação não vai ficar na triste situação em que está. Ou vai!?
Força, Zorbas. Agora não me falhes!!!
Miau!
(E tu, angel, não tornes a acabar de supetão a história do Zorbas! Não tens o teu blogue para gozar à vontade com os leitores que se atrevem a dizer-te que não reconheceste um certo actor num determinado filme!????????? Leitores: para perceberem esta referência, clicar AQUI. Não acontece nada, pois não? Ahahahahahahahahahahah! Eu não sei fazer desssses milagres da tecnologia informática, pôr-vos a clicar numa palavra do meu texto para passarem magicamente para outro. Mas vão ali ao blogue da angel, muito bom, muito muito interessante: é o letras com música; tenho link, isso tenho, já o toparam aí algures?)
Divirtam-se!
Força, Zorbas. Agora não me falhes!!!
Miau!
(E tu, angel, não tornes a acabar de supetão a história do Zorbas! Não tens o teu blogue para gozar à vontade com os leitores que se atrevem a dizer-te que não reconheceste um certo actor num determinado filme!????????? Leitores: para perceberem esta referência, clicar AQUI. Não acontece nada, pois não? Ahahahahahahahahahahah! Eu não sei fazer desssses milagres da tecnologia informática, pôr-vos a clicar numa palavra do meu texto para passarem magicamente para outro. Mas vão ali ao blogue da angel, muito bom, muito muito interessante: é o letras com música; tenho link, isso tenho, já o toparam aí algures?)
Divirtam-se!
domingo, fevereiro 24, 2008
NÃO HÁ MONSTROS, FILHO! DORME, APRE!!!
André Sarmento da Silva Jesualdo Martins [nome fictício] tinha um filho de dezassete anos; pois este seu rebento, aos dezassete anos de idade, ou seja, quase a atingir a maioridade que o libertaria [a ele, André Sarmento da Silva Jesualdo Martins], continuava a ler livros do Harry Potter e, influenciado por estes, a acreditar na existência de monstros, de bruxas - e mesmo, suprema fantasia, na existência de uma bruxa à cabeça de todo um ministério da Educação!!!!
O pior é que, com dezassete anos cumpridos, quase à beira do dia da libertação [para o pai], o menino Agostinho Potter (como gostava que lhe chamassem) tinha medo, não, «medo» não!, tinha pavor de adormecer à noite, no quarto, mesmo com luz de presença, sem a companhia de um adulto.
O deitar do menino Agostinho Potter era um toemento. Para o pai e para o filho. Para o filho porque, mal o adulto se retirava, depois de um beijo no rosto barbado (sim, Agostinho tinha já um prenúncio de barba a encher-lhe o queixo), parecia-lhe que o quarto se enchia de vultos, risos estereofónicos, uivares, bater de asas, correntes de ar, sopros, roncos, empurrões. Para o adulto porque Agostinho chamava: -Pai!? - de cinco em cinco segundos, até adormecer de exaustão..! Ou seja: André Sarmento da Silva Jesualdo Martins já não podia com aquelas cenas. Enervava-se. Sentava-se sem nada que fazer, ou sem poder fazer nada, diante da cama do marmanjão, cantando-lhe cantilenas de ninar, ou nem isso, deixando-se simplesmente estar, até perceber que a respiração da criançona regularizava e, por fim, se transformava num pequeno ressonar.
Até à véspera de Agostinho Potter fazer dezoito anos.
Nessa noite, furioso, André Sarmento da Silva Jesualdo Martins decidiu que era tempo de uma mudança radical.
- Qual monstros, qual carapuça! - gritou. - Não há monstros. Dorme!!!
E retirou-se. Entreabriu a porta com a mão, os dedos do lado de fora, enquanto, do seu leito, o menino se lamuriava.
- Não há monstros, papá? Claro que há. Estão todos aí. Não vás, peço-te. Só mais um bocadinho.
A porta entreaberta. Os dedos a segurá-la, dobrados para fora. A sua voz, contudo, firme, tratando-o cerimoniosamente para que ele se apercebesse de que já não era nenhum bebé:
- Deixe-se de mariquices. Até amanhã. Durma! (Se houvesse monstros para lhe fazer mal, tinham de fazer fila atrás de mim, que estou farto de si e das suas manias...)
André Sarmento da Silva Jesualdo Martins saiu, furioso, batendo com os pés.
Sentia uma dor na mão. Fina, não muito forte. Olhou-a: a tempo de a ver sem dedos, coberta de sangue. Devorada sabe-se lá por que coisa!
O pior é que, com dezassete anos cumpridos, quase à beira do dia da libertação [para o pai], o menino Agostinho Potter (como gostava que lhe chamassem) tinha medo, não, «medo» não!, tinha pavor de adormecer à noite, no quarto, mesmo com luz de presença, sem a companhia de um adulto.
O deitar do menino Agostinho Potter era um toemento. Para o pai e para o filho. Para o filho porque, mal o adulto se retirava, depois de um beijo no rosto barbado (sim, Agostinho tinha já um prenúncio de barba a encher-lhe o queixo), parecia-lhe que o quarto se enchia de vultos, risos estereofónicos, uivares, bater de asas, correntes de ar, sopros, roncos, empurrões. Para o adulto porque Agostinho chamava: -Pai!? - de cinco em cinco segundos, até adormecer de exaustão..! Ou seja: André Sarmento da Silva Jesualdo Martins já não podia com aquelas cenas. Enervava-se. Sentava-se sem nada que fazer, ou sem poder fazer nada, diante da cama do marmanjão, cantando-lhe cantilenas de ninar, ou nem isso, deixando-se simplesmente estar, até perceber que a respiração da criançona regularizava e, por fim, se transformava num pequeno ressonar.
Até à véspera de Agostinho Potter fazer dezoito anos.
Nessa noite, furioso, André Sarmento da Silva Jesualdo Martins decidiu que era tempo de uma mudança radical.
- Qual monstros, qual carapuça! - gritou. - Não há monstros. Dorme!!!
E retirou-se. Entreabriu a porta com a mão, os dedos do lado de fora, enquanto, do seu leito, o menino se lamuriava.
- Não há monstros, papá? Claro que há. Estão todos aí. Não vás, peço-te. Só mais um bocadinho.
A porta entreaberta. Os dedos a segurá-la, dobrados para fora. A sua voz, contudo, firme, tratando-o cerimoniosamente para que ele se apercebesse de que já não era nenhum bebé:
- Deixe-se de mariquices. Até amanhã. Durma! (Se houvesse monstros para lhe fazer mal, tinham de fazer fila atrás de mim, que estou farto de si e das suas manias...)
André Sarmento da Silva Jesualdo Martins saiu, furioso, batendo com os pés.
Sentia uma dor na mão. Fina, não muito forte. Olhou-a: a tempo de a ver sem dedos, coberta de sangue. Devorada sabe-se lá por que coisa!
segunda-feira, fevereiro 18, 2008
OS PAU-MANDADOS TÊM SEMPRE LUGAR JUNTO AOS CHEFES
Não acredito que tenha sido eu o único a notar. Está em alta aquela mulher horrorosa, cujo nome a minha mente selectiva fez o favor de apagar, mas de que recordo o triste episódio que a celebrizou: ela queria processar um tal professor Charrua, seu subordinado num serviço do ministério, que tinha contado qualquer anedota sobre o primeiro-ministro. Essa mulher não está na mó de baixo. Sempre que na televisão aparece a ministra da Educação, senhora dona Lurdes Rodrigues, com a sua corte de fiéis, a mulher horrorosa surge em lugar de destaque, acenando, pressurosamente, a cada palavra da sua líder. Não acredito, repito, que tenha sido eu o único a reparar. O senhor Charrua certamente que também já a viu. Mas não só ele. Uma amiga dizia-me, hoje: «Também deste conta? Houve um momento em que ela, atrás da ministra, acenando sempre, deve ter ouvido qualquer coisa desagradável, porque olhou para alguém com cara de má. Até pensei: "Olha, lá vai mandar mais um para o olho da rua!"».
Na altura, ri-me.
Ri-me!? Só mostra que sou tolo. Há situações caricatas que só nos deviam fazer chorar. Não da situação em si. Mas do que ela permite ler. E antever.
Na altura, ri-me.
Ri-me!? Só mostra que sou tolo. Há situações caricatas que só nos deviam fazer chorar. Não da situação em si. Mas do que ela permite ler. E antever.
sábado, fevereiro 16, 2008
PÉROLAS OFERECIDAS A, DIGAMOS, «CIDADÃOS-ANIMAIS-DE-CHIQUEIRO-E-CAUDA-EM-FORMA-DE-SACA-ROLHA» [para ter um título quase politicamente correcto]
O problema, o grande problema de qualquer turma reside, em primeiro lugar, nos vícios com que a rapaziada já chega às mãos do professor. Lá dizia Aristóteles: «Não é que eu não tenha vícios; é que os vícios dos meus alunos são sempre muito piores...»
De entre esses vícios, um parece-me particularmente fatal. O «direito à opinião». Não era Platão quem dizia: «Opinião, opinião, opinião! Vão-se lixar com as vossas opiniões...!»?
A soberba indistinção entre o que deve ser conteúdo de aprendizagem e o que pode ser matéria de discussão, a incapacidade de traçar fronteiras claras entre uma «aula» e um «fórum» promovido pelo Bloco de Esquerda assumem, por vezes, proporções alarmantes. Sei que não é um mal novo. Na verdade, já Descartes se alarmava com a inclinação para se pôr tudo em causa, numa carta dirigida à rainha da Suécia (não, não se tratava de Sissi, essa era da Áustria e chamava-se, na verdade, senhora dona Romy Schneider): «Como?! Terei lido bem? Vossa Alteza afirma mesmo que «2 + 2 = 4» é um resultado que pode ser contestado!?» [Também é certo que o filósofo francês terá ficado com esta ideia a germinar-lhe na mente, estragando tudo logo a seguir, ao tentar discutir, nesse caso, se uma cadeira, que estivessem a ver, realmente existiria - ou se podia ser um sonho, ou uma ilusão, ou assim...!]
Imaginem-me em plena aula. Oito e trinta da manhã. Visualizem-me com os meus alunos. (Para ser mais fácil, tentem visualizar o George Clooney, de chávena na mão, rodeado de crianças feias, de calças a cair e telemóveis sob o tampo da secretária, e terão o quadro completo). Proponho-me, pobre de mim, conduzi-los pela mão, tremente de entusiasmo, até às premissas da Arte; entendo rasgar-lhes os horizontes estreitos; levo-lhes pinturas: Rembrandt, Picasso, Miró, Paula Rego, Júlio Pomar, Nuno Viegas. Infelizmente, é já tarde quando me vem à memória a recomendação de Wittgenstein: «Para RASGAR horizontes, nunca usar pinturas; rasgam mal. Uma faca é sempre preferível para o efeito...»; e portanto, todos os meus argumentos se desfaziam de encontro aos muros sólidos da ignorância e do preconceito. Riam-se de Miró. Vinham à carga com a estafada ideia de que até o irmãozinho ou o primo de cinco anos fariam melhor. (Não lhes disse que Miró aprendera a desenhar com o seu sobrinho, Pablo, de três anos!); sobre Nuno Viegas, suprema afronta, afiançaram que ele não tinha jeito - ou, ironicamente, que tinha «tanto» jeito que até desenhava a perna de um sujeito a aparecer, quando esta estava tapada pelas calças. Uma aluna cidadã-afro-portuguesa, de pele negra (o que não tem a menor importância, atenção!, porque somos todos iguais) acusou-o de racismo porque, numa reprodução que eu, já levemente enervado, insistia em lhes mostrar, eram visíveis os pés de um cidadão afro-português (ou afro-qualquer outra coisa), estendido no chão, enquanto uns indivíduos brancos se encontravam sentados:
«Por que é que não é o preto que está sentado? Por que é que o preto está descalço? Por que é que, se ele caiu, os brancos não fazem nada? E, afinal, por que é que ele caiu? Está bêbedo? Adormeceu no trabalho, ou quê? É racismo, professor!»
Na discussão que entretanto se gerou, a todas estas enormidades acrescentavam, a cada momento: «Ó professor, mas nós respeitamos a sua opinião. O professor não pode respeitar a nossa opinião???»
A opinião, a opinião, a opinião!
Tive de acabar por encontrar um meio termo: «Está bem. Eu respeito a vossa opinião e depois marco falta disciplinar a todos!»
Só me vinha à cabeça o aforismo de Nietzsche: «Valha-me Santa Engrácia!»
Ou a frase John Stuart Mill: «Ai, ai, ai, Nossa Senhora da Agrela, que não há santa como ela!»
De entre esses vícios, um parece-me particularmente fatal. O «direito à opinião». Não era Platão quem dizia: «Opinião, opinião, opinião! Vão-se lixar com as vossas opiniões...!»?
A soberba indistinção entre o que deve ser conteúdo de aprendizagem e o que pode ser matéria de discussão, a incapacidade de traçar fronteiras claras entre uma «aula» e um «fórum» promovido pelo Bloco de Esquerda assumem, por vezes, proporções alarmantes. Sei que não é um mal novo. Na verdade, já Descartes se alarmava com a inclinação para se pôr tudo em causa, numa carta dirigida à rainha da Suécia (não, não se tratava de Sissi, essa era da Áustria e chamava-se, na verdade, senhora dona Romy Schneider): «Como?! Terei lido bem? Vossa Alteza afirma mesmo que «2 + 2 = 4» é um resultado que pode ser contestado!?» [Também é certo que o filósofo francês terá ficado com esta ideia a germinar-lhe na mente, estragando tudo logo a seguir, ao tentar discutir, nesse caso, se uma cadeira, que estivessem a ver, realmente existiria - ou se podia ser um sonho, ou uma ilusão, ou assim...!]
Imaginem-me em plena aula. Oito e trinta da manhã. Visualizem-me com os meus alunos. (Para ser mais fácil, tentem visualizar o George Clooney, de chávena na mão, rodeado de crianças feias, de calças a cair e telemóveis sob o tampo da secretária, e terão o quadro completo). Proponho-me, pobre de mim, conduzi-los pela mão, tremente de entusiasmo, até às premissas da Arte; entendo rasgar-lhes os horizontes estreitos; levo-lhes pinturas: Rembrandt, Picasso, Miró, Paula Rego, Júlio Pomar, Nuno Viegas. Infelizmente, é já tarde quando me vem à memória a recomendação de Wittgenstein: «Para RASGAR horizontes, nunca usar pinturas; rasgam mal. Uma faca é sempre preferível para o efeito...»; e portanto, todos os meus argumentos se desfaziam de encontro aos muros sólidos da ignorância e do preconceito. Riam-se de Miró. Vinham à carga com a estafada ideia de que até o irmãozinho ou o primo de cinco anos fariam melhor. (Não lhes disse que Miró aprendera a desenhar com o seu sobrinho, Pablo, de três anos!); sobre Nuno Viegas, suprema afronta, afiançaram que ele não tinha jeito - ou, ironicamente, que tinha «tanto» jeito que até desenhava a perna de um sujeito a aparecer, quando esta estava tapada pelas calças. Uma aluna cidadã-afro-portuguesa, de pele negra (o que não tem a menor importância, atenção!, porque somos todos iguais) acusou-o de racismo porque, numa reprodução que eu, já levemente enervado, insistia em lhes mostrar, eram visíveis os pés de um cidadão afro-português (ou afro-qualquer outra coisa), estendido no chão, enquanto uns indivíduos brancos se encontravam sentados:
«Por que é que não é o preto que está sentado? Por que é que o preto está descalço? Por que é que, se ele caiu, os brancos não fazem nada? E, afinal, por que é que ele caiu? Está bêbedo? Adormeceu no trabalho, ou quê? É racismo, professor!»
Na discussão que entretanto se gerou, a todas estas enormidades acrescentavam, a cada momento: «Ó professor, mas nós respeitamos a sua opinião. O professor não pode respeitar a nossa opinião???»
A opinião, a opinião, a opinião!
Tive de acabar por encontrar um meio termo: «Está bem. Eu respeito a vossa opinião e depois marco falta disciplinar a todos!»
Só me vinha à cabeça o aforismo de Nietzsche: «Valha-me Santa Engrácia!»
Ou a frase John Stuart Mill: «Ai, ai, ai, Nossa Senhora da Agrela, que não há santa como ela!»
quinta-feira, fevereiro 07, 2008
UMA NOVA IMAGEM POR MUITO POUCO TEMPO
Por que se me terá metido na cabeça deixar crescer uma barba? Metido na cabeça e, já agora, metido nos queixos?! Por preguiça, antes de mais: vinha aí o carnaval com os seus três dias, durante os quais, circulando de chapéu cómico e soprando gaitinhas, me parecia pouco lógica a preocupação de me escanhoar. E por fim porque, uma vez passados os dois dias em que ela me punha um ar famélico e desleixado, mirei-me no espelho e, por uma vez, não me senti insultado pelo reflexo que me era devolvido. O que eu vi foi uma espécie de George Clooney, com a pequeníssima diferença de me não parecer com ele em nada senão na mania de insistir em beber Nespresso.
De regresso à escola, apercebi-me de que, realmente, provocava um surpreendente efeito sobre as mulheres. Numa palavra: hilaridade!
Compararam-me ao Pacheco Pereira! Ou a mim próprio, mas em pior! Falaram em pêlo-de-arame! Quando me cruzava fosse com quem fosse, não via a pessoa, via-me a mim, via a minha barba, procurava os efeitos da minha barba nos seus esgares de riso, nos seus ares de espanto! Estive um dia inteiro na presença de mim mesmo, num egocentrismo tresloucado e triste, como se o mundo tivesse desaprecido e nada sobejasse senão um solitário barbudo. (Mas, logo a seguir, uma gargalhada perdida vinha lembrar-me que, afinal, o mundo não desaparecera de todo: escondera-se para troçar mais à vontade...)
Seja como for: vou já de seguida escanhoar-me.
De regresso à escola, apercebi-me de que, realmente, provocava um surpreendente efeito sobre as mulheres. Numa palavra: hilaridade!
Compararam-me ao Pacheco Pereira! Ou a mim próprio, mas em pior! Falaram em pêlo-de-arame! Quando me cruzava fosse com quem fosse, não via a pessoa, via-me a mim, via a minha barba, procurava os efeitos da minha barba nos seus esgares de riso, nos seus ares de espanto! Estive um dia inteiro na presença de mim mesmo, num egocentrismo tresloucado e triste, como se o mundo tivesse desaprecido e nada sobejasse senão um solitário barbudo. (Mas, logo a seguir, uma gargalhada perdida vinha lembrar-me que, afinal, o mundo não desaparecera de todo: escondera-se para troçar mais à vontade...)
Seja como for: vou já de seguida escanhoar-me.
quarta-feira, fevereiro 06, 2008
A SEITA - VIII
CAPÍTULO TRINTITRÊS.
Temos de terminar, não é verdade?
Bota não pode levar o sonorfume por uma trela dali para fora.
Pior do que tudo isso: Bota não tem a mínima vontade de sair, embora Mamã o empurre com maus modos. Bota defende-se. Ir para onde, se aquilo, no exterior, se está transformando numa algazarra divina, os deuses todos espadeirando para a esquerda e para a direita?
Bota tem a espada de fogo de Gabriel na sua mão.
Brande-a, ameaçadoramente, contra Mamã.
Ai, o que foste fazer. Mamã espeta-lhe uma palmada em pleno rosto que atira com o bêbedo para longe dali. Não se metam com Mamã...
CAPÍTULO TRINTIQUATRO.
Bota levanta-se, esfregando o corpo dorido. Perdeu a espada.
Alguém o espera com certa tranquilidade, fumando um cigarro.
Mefistófeles, claro.
(Nos tempos que correm, só Mefistófeles se atreveria a acender um cigarro...!)
- O senhor aqui?! - geme Vicentino Bota.
Mefisto fala-lhe pausadamente.
- Acompanha-me. Assegura-te que o sonorfume te acompanha. Ele parece gostar da tua companhia...
- Mas para onde, ó Senhor das Trevas, ó...?
- Deixa-te de tretas. Vem.
CAPÍTULO TRINTICINCO.
Dirigem-se, subterraneamente, até um rio prateado, onde uma barca os aguarda.
O barqueiro, de rosto vagamente sombrio sob um capuz, melancólico e silencioso, ajuda Bota a subir e, de seguida, atravessam o manso rio.
À medida que avançam, as águas vão-se tornando mais tormentosas, avermelhadas, assustadoras.
CAPÍTULO TRINTISSEIS.
Desembocam numa espécie de gruta. O calor é elevado. Almas penadas arrastam-se.
- É o Hades? - pergunta Bota, querendo testar os seus conhecimentos.
- Ou o inferno. Ou o que quiseres. Em suma: um local de eterno descanso...!
CAPÍTULO TRINTISSETE.
Em todo o mundo, o clamor eleva-se. Em toda a parte, os deuses se entrechocam, se digladiam, se batem. Por todo o lado, os homens são chamados a intervir, convencidos de estarem guerreando em prol dos seus interesses quando, por detrás deles, os dois exércitos de deuses em fúria os manipulam.
O Apocalipse começou.
Mesmo no Hades, silencioso e triste, chegam a Bota e a Mefistófeles, que fuma, sem cessar, cigarro após cigarro, fazendo daquele espaço o inferno, sobretudo, dos não-fumadores, chegam o troar e o clangor da guerra.
- Tu não vais participar? -, pergunta-lhe Bota.
- Ah, não, eu não me meto nisso.
- Falhei na minha missão?
- Não inteiramente. Trouxeste o sonorfume.
- Mas... para que vos serve o sonorfume? A vulcanyte desapareceu...
- Bem... a vulcanyte era algo de decisivo para mudar o rumo da batalha. O exército que estivesse na sua posse teria uma oportunidade. Paciência! Não percebes que talvez tenhamos outro trunfo?
- Qual?
- O sonorfume. Ou seja: Jesus! Ou seja: o filho de Deus-Pai, sem o qual Deus-Pai - a acreditar nos cristãos - não está completo...
- Ou seja...?
- Ou seja: temos um refém precioso. Agora descansa. Dorme um pouco. Não te preocupes mais. Adormeces...
- ... E de manhã acordo na minha cama, sem me lembrar de nada...?
- Se tiveres sorte. Se houver amanhã. Tudo dependerá da Grande Guerra lá fora! Dorme.
FIM
Temos de terminar, não é verdade?
Bota não pode levar o sonorfume por uma trela dali para fora.
Pior do que tudo isso: Bota não tem a mínima vontade de sair, embora Mamã o empurre com maus modos. Bota defende-se. Ir para onde, se aquilo, no exterior, se está transformando numa algazarra divina, os deuses todos espadeirando para a esquerda e para a direita?
Bota tem a espada de fogo de Gabriel na sua mão.
Brande-a, ameaçadoramente, contra Mamã.
Ai, o que foste fazer. Mamã espeta-lhe uma palmada em pleno rosto que atira com o bêbedo para longe dali. Não se metam com Mamã...
CAPÍTULO TRINTIQUATRO.
Bota levanta-se, esfregando o corpo dorido. Perdeu a espada.
Alguém o espera com certa tranquilidade, fumando um cigarro.
Mefistófeles, claro.
(Nos tempos que correm, só Mefistófeles se atreveria a acender um cigarro...!)
- O senhor aqui?! - geme Vicentino Bota.
Mefisto fala-lhe pausadamente.
- Acompanha-me. Assegura-te que o sonorfume te acompanha. Ele parece gostar da tua companhia...
- Mas para onde, ó Senhor das Trevas, ó...?
- Deixa-te de tretas. Vem.
CAPÍTULO TRINTICINCO.
Dirigem-se, subterraneamente, até um rio prateado, onde uma barca os aguarda.
O barqueiro, de rosto vagamente sombrio sob um capuz, melancólico e silencioso, ajuda Bota a subir e, de seguida, atravessam o manso rio.
À medida que avançam, as águas vão-se tornando mais tormentosas, avermelhadas, assustadoras.
CAPÍTULO TRINTISSEIS.
Desembocam numa espécie de gruta. O calor é elevado. Almas penadas arrastam-se.
- É o Hades? - pergunta Bota, querendo testar os seus conhecimentos.
- Ou o inferno. Ou o que quiseres. Em suma: um local de eterno descanso...!
CAPÍTULO TRINTISSETE.
Em todo o mundo, o clamor eleva-se. Em toda a parte, os deuses se entrechocam, se digladiam, se batem. Por todo o lado, os homens são chamados a intervir, convencidos de estarem guerreando em prol dos seus interesses quando, por detrás deles, os dois exércitos de deuses em fúria os manipulam.
O Apocalipse começou.
Mesmo no Hades, silencioso e triste, chegam a Bota e a Mefistófeles, que fuma, sem cessar, cigarro após cigarro, fazendo daquele espaço o inferno, sobretudo, dos não-fumadores, chegam o troar e o clangor da guerra.
- Tu não vais participar? -, pergunta-lhe Bota.
- Ah, não, eu não me meto nisso.
- Falhei na minha missão?
- Não inteiramente. Trouxeste o sonorfume.
- Mas... para que vos serve o sonorfume? A vulcanyte desapareceu...
- Bem... a vulcanyte era algo de decisivo para mudar o rumo da batalha. O exército que estivesse na sua posse teria uma oportunidade. Paciência! Não percebes que talvez tenhamos outro trunfo?
- Qual?
- O sonorfume. Ou seja: Jesus! Ou seja: o filho de Deus-Pai, sem o qual Deus-Pai - a acreditar nos cristãos - não está completo...
- Ou seja...?
- Ou seja: temos um refém precioso. Agora descansa. Dorme um pouco. Não te preocupes mais. Adormeces...
- ... E de manhã acordo na minha cama, sem me lembrar de nada...?
- Se tiveres sorte. Se houver amanhã. Tudo dependerá da Grande Guerra lá fora! Dorme.
FIM
terça-feira, fevereiro 05, 2008
UM RETRATO
Com oitenta e quatro anos de idade, a minha mãe, que sempre se interessara por fotografia, pega agora, a propósito de uma exposição em que pensa participar, de novo na sua máquina, e parte com ela pelas ruas, disparando contra árvores, pombos, pessoas.
Vejo-a com esta vivacidade, e penso: «O que faz não se ser professor!», experimentando uma leve (oh, levíssima, só...!), leve inveja por me sentir, por contraponto, sempre esgotado, praticamente a dormir em pé, demasiado preocupado com o futuro, permanentemente ansioso, tomando comprimidos para a tensão (na ausência de comprimidos para a «atenção» dos meus alunos) e sem dinheiro para uma máquina de fotografar a sério!
A minha mãe entusiama-se, mostra-me fotos, fala demoradamente acerca das histórias por trás.
Deve estar a aventurar-se pelo simbólico. Sim, como é que ela altera deste modo as proporções? E que significações arrepiantes procura revelar nestas metamorfoses?
O lado simbólico das suas fotografias assusta-me um pouco. Contemplo longamente, com um ar muito sério, esta foto, por exemplo, que ela tirou de mim e de que se orgulha. Numa festa, talvez. Diz que a vai pôr bem à vista. Diacho! Ei-la: a minha mão, uma mão muito grande, a chamada manápula, em primeiríssimo plano, segurando um também assombroso e gigantesco copo com whisky, enquanto lá ao fundo, em segundo plano, se entrevê a minha barriga, encimada pela minha cabeça, na verdade só uma cabecinha, um ovo minúsculo, quase um adorno distante para aquela manápula-a-segurar-o-copo-com-whisky.
Um efeito casual?
Os seus trementes oitenta e quatro anos a produzir fotos desfocadas, de ângulos errados, proporções inconcebíveis, bizarras?
Ou um significado secreto?
Que raio estará a velha a tentar dizer???
Vejo-a com esta vivacidade, e penso: «O que faz não se ser professor!», experimentando uma leve (oh, levíssima, só...!), leve inveja por me sentir, por contraponto, sempre esgotado, praticamente a dormir em pé, demasiado preocupado com o futuro, permanentemente ansioso, tomando comprimidos para a tensão (na ausência de comprimidos para a «atenção» dos meus alunos) e sem dinheiro para uma máquina de fotografar a sério!
A minha mãe entusiama-se, mostra-me fotos, fala demoradamente acerca das histórias por trás.
Deve estar a aventurar-se pelo simbólico. Sim, como é que ela altera deste modo as proporções? E que significações arrepiantes procura revelar nestas metamorfoses?
O lado simbólico das suas fotografias assusta-me um pouco. Contemplo longamente, com um ar muito sério, esta foto, por exemplo, que ela tirou de mim e de que se orgulha. Numa festa, talvez. Diz que a vai pôr bem à vista. Diacho! Ei-la: a minha mão, uma mão muito grande, a chamada manápula, em primeiríssimo plano, segurando um também assombroso e gigantesco copo com whisky, enquanto lá ao fundo, em segundo plano, se entrevê a minha barriga, encimada pela minha cabeça, na verdade só uma cabecinha, um ovo minúsculo, quase um adorno distante para aquela manápula-a-segurar-o-copo-com-whisky.
Um efeito casual?
Os seus trementes oitenta e quatro anos a produzir fotos desfocadas, de ângulos errados, proporções inconcebíveis, bizarras?
Ou um significado secreto?
Que raio estará a velha a tentar dizer???
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