quarta-feira, junho 11, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [VI E ÚLTIMO EPISÓDIO]

Estava quase a entrar em desespero quando, na garagem do centro comercial, por um mero acaso, daqueles que só podem acontecer: a) na vida real (e aí, de facto, ocorrem constantemente; ou: b) numa história escrita por um autor medíocre, com dificuldades em encontrar soluções complexas -, por um mero acaso viu a senhora entrando para um carro enorme, de cor grená. A partir daí, foi simples; seguiu-a. Montou uma vigilância apertada, acompanhando-a por um par de binóculos, colocando escutas na sua casa; estava, pois, preparado para perceber que o livro ia ser oferecido. Seguiu-a de novo, no dia dos meus anos. Montou um aparato de vigilância diante de minha casa. Viu-me, pelos mesmos binóculos, receber o livro.

Quando lhe repeti que o dinheiro me desaparecera por entre os dedos como berlindes (estou a tentar redimir-me da «coincidência» com que resolvi o problema lá em cima, procurando agora imagens literárias pouco usuais...), respondeu-me que ficava muito triste. Mais do que isso: o fulano com ar de porquinho, que estava tão atento à nossa conversa, acrescentou o baixote, apontando-o discretamente, era alguém a quem ele, por sua vez, devia todo aquele dinheiro; pertencia a um grupo perigosíssimo, e que marcara com ele um encontro para dali a meia hora. Percebi que o baixote não era mau. Alguém tão encalacrado como eu, simplesmente. Os preços da gasolina aumentavam (piscar de olho realista ao quotidiano português), as pessoas metiam-se em todos os expedientes para sobreviver, vendiam a alma ao diabo e depois...! O homem chorava diante de mim.

Prometi-lhe precipitadamente que ia fazer tudo o que estava ao meu alcance para reaver o dinheiro. Vi-o a agradecer-me, segurando-me a mão com as duas mãos muito rechonchudas e peludas. Combinámos prazos. Retirei-me, preocupado.

A verdade é que não fazia a menor ideia do que poderia decidir para produzir cinquenta mil euros em duas semanas. Como gastá-los, sim, sobre isso tinha ideias claras. Mas «ganhá-los»...!

Quando descia pelo tapete rolante, fui ultrapassado por uma criança que fugia aos pais. Tudo se deu então muito velozmente. O casal vinha atrás, com um carrinho com algumas compras, não muitas porque ninguém, hoje em dia, compra muito (segundo piscar de olhos realista), mas foi o suficiente para, na aflição que se seguiu, me atropelarem, pisarem, esmagarem. A boa notícia é que conseguiram salvar a criança antes que lhe acontecesse algo de ruim. A má notícia também não é inteiramente uma má notícia. Mais do que o carrinho, o peso enorme do pai da criança, aterrando elefantasticamente sobre o meu peito para segurar o menino no ar, foi-me fatal.

A notícia não é má porque, na verdade, a morte salvou-me de um problema que eu não saberia resolver em vida: ganhar cinquenta mil euros em duas semanas!
Fico um pouco atormentado, porque sei que a vida não irá ser fácil, nos próximos tempos, para o meu recente amigo, baixote, careca e caixa-de-óculos.
Mas não muito atormentado porque, neste campo onde acabo de penetrar, sinto que todos os problemas se transformam, ganham contornos diferentes e um outro ar. Nada do que nos afligia na terra tem demasiada importância. Em contrapartida, simples questões que nunca nos haviam ocorrido tornam-se, repentinamente, substanciais, como: espero que, para onde terei de me dirigir, não haja ninguém a tocar harpa. Não eternamente, pelo menos!!!

Tenho de ir, seja lá como for. Há uma luz a acenar-me, lá ao longe...

1 comentário:

zorbas disse...

Acorda,pá! Não estás morto! A luz que estás a ver é a lanterna que determinou que tens contracção pupilar, sinal que estás bem vivo e cheio de problemas...