domingo, junho 29, 2008

VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ [II]

Lembrava-me bem do início da nossa imensa viagem, e daquela impressionante discussão com Antuneqa e o seu grupo, em que cheguei a perguntar-me se não se trataria de uma revolta para se apoderarem da nave.
Havia ordens claras de Sir Mäix. Eu falara com ele, vendo a sua imagem virtual mesmo diante de mim.
Ninguém gostava de Sir Mäix, e com razão, até com razões inúmeras mas, dessa vez, as suas ordens, algo com a simplicidade de:«Evitem as naves dos Glauss; eles estão em pé de guerra, andam a armar-se furiosamente e vocês têm um armamento muito reduzido e em péssimas condições...», pareciam de uma sensatez indiscutível. No resto, Mäix podia continuar a não ter razão, e eu a opor-me a ele na medida das minhas possibilidades. Podia continuar a ser um líder sem escrúpulos e odiado. Mas teria eu de o contestar, lá porque era Sir Mäix, se, um dia, me dissesse por exemplo: «A Antuneqa é muito feia!»? - E se eu concordasse, faria isso de mim um lambe-botas, um fiel de Sir Mäix???

Tive dificuldade em entender aquele levantamento do grupo de Antuneqa: todas fêmeas do mesmo planeta de onde os machos haviam sido extintos, todas feias - na minha perspectiva, claro, segundo valores e critérios terráqueos -, numas vozes estridentes e contundentes, que optavam pela intensidade em vez de argumentos...
Gyllia, talvez pior do que Antuneqa, berrava:
- Se eu vir uma nave Glauss, garanto que disparo. Desato a disparar, eu. Não me escondo, eu. Nunca me escondi, eu. De nada, de ninguém. Disparo nem que seja com um revólver de luz.
Tive de gritar mais alto, a minha voz possante e treinada quebrando o nevoeiro sonoro.
- Está a dizer, Gyllia, que vai desobedecer às ordens?
- Não... sim... eu... não é bem isso, mas eu... eu...
- Porque se assim for, diga-me já, que tomarei as devidas medidas!
- Não. Mas. Eu. Sim. Não, não, não, não. Mas quero deixar expresso o... o... o meu protesto. A ordem de Sir Mäix não faz sentido.
E redigia já um texto confuso, que riscava e retomava, numa folha já com diversos cortes e rasgões, muito feia, muito triste, muito como o beco sem saída por onde enveredara.

[CONTINUA]

sábado, junho 28, 2008

VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ (I)

Na Via Láctea, entre «Cagnia» e «Ugnia», vemos seres que navegam solitariamente, com uma antena, se a têm, ou um tentáculo, ou o correspondente ao dedo polegar, indicando um certo sentido, na expectativa de uma boleia.
Nós raramente damos boleia a estas criaturas em órbita lenta, porque nunca sabemos com que contar. Alguns são assaltantes, há entre estes viajantes de ar inocente verdadeiros «serial killers» que se replicam rapidamente em centenas de militares, capazes de tomar, em poucos segundos, um veículo que os acolhesse.
Nesse dia, porém, aceitámos a bordo aquele viajante solitário: era o Professor Karamba, de Ugnia; não trazia malas, apenas uma mochila rudimentar. Um turbante brilhante cobria-lhe o crânio calvo, as orelhas ponteagudas e as pequenas antenas.
À noite, já refrescado, sentado comigo à mesa, disse-me, com a sua voz pausada, típica de Ugnia:
- Têm-vos acontecido constantes acidentes, não é verdade? Desastres, problemas vários, como se estivessem amaldiçoados...!
Ah, «como se estivéssemos amaldiçoados», como se nos houvessem rogado uma praga, era bem verdade: estas eram as palavras que, ainda há pouco tempo, ouvira da voz gaguejante e arquejante do imediato. Assenti.
- Percebi-o, logo que entrei. Detecto uma energia terrível; julgo que haja mesmo rotundas integalácticas em que a nave chega a perder velocidade, como se forças ocultas se apoderassem dela...
Eu estava boquiaberto. No ponto de Rana, por exemplo, a força parecia esavair-se-nos da nave, deixando-nos praticamente parados.
Professor prosseguiu:
- Só tenho uma coisa para lhe aconselhar. Faço-o gratuitamente, para lhe agradecer a boleia que acaba de me oferecer. Que preste muita atenção àquela criatura. Não sei dizer-lhe o que percebo nela, que mal, que intenso negrume, que luz invertida... mas há qualquer coisa de pouco limpo na sua aura. Preste-lhe muita atenção....
E, com a antena curtinha, como que cortada por uma lâmina, indicava Antuneqa, baixa, feia, corcunda, como todas as fêmeas de Yaúte. («Feia» do meu ponto de vista; em Yaúte, Antuneqa sempre fora muito apreciada...)
Olhei-a.
Antuneqa olhou-me.
Desviei os meus olhos, com um arrepio...

(CONTINUA)

quinta-feira, junho 26, 2008

O MEU EXTRA-TERRESTRE

Para que se perceba, realmente, que a animação segue dentro de momentos, quero advertir-vos que ando a pensar numa saga à maneira de J.R.R. Tolkien.
Na verdade, a saga está atrasada, porque tenho demorado demasiado tempo - exactamente como Tolkien - a engendrar uma língua falada pelos nativos de um certo planeta de um sistema longínquo numa galáxia a anos-luz do ponto em que nos encontramos. Acreditem: se queremos conceber uma linguagem em que até a gramática tenha uma realidade, acabamos perdendo algum tempo...

Neste momento, posso transcrever-vos uma passagem de um tenebroso discurso de certa criatura. Reparem:

«TiLela Kelyaúte. A Cágnia. A Cágnia. Kelyaúte. Tai, tai, pai, tai, pai nom, pai nom. TiLela dá, pai nom, pai nom. A úgnia? A úgnia pai? Cacá? Ontá úgnia? Kelúgnia, kelúgnia! Uhaaam, kelúgnia, ontá úgnia? Kelyaúte!»

Estava a reinar. Não há saga. E esta fala existe, não é uma invenção minha. Na verdade, é a linguagem de uma espécie de criatura tenebrosa, um absoluto extra-terrestre. Apresento-vos a minha filha Margarida, eheheh!

E este discurso tem tradução. Às vezes, torna-se uma tradução arriscada porque, por exemplo, «Cágnia» significa, em geral, «Casa», mas também pode significar «Caixa» ou «Calça», quer no sentido de vestimenta, quer como imperativo do verbo calçar. (Este extra-terrestre é extremamente imperativo...)

Posso arriscar uma tradução desta algaraviada que ela nos berrava no carro, quando vínhamos das compras, com sacos carregados de iogurtes.

«Tia Lela, quero iogurte. Em casa. Em casa. Quero iogurte. Sai, sai, pai, sai, o pai não. A tia Lela é que dá, o pai não, o pai não. A chucha? A chucha, pai? Não está cá? Onde está a chucha? Quero a chucha, quero a chucha, uhaaam, quero a chucha, onde está a chucha? Quero iogurte!»

Há tradutores que traem. Como vêem, não é o meu caso: eu quando traduzo, traduzo mesmo!

O CORPULANTEX HYBRIDUS DE CAVALETE AZUL DA ZONA NORTE DE ALGUEIRÃO SUL

Há períodos assim, em que me apetece tão-só tecer considerações, ensaiar argumentos acerca seja lá do que for, em vez de «historiar», ou melhor (quer dizer: pior, mas mais preciso), «estoriar». Sei que me torno maçudo quando me dá para aí. Avalio-o facilmente: se as minhas «estórias» merecem poucos comentários (os de um gato, os de uma janota e, agora nem isso, os de uma «anja»), os meus «posts» sérios, sobre filosofia, política ou literatura (Prousssst!) não são comentados. De todo.
Tenho este problema de viver em permanente esforço para parecer um tipo leve e divertido aos olhos dos outros, sem conseguir evitar completamente que o meu lado «seca» e pesadão venha por vezes ao de cima, como um dedicado especialista em «corpulantex hybrudus» de cavalete azul da zona norte de Algueirão Sul que, tendo percebido, ao longo de anos, que o seu interesse não é partilhado por ninguém, e quando o menciona provoca de imediato bocejos, distracção e fuga, acaba por aprender a preferir, em público, dizer graças, se possível na Feira Popular, entre copos, amigos e montanhas russas, MAS que... em certos momentos... nem que seja por um instante... por uma fracção de segundo... numa árdua batalha psicológica contra si mesmo, de antemão perdida... não pode... não é capaz de calar uma ou outra frase que lhe saem como um arroto... «Sabes que o corpulantex hybridus tem...?»... - gerando o inevitável silêncio constrangido e compungido, e um olhar desesperado do interlocutor, que só pode interpretar-se como: «Oh, não! Lá começa o maluquinho...!»
Mas, por agora, com o Proussst, já me aliviei.
Não se preocupem. A animação segue dentro de momentos...

quarta-feira, junho 25, 2008

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Interrogo-me com alguma frequência acerca da margem de snobismo e vaidade que haverá nesta minha paixão pela obra de Proust; interrogo-me sobre até que ponto será ele sincero, este deslumbramento em face de sete volumes de uma exasperante minúcia na descrição de pormenores dos pormenores provenientes da precisa memória visual e olfactiva, auditiva, gustativa e, sem dúvida, até táctil, de Marcel (a personagem) e de Marcel (o autor), ou, pelo contrário, até que ponto não servirá principalmente para me exibir, como se eu andasse por aí a dizer: «Adoro Proust! Ai, adoro Proust!»

A resposta a tal interrogação surge em dois pontos.
Numa ordem perfeitamente arbitrária, primeiro, o carácter discreto, se não secreto, do modo como vivo esta paixão, a qual trato como se fosse uma tara de que me não covém falar demasiado. Devo dizer que essa é, aliás, uma das razões que me mais me levam a hesitar em escrever um «post» sobre Proust.
Em seguida, o prazer genuíno, indiscutível, com que releio a obra.
O que julgo ver nela e tanto me entusiasma é, por um lado, uma capacidade (uma «competência», como se diz por aí...) de que sou inteiramente destituído: a facilidade na síntese entre o analítico e o sensitivo. Eu sou capaz de descrever e, obviamente, capaz de sentir. Mas descrever as sensações, as características deste ruído rápido do matraquear sobre as teclas, ou deste zumbido, ou decompor o sabor deste gole de uísque com que faço uma pausa para pensar na frase que se segue, é-me quase doloroso. E, por falar em dor: recordo-me bem da dificuldade que constituía, para mim, quando ia ao médico, descrever «exactamente» o tipo de dor que estava a sentir. «É uma dor fininha?», propunha-me ele. Que significa isso? O que será, por oposição, uma «dor grossa»? Devo dizer que um dos grandes terrores que me perturbavam na antevisão de uma ida ao médico não residia no receio do momento em que o senhor doutor forçaria a abertura da minha boca, puxando a língua para baixo sob a pressão da malfadada espatulazinha e, com isso, quase me fazendo vomitar (sim, tal seria o meu segundo pavor), mas no momento em que ele me perguntaria: «Diz-me lá exactamente o que estás a sentir». Tinha pesadelos, imaginando que a doença poderia ser mal diagnosticada por defeito das minhas descrições, ou por um «sim» leviano, precipitado, à simples questão: «É uma dor fininha?». Ou: «É uma dor que aperta?»

Mas, sobretudo, delicia-me aquela atenção de Proust ao evanescente, ao que está disperso no tempo, ao que passa, ao que não dura, ao que não ficará, ao que já cá não se encontra no preciso momento em que acabo de o apontar; delicia-me aquela atenção ao superficial que é, curiosamente,uma das marcas da profundidade; a subtileza do que muitos vezes não captamos na sua essência à primeira leitura e, portanto, a que teremos de retornar. Extasio-me (como diz o próprio Proust de uma personagem, o escritor Bergotte) com o seu poder de pegar numa percepção por um ângulo tão pouco usual que parece um ângulo errado, produzindo, a partir dele, um sentido originalíssimo, paradoxal, de uma invulgaridade arrepiante.
Entrego-me à sua observação de contradições nos sentimentos, sempre complexos e carregados de cambiantes, em todas as personagens, na evidência reiterada de que nada é simples, de que palavras como «amo» ou «detesto» são meras etiquetas, porque há no amor sensações que se digladiam e chocam, como há no «detestamento» estranhos e inesperados elementos de atracção.

Saio de uma página de Proust completamente rendido e plenamente satisfeito, como se tivesse atingido um cume.

Não é uma experiência de que me ouvirão falar muito. Não por egoísmo, não por pouca vontade de partilha. Mas porque o próprio nome, Mar-cel Proussst, soa a clássico, a pesado.

Saboreiem só, quanto mais não seja, todas as reverbarações deste título. «Em - Busca - do - Tempo - Perdido».
Não é maravilhoso?

terça-feira, junho 24, 2008

NO CONFORTO FAMILIAR

Sento-me ao computador como quem tenta respirar, erguendo a cabeça acima da linha da água que principia a envolver-me, a puxar-me convictamente para baixo, para o fundo.
A água em que me vou enraizando é, sobretudo, uma água sonora: toda feita de ruídos que me povoam a casa invadida por familiares. Oiço o meu sobrinho de pernas peludas que gargalha alentejanamente, lá para baixo. (Sem desprimor, que o gargalhar alentejano não é pior do que os outros...); não lhe oiço a mulher, nortenha discreta, tímida, pálida e loira. Mas, em contrapartida, oiço a minha cunhada, mãe do marmanjão das pernas peludas, que barafusta com ele! «Tira-me já isso daqui! Faz outra dessas e volto já para o Alentejo...» - Sinto-me indeciso: pedir ao dos pêlos que repita seja lá qual for a gracinha, a ver se ela desanda, se desandam todos?
Mas estou sendo injusto! Vieram para me ajudar na vigilância da minha filha, atacada de varicela; vieram para tomar conta dela, uma vez que não posso deixar de ir trabalhar, agora que, na escola, me desabam em cima os exames e as reuniões de notas, nem a Adelaide, que se falha, não vende, se não vende, não ganha!
Estou-lhes, portanto, grato. Claro, podiam não ter trazido o gato e o cão. Mas com quem os deixariam?
A irmãzinha do rapazola, ela já também de pernas peludas, grita. Aliás, grita sempre. Pergunto-me por que raio uma criança falará sempre a gritar, a não ser que seja surda ou que viva entre surdos. (O que, por aqui, em breve será certamente o caso!)
Afundo-me literalmente - na verdade, chamam-me para jantar e, portanto, lá terei de afundar estes dois andares que ainda me separam...
Preparo-me para acabar este post, com um misto de triunfo e de culpabilidade. Sinto-me, realmente, mau como as cobras. Absolutamente maldoso. Vejam: as pessoas que acorrem para me apoiar neste momento conturbado da minha vida, e eu que me escondo no blogue a dizer mal...!
Se ao menos dizer mal não me fizesse tão bem à saúde...
Ou se a criança não falasse tão sempre a gritar...
Ou se não tivessem trazido o gato e o cão...!

quarta-feira, junho 18, 2008

ROBOCOPZINHOS

Como o mundo evolui vertiginosamente e os jovens já não são como éramos, a psicologia trata de os compreender em função de motivações e carências completamente novas.
Acontece que esta ciência é um pouco de tudo o que se quiser. Não sou adversário da psicologia em si. Sou somente muito céptico em relação aos psicólogos. É diferente.

A última teoria que ouvi foi exposta, com uma convicção e uma seriedade perfeitas, por uma senhora de óculos e fita nos cabelos. Era acerca dos adolescentes e dos telemóveis e ecoava ainda, vaga e longinquamente, o triste caso do combate entre uma aluna e uma professora, por causa de um telemóvel, que povoou semanas e semanas de telejornais.
Explicava a psicóloga da fita que os adolescentes criaram uma dependência do aparelho que o torna literalmente uma parte deles, configuradora da sua intimidade e dos seus laços; «têm necessidade de se sentir em rede», em permanente comunicação com o mundo. Cortar essa possibilidades é feri-los num elemento tornado vital enquanto jovens. E, portanto, arrancar-lhes o telemóvel (como a tenebrosa professora teria tentado) seria como arrancar-lhes uma parte de si: «como uma prótese», exemplicava...

Não quero ir declaradamente contra a maré. Vejo-me na contingência, pois, de assumir e digerir estas novas teorias. E portanto, no próximo ano lectivo, terei de ser muito específico:

«Nas minhas aulas», direi a estes novos robocops, rapazes com tecnologia incorporada, «o único tipo de prótese que pode permanecer ligado é o sonotone!»

domingo, junho 15, 2008

SE AMANHÃ LEVAMOS DA ALEMANHA, LÁ NOS CAI A CRUEZA DO PORTUGAL SOCRÁTICO EM CIMA!

Ninguém pergunta: «Está tudo numa boa?»; perdão, minto: há um grupo de pessoas que usa esta expressão. Não são os jovens, são os cotas que anseiam, se não por parecer jovens, pelo menos por mostrar que os entendem muito bem e falam a mesma linguagem, numa espécie de piscadela-de-olho cúmplice. Qualquer jovem identifica imediatamente um, digamos assim, «utente desta expressão», como sendo um não-jovem armado ao pingarelho.
Há uma espécie de película permanente de equívoco nesta angústia «politicamente correcta» de nos entrosarmos, de também falarmos à maneira de.
De certo modo, eu próprio sou uma vítima dessa ansiedade. Enquanto homem que, durante anos, não percebia patavina de futebol, assumindo um irrelevante e inconvicto «sportinguismo», tinha, por vezes, entre machos lusos, necessidade de falar futebolês, dizer que a equipa estava pouco/muito «entrosada». Servia-me de guia o senhor A., contínuo na minha escola que, quando eu entrava, era o primeiro a fazer os comentários que, ao longo do dia, eu tratava de seguir religiosamente - aliás, com pouco sucesso porque a opinião do senhor A., como acabei por descobrir com o tempo, estava longe de constituir uma luz do Além. Era uma opinião do Além, sim, mas num sentido menos lisonjeiro!
Com o tempo, tornei-me um fervoroso adepto e um atento seguidor de alguns jogos. Devo essa reviravaolta, mais do que ao senhor A., à selecção - pense o que pensar do histerismo patrioteiro que a rodeia e, para ser franco, este não me desagrada muito porque há, em mim, um óbvio lado histérico - e, mais do que aos homens, a duas ou três amigas com quem aprendi a entusiasmar-me com um certo futebol.

Neste momento, tenho vindo a discutir com elas se a trapalhada de pés que o Quaresma utilizou no jogo contra a Suíça é, ou não é, a famosa «trivela». Uma das minhas amigas, que sim. Outra, que não. Já não tenho o senhor A. para me tirar dúvidas. Sorte minha. E assim me entroso no entusiasmo pelo euro. Está tudo numa boa!

quarta-feira, junho 11, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [VI E ÚLTIMO EPISÓDIO]

Estava quase a entrar em desespero quando, na garagem do centro comercial, por um mero acaso, daqueles que só podem acontecer: a) na vida real (e aí, de facto, ocorrem constantemente; ou: b) numa história escrita por um autor medíocre, com dificuldades em encontrar soluções complexas -, por um mero acaso viu a senhora entrando para um carro enorme, de cor grená. A partir daí, foi simples; seguiu-a. Montou uma vigilância apertada, acompanhando-a por um par de binóculos, colocando escutas na sua casa; estava, pois, preparado para perceber que o livro ia ser oferecido. Seguiu-a de novo, no dia dos meus anos. Montou um aparato de vigilância diante de minha casa. Viu-me, pelos mesmos binóculos, receber o livro.

Quando lhe repeti que o dinheiro me desaparecera por entre os dedos como berlindes (estou a tentar redimir-me da «coincidência» com que resolvi o problema lá em cima, procurando agora imagens literárias pouco usuais...), respondeu-me que ficava muito triste. Mais do que isso: o fulano com ar de porquinho, que estava tão atento à nossa conversa, acrescentou o baixote, apontando-o discretamente, era alguém a quem ele, por sua vez, devia todo aquele dinheiro; pertencia a um grupo perigosíssimo, e que marcara com ele um encontro para dali a meia hora. Percebi que o baixote não era mau. Alguém tão encalacrado como eu, simplesmente. Os preços da gasolina aumentavam (piscar de olho realista ao quotidiano português), as pessoas metiam-se em todos os expedientes para sobreviver, vendiam a alma ao diabo e depois...! O homem chorava diante de mim.

Prometi-lhe precipitadamente que ia fazer tudo o que estava ao meu alcance para reaver o dinheiro. Vi-o a agradecer-me, segurando-me a mão com as duas mãos muito rechonchudas e peludas. Combinámos prazos. Retirei-me, preocupado.

A verdade é que não fazia a menor ideia do que poderia decidir para produzir cinquenta mil euros em duas semanas. Como gastá-los, sim, sobre isso tinha ideias claras. Mas «ganhá-los»...!

Quando descia pelo tapete rolante, fui ultrapassado por uma criança que fugia aos pais. Tudo se deu então muito velozmente. O casal vinha atrás, com um carrinho com algumas compras, não muitas porque ninguém, hoje em dia, compra muito (segundo piscar de olhos realista), mas foi o suficiente para, na aflição que se seguiu, me atropelarem, pisarem, esmagarem. A boa notícia é que conseguiram salvar a criança antes que lhe acontecesse algo de ruim. A má notícia também não é inteiramente uma má notícia. Mais do que o carrinho, o peso enorme do pai da criança, aterrando elefantasticamente sobre o meu peito para segurar o menino no ar, foi-me fatal.

A notícia não é má porque, na verdade, a morte salvou-me de um problema que eu não saberia resolver em vida: ganhar cinquenta mil euros em duas semanas!
Fico um pouco atormentado, porque sei que a vida não irá ser fácil, nos próximos tempos, para o meu recente amigo, baixote, careca e caixa-de-óculos.
Mas não muito atormentado porque, neste campo onde acabo de penetrar, sinto que todos os problemas se transformam, ganham contornos diferentes e um outro ar. Nada do que nos afligia na terra tem demasiada importância. Em contrapartida, simples questões que nunca nos haviam ocorrido tornam-se, repentinamente, substanciais, como: espero que, para onde terei de me dirigir, não haja ninguém a tocar harpa. Não eternamente, pelo menos!!!

Tenho de ir, seja lá como for. Há uma luz a acenar-me, lá ao longe...

quarta-feira, junho 04, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [V]

A leitura do jornal despertou-me com tamanha força o espírito confundido, que não me restaram quaisquer dúvidas a propósito da evidência de estar morto. (Tinha havido, até, em vida, momentos em que eu estivera menos certo de me encontrar vivo do que, agora, estava certo de ter morrido).
Ao mesmo tempo, por efeito deste choque, a memória devolveu-me o filme dos últimos acontecimentos:
O baixote contara-me, enquanto eu me voltava para ele com o nariz completamente encervejado, que, um dia, estava ele na posse daquele dinheiro - cuja proveniência desonesta não interessa aqui esmiuçar - quando se apercebeu de que uns agentes da lei o perseguiam. Não podia ser interceptado com cinquenta mil euros num volume que já aqui chamei «pacote» e também já chamei «sobrescrito», mas, em suma, era muito menos espesso do que aquilo que se pudesse imaginar! Desesperado, tentou despistá-los: entrava em lojas de roupa cujos nomes não sugeriam roupa, como Mango ou Escada, escondendo-se nas barraquinhas de prova, escapando-se por portas dos fundos, mas os agentes não se afastavam nem um milímetro. Entrou na Bulhosa. Chocou com uma senhora idosa: ajudou-a a apanhar do chão uns embrulhos, mais um livro que ela se preparava para pedir que embrulhassem para oferta e, sorrateiramente, introduziu o dinheiro entre as páginas deste. Pediu desculpas e desandou, sentindo-se o homem mais livre e mais leve da História da Humanidade!
A polícia apanhou-o, por fim, à porta da livraria, revistou-o ali mesmo mas, como é bom de ver, nada achou! Dava-se ao luxo de ser irónico, fazer humor, raiar o sarcasmo, «Os senhores perderam alguma coisa? Posso ajudar?», certo de que o dinheiro...

Aliás, onde estava o dinheiro!? Diacho! No livro da velha, sim, mas onde raio se metera, entretanto, a velha? Perdera-a completamente de vista...

[CONTINUA]

domingo, junho 01, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [IV]

Acordei, nessa tarde, em casa. Estava estendido na cama, sentindo o corpo estranhamente flutuante, e não me lembrava quase de nada do que me sucedera. Imagens vagas de um cara-de-porquinho confundiam-se com as de um caixa-de-óculos baixote, calvo e mau; mas, como nos sonhos, as minhas memórias compunham, decompunham e recompunham diversos aspectos de ambas as personagens, de modo que eu já não sabia que traço era realmente de quem.
Uma coisa em que reparei foi que não estava ferido.
Soube somente no dia seguinte, pelos jornais, que eu tinha morrido.
E então, de repente, tudo se me afinou e aclarou no espírito.

(CONTINUA)