segunda-feira, dezembro 29, 2008

NÃO SE BRINCA COM COISAS SÉRIAS (E EU ESTOU A NARRAR, NÃO ESTOU PROPRIAMENTE A BRINCAR!)

A minha... a minha quê? Principiemos, pois, por aí. Que me é, exactamente, a mulher de um meu primo? Quase-cunhada? Cousin in law, atendendo a que ela é norte-americana?

Enfim, essa mulher optimista, numa noite em que eu os convidara para jantar, olhava-me há já algum tempo com uma fixidez lancinante, incómoda, perturbadora; como ela é americana e tendemos a esperar que os americanos sejam gente de costumes diferentes, já me preparava para o momento constrangedor em que, sob a mesa, ela fizesse deslizar o seu pé descalço ao encontro do meu, quando, bruscamente, percebi o que lhe atraía a atenção. Uma mancha que eu tenho na testa. Uma espécie de sinal em que, por sinal, muitas pessoas têm reparado ultimamente.

A teoria da minha mulher é simples: a mancha sempre cá esteve! O cabelo é que já não vai estando. Por esse motivo, mais descoberta, a dita mancha nota-se agora bem.

Devo dizer que uma tal teoria, que atribui a uma calvície galopante o facto de se começar a reparar
tanto na mancha, não me agrada. Salva-me dela a cousin in law, sempre optimista:
- Não, não é de carreca! Tens que verr isso. I met a guy of your age, and he had a spot exactly like that one. And he died!

Porque estas coisas não são para brincar - e não se deixem enganar pelo meu tom ligeiro -, resolvi levar o aviso muito a sério. Não dormi duas noites e, ao terceiro dia, zarpei para o médico, um senhor de bibe branco que, imediatamente antes de à saída me pedirem que pagasse noventa euros, demorara comigo doze-minutos-doze, nem um mais, para me dizer, com um ar trocista:
- Oh, meu caro! Mas nem sequer é um sinal. [E chamou-lhe outro nome!]. Isso não tem importância. [Mais um pouco, e acrescentava: «Já experimentou lavar com água e sabão?!»]. Se quiser, pode tirar, mas unicamente por razões estéticas. [Por um triz não disse: «Basta puxar, a ver se arranca...»]

Senti-me defraudado.
Foi como se, imaginem, ao entrar no gabinete do médico me tivesse acontecido tossir, e ele me dissesse: «Nem vale a pena sentar-se. O seu mal é tosse. Não se esqueça de pagar à saída...!»

Cá fora, chovia desalmadamente e eu, na escuridão, não sabia já onde diabo estacionara o carro.
Procurando-o, completamente ensopado, agasalhava-me melhor na gabardina, cruzando ambos os braços sobre o peito. («Cruzando ambos os braços» é uma judiciosa escolha de palavras, uma vez que não poderia ter cruzado um único braço).
Passei, nessa grotesca figura, por duas mulheres, uma das quais, a mais velha, explicava à outra, obviamente mais nova (acerca de mim):
- Desvia-te, Catarina, que esse é dos que abrem as gabardinas para mostrar o pirilau!

Topo subitamente o carro, enfio-me no interior e arranco, espirrando!

domingo, dezembro 28, 2008

HÔ-HÔ-HÔ

A prova de que os adultos pouco sabem acerca das crianças reside em que, para as divertir, tenham inventado nada menos do que o palhaço - uma espécie de monstro com o rosto fantasmagoricamente branco, uns lábios de jazzman e um nariz de bêbedo, isto é, redondo, vermelho e grande. Se acrescentarmos a tudo isto aquela sua típica maneira de falar à Luís Figo, percebemos que se trata de uma personagem para infundir terror, nunca para fazer rir.

Um casal de amigos muito meus amigos (contando que não venham a tropeçar neste «post») decidiu, há já alguns anos, comemorar o aniversário da filha com a seguinte surpresa: quando estivessem os meninos concentrados na sala, com as mãos untadas de bolo e alguma coca-cola por perto, eles se encarregariam, digamos, de estragar a alegria da petizada surgindo, mascarados de palhaços, de corneta na beiça e viola em punho. A intenção era boa! Eu estava lá e assisti a tudo. Não assisti propriamente à intenção, que não era visível, mas em cuja bondade deposito uma inquebrantável fé. Fui, todavia, espectador do efeito: crianças a berrar, lágrimas grossas espirrando e arruinando as fatias de bolo, coca-colas derramadas pela carpete do IKEA.

Lembro-me do pai da aniversariante parando, incrédulo, trágico no seu chapéu bicudo, a tristeza estampada no rosto enfarinhado, a virar-se para a mulher (essa de palhaço pobre vestida, com uma meia de cada cor) e perguntando-lhe:
- E agora...? Continuamos?
Não puderam continuar.
É verdade que esperavam risos, não aquele pavor. E não é que não houvesse risos. Houve, e muitos. Mas não houve os esperados: para ser sincero, o único que se ria era eu próprio, que não devia, claro e, até onde possível, tratei até de disfarçar, mas sempre tive um humor imperdoavelmente perverso.

Esta história serve para ilustrar o desconhecimento que os adultos têm acerca do que efectivamente uma criança pode considerar divertido ou engraçado. Por mim falo. Chego, pois, a outra historieta:

A minha filha recebeu, neste Natal, bonecas, peúgas e livrinhos.
Trouxe-as carinhosamente o Pai Natal (um Pai Natal da crise, evidentemente mas, ainda assim, um Pai Natal...), em que me esforcei denodadamente que ela acreditasse.
Falara-lhe tanto do bondoso velhinho das barbas brancas, e das renas, e dos presentes distribuídos pelos meninos bem-comportados (o que nunca pode ser literalmente entendido, porque «meninos bem-comportados» é aquilo a que se chama um paradoxo).

Pois bem: o resultado? Por estes dias, a minha filha não dorme.

E à noite, da sua caminha de grades, repete, com os olhos brilhando muito no escuro, como duas enormes bolas natalícias:
-Nã quéi domiri. Tem medo do Pai Natali!

domingo, dezembro 21, 2008

O FILHO PRÓDIGO

Devo confessar a todos os cristãos com cartão e lugar cativo (no céu), que a Justiça segundo a Bíblia me deixa sempre um tanto dubidativo.
Pegue-se, entre outros, no exemplo do Filho Pródigo.

Imagine-se o leitor, por um momento, no lugar do filho que ficou em casa; eu tento pôr-me muitas vezes nesse lugar. (Deve ser porque me apetece cada vez mais ficar por casa, em vez de andar a tropeçar em gente feia pelos centros comerciais). Ele vê o irmão pedir, ao pai, a percentagem da herança que lhe caberia. Vê-o sair de casa, indiferente às saudades que semeia. Vê o estado em que o pai fica. Acompanha o velho. Ajuda-o no dia-a-dia. Trabalha por dois. Ara a terra. O irmão não está lá para cumprir com a sua parte. Aliás, presumo que um rapaz desse calibre não fosse, mesmo enquanto estava em casa, um exemplo de amor ao trabalho. É de admitir que o próprio pai, por causa da tristeza em que caiu, tenha diminuído no seu rendimento. Em suma, o irmão quedante, quedou-se a trabalhar noite e dia para substituir o pouco que fariam o madraço e o velhote.

Gramou as queixas, Ai ai o teu irmão, que falta me faz, coitadinho, por onde andará ele?, gramou a tristeza que inundou o casarão (pois nunca mais foram capazes de lhe fazer uma festa, nem sequer pelo aniversário...), gramou a solidão. De pé firme.

E um dia, chega a casa (ironia suprema: chega do trabalho!!!) e repara que há luzes, repara que há música, tarã, tarã, tã tã tã tã! Pergunta, como quem não quer a coisa, O que se passa, O que se passa, pensando, no seu íntimo, Querem ver que eu faço anos e desta vez se lembraram...?, e que ouve ele? Que o seu irmão voltara!

Mas esperem, amigos. Há mais ironias nesta edificante história: voltara, porquê?
Resposta: porque gastara a parte da herança que o velho pai lhe havia adiantado. Não é bestial? Não é fabuloso? Não voltara pelas saudades. Não voltou pelos remorsos. Voltou... tenho de fazer uma pequena pausa para respirar fundo... porque tinha gasto o dinheiro.

É que, ao que parece, tiritando de frio, lambendo-se de fome às portas dos restaurantes, tentando alimentar-se do odor das iguarias, lembrara-se, melancolicamente, Em casa do meu pai é que era bom, em casa do meu pai nunca passei fome.
Como diria Freitas do Amaral: É preciso topete!

Ora o irmão quedante ainda teve tempo para ouvir a voz feliz do pai mandando matar um bácoro para festejar o regresso do filho pródigo.
«Mas espera lá! Eu fiquei, trabalhei, amparei tudo e todos e nunca ninguém se lembrou de festejar com um bácoro e vinho a minha contínua presença...! E este foi-se! E quando regressa, tarã tã tã, tarã tã tã...?»

Quando me falam em Justiça Divina, só posso responder, humildemente: Os caminhos do Senhor são insondáveis. A mim - e à minha limitada e terrena compreensão - escapam-me totalmente!

PARA UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA DAS INCURSÕES PORTUGUESAS NO NOBEL

Todos sabemos que um de nós recebeu o prestigiado prémio Nobel: trata-se do senhor Saramago, genuíno representante do português que há em cada um, quer por não ter descansado enquanto não fugiu do cantinho luso, quer porque se comporta, em relação à gramática portuguesa, como os portugueses em geral se comportam em relação ao fisco.

Mas, aos mais distraídos da História de Portugal (isto é, uma vez mais, aos portugueses), gostaria de lembrar que há um outro Nobel nosso. É verdade. Trata-se do Professor Egas Moniz, que se tornou conhecido pelo seu tratamento dos malucos que, à maluquice deles, permitiu adicionar uma espécie de estupidez. E só não falamos mais, hoje em dia, deste FAROL da ciência, porque, infelizmente, um anódino episódio acabou por ficar associado para sempre ao seu nome: decidiu ir de corda ao pescoço, mais a família inteira, apresentar-se ao seu rei.

Eu sei muito bem que as pessoas que já tinham lido este «post» hão-de estar a esfregar os olhos. Porque não era o que vêm de ler que eu tinha originalmente postado. O problema é que confundira o Egas com o Becas, perdão, o senhor Egas Moniz com um outro Moniz, estão lembrados? (E não ter metido no barulho o Moniz da TVI foi um bambúrrio da sorte...! Parece que pertenço ao saco dos «portugueses distraídos da História»... Não fosse a atenta Angel e ainda agora o miserável erro aqui estaria a reluzir...)

Acerca do outro Moniz - já se perderam? -, lembrava eu a morte bizarra, entalado numa porta ali ao Martim Moniz, entalão que, tragicamente, superaria qualquer feito que houvesse efectuado em vida. É triste. Consta que um magote de gente aproveitou a nesga assim aberta para entrar num tropel assassino. O homem a gritar «Ó, por favor, olhem que estou aqui eu, deixem-me sair» e o pessoal a enfiar-se pelo centro comercial que, àquelas horas, tentava fechar as portas. (Uma vez aconteceu-me isso num autocarro: palavra que não é fácil. Eu entalado e uma imensa e inumana mole de seres humanos a aproveitar para entrar, a despeito dos meus protestos...)

Mas todas estas confusões vêm a propósito da minha pretensão. Retornemos à vaca fria. Gostaria muito de propor, para próximo Prémio Nobel, não sei exactamente em que ciência, o meu Vizinho Mário, que inventou uma forma de não ter de se mudar a água na máquina de café de cada vez que se vai fazer outro café. Como a minha mulher já me tinha convencido de que «se-passada-meia-hora-eu-me-preparasse-para-fazer-um-novo-café», tinha por força de trocar a água que ficara no depósito, a operação tornara-se-me pesada e penosa. Já andava até a beber menos café! Ora, em casa do Vizinho Mário, não se procede a troca de água. Como lhe expusesse o problema, respondeu-me o bondoso velhinho: «Que disparate!»

Como a minha mulher tem sempre razão (e o vizinho Mário também) - na perspectiva de um e de outro, a mim é que a razão abandona frequentemente -, suponho que o senhor tenha inventado um sistema com filtros, qualquer coisa capaz de melhorar substancialmente a vida da humanidade.

Não me agradeçam a revelação. Dêem o Nobel ao homem e já me sentirei suficientemente recompensado.

terça-feira, dezembro 16, 2008

ALGUMAS LIÇÕES DE INFORMÁTICA (SIM, SIM, EU OUVI ESSE COMENTÁRIO! LIÇÕES DE INFORMÁTICA DADAS POR MIM, POIS, QUAL É O PROBLEMA?!)

Primeira Lição.

Quando temos dúvidas acerca do código de acesso, e hesitamos entre duas possibilidades, devemos experimentar ambas.

Não ao mesmo tempo, é claro, mas sucessivamente.

Regra geral, a primeira que tentamos está errada.

Frequentemente, a segunda também não era ainda a correcta.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

CAÇADOR DO IMPOSSÍVEL

Chamam-me caçador.
Saio à noite, solitário e melancólico. Melancólico porque sinto que a minha tarefa me torna injusto.
A arma que possuo é o tempo.
E o tempo não é meu amigo, é meu inimigo. Devo ser o único caçador que transporta uma arma que o próprio caçador não ama, mas teme; que o próprio caçador não consegue sentir, cúmplice, no seu braço - antes fria e rancorosa, como se a qualquer momento pudesse virar-se (e vira, por vezes), contra ele: como um instrumento que se não adapta inteiramente à sua mão, que nunca chega a ser uno com esta, que está sempre a mais, sempre inorgânico, sempre incómodo, e de que, no entanto, o caçador inteiramente depende.
Saio. Mato. Com o tempo que desprezo. Me despreza.
E regresso. Eu mesmo mais velho, depois de cada nova morte.
Não renasço em cada morte inflingida. Não me alimento das sucessivas mortes. Suicido-me sem conseguir morrer.
Em cada morte, morro um pouco, sem morrer de uma vez.
E regresso.

quinta-feira, dezembro 11, 2008

MUNDO DE AVENTURAS

A minha vida, como oiço às vezes à senhora dona sogra, dava um filme. Não será tão espectacular e glamourosa como pode parecer à primeira vista (por exemplo à Sara T., que pergunta: «Mas é mesmo assim...???»), mas mantém uma permanente agitação; se não, vejamos: é verdade que me esqueço frequentemente da chave de casa e tenho de saltar o gradeamento e, a seguir, enfiar-me por uma janela que, do lado de fora, não abre senão o suficiente para me entalar; mas encolho a barriga e estreito-me de forma a fazer passar o meu corpo elástico, aterrando, ao fim de quinze penosos e doridos minutos, sobre os copos de vidro de uma casa de banho. E tudo sem qualquer vaidade; não é por isso que digo, ao apresentar-me: «My name is Duarte, Gil Duarte»...

Também é verdade que, no outro dia, andei fugindo, pelos telhados, de uns ucranianos que queriam eliminar-me: mas não foi nenhuma aventura de maior - não se tratava de agentes da ministra, nem de uma organização criminosa como a ASAE. Eram simplesmente ladrões. E, aliás, exagero um pouco: no fundo, estes ladrões não passavam de um casal honesto, que procurava devolver-me a carteira que eu esquecera sobre o balcão de um café. Eu é que me assustei desnecessariamente. Já agora, para ser rigoroso-rigoroso-rigoroso, também não se pode dizer que tenha chegado a subir exactamente aos telhados. Limitei-me a trepar a um muro. Um muro baixo. (Algumas pessoas chamam-lhe «passeio». Mas o ponto é que, para fugir aos honestos facínoras, fui obrigado a andar sempre pelo passeio...)

Há, portanto, que não desmerecer desta vida aventurosa. Era-o mais, é claro, quando eu tinha um cão. Reparem: o Dunga chegou a morder-me; e, atenção, houve aquele dia em que eu próprio estive vai não vai para morder-lhe. Mas mesmo agora, que ele se foi, existe uma certa agitação na minha vida. Dava um filme.

Nós, os vagabundos dos limbos, sem amarras nem laços, nós, os eternos navegadores do infinito, judeus errantes, temos sempre novas e sumarentas aventuras.

Não é que eu, na minha qualidade de «vagabundo sem amarras nem laços», não tenha de facto amarras. Tenho-as. Mas sempre recusei a obtusa opressão dos laços. Isso nunca. Jurei que nunca usaria laços nem gravata!!!

quarta-feira, dezembro 10, 2008

NOVA PROFISSÃO: AFIXADOR DE CARTAZES

Como a situação dos professores se encontra mais embrulhada do que nunca - e, mesmo no Natal, «embrulhos» nem sempre são bons... -, aceitei, com as previsíveis reticências do burguês acomodado que sou, o convite para me juntar a um grupo de um movimento em torno da aspiração a uma «escola moderna», a fim de colar uns quantos cartazes, à noite, anunciando um debate sobre o candente tema da avaliação do desempenho docente. (5ª-feira, na Escola de S. João do Estoril, pelas dezanove horas, com a presença de Ana Benavente).

Está frrrrrrio! Deve ser a noite mais fria do ano.
Levo um casaco por baixo de uma camisola de gola alta, e um sobretudo por cima disto tudo. Sou um embrulho.

Chego de carro.
O líder dá-nos indicações precisas. Infelizmente, somos poucos.
- O Camarada X, que é a alma por detrás da organização desta noite de colagens, infelizmente não pôde vir. Foi para a Serra da Estrela. Estão prontos, camaradas?

Seguimos. Vamos numa procissão de automóveis. Teria sido mais fácil reunirmo-nos todos numa carrinha. Ou num carrinho qualquer. Não. Seguem quatro automóveis, cada um dos quais não transporta senão um único condutor. Não sei bem porquê, aceitei levar o balde com a cola e com as trinchas. «Isto não entorna?», pergunto. «Não, camarada. Não vamos fazer gincanas.»
Seguimos. A cada solavanco, sinto que há mais um teste de mais um aluno, no banco de trás, que ganha alguma cola.

Primeira paragem. Saímos. Sobretudos, cachecóis, barretes. Tirito. Levo uma trincha a que não sei o que fazer. Sou um intelectual, que diabo, não estou muito habituado a lidar com trinchas! Os outros movem-se rápida e agilmente - não precisam, para colar uma meia dúzia de cartazes, mais do que o tempo que eu levo a tropeçar no balde e a derramar um pouco de cola nos sapatos.
«Então, camarada, então, há que não desperdiçar...»

Dão-se instruções sobre a próxima paragem. Reentramos nos carros. Conheço o destino, arranco, por uma vez durante a noite seguro de mim. O líder está furioso. Tenta ultrapassar-me: é ele que tem de ir à frente; começo por julgar que é uma brincadeira e acelero. O líder parece doido. Gesticula no interior do seu veículo prateado. Deixo-o passar.

Chegamos ao segundo ponto. Saímos. Colamos cartazes junto a uma escola. O Guarda-nocturno segue os nossos movimentos com uma viva curiosidade.
Encaminhamo-nos de novo para os carros. «Não podemos ir andando a pé?», ainda tento eu. Olham-me com ar de quem está perante um novato nestas andanças. A procissão automobilística reinicia-se, portanto.

Já com o veículo em marcha, observo, perplexo, que o Guarda-nocturno referido supra, se entretém a arrancar os cartazes que viéramos de colar. Calo o bico. Sou um novato, deve fazer parte do procedimento.

Nova paragem. Outra escola. O líder pára para fumar um cigarro que lhe provoca uma tosse de que nunca mais se libertará durante o resto da noite. Estou com o sobretudo manchado de cola. Sou mesmo novato!

Sempre que chegamos, o líder saca de um novo cigarro e de novos acessos de tosse.
Esgotámos os cartazes que, afinal, não eram muitos: três aqui, quatro ali, seis num outro ponto. Unindo sempre os pontos com linhas de carros em procissão.

Regresso a casa, pensativo. Andava a pensar em mudar de profissão. Percebo que, para mim, a de afixador de cartazes não constitui alternativa.

Andei a trabalhar por uma nova escola, ein? Estive ao frio, a dar o couro por vocês, professores e alunos. E corri riscos. Podia ter aparecido a polícia. Ou a ministra. Mas eu sou assim.

Até sempre, camaradas!

segunda-feira, dezembro 08, 2008

REGRESSO DO CÍRCULO GELADO

Às vezes, vale a pena sentirmo-nos mortos e enterrados.
Mortos, por exemplo, para alguém que nos é querido.
Apenas para podermos ter o prazer da ressurreição. Apenas para termos o prazer de descobrir que nos julgávamos mortos mas não estávamos, nos pensávamos esquecidos mas não nos haviam realmente esquecido.
O túmulo é frio. O inferno não tem chamas, é também frio, é gélido.
Acordar, porém, é sempre suave.
Sou Lázaro, venho do círculo mais gelado do inferno; estou vivo: sei do que falo.

sábado, dezembro 06, 2008

PIRIQUITO & BANANA

Chego à creche pisando já a hora-limite para os pais levarem dali os filhos: aquela hora tardia em que as educadoras, esgotadas, desgrenhadas, devolvem as crianças, com um sorriso de circunstância, pensando certamente para os seus botões «Vocês é que os fazem, nós é que os aturamos!», com a mente fixa na banheira de água quente que as espera no lar.

Vou nervoso: antecipo a forma como, entrando na sala, a Daisy, como de costume, fará ostensivamente questão de me desobedecer, fugindo-me enquanto a persigo para a enfiar num sobretudo castanho escuro, desarrumando os tabuleiros de jogos que as senhoras já haviam conseguido arrumar, exigindo bolachas...

É, de facto, o que sucede. Quero impor-me. Pelo menos ali, aos olhos delas. Inicio a minha perseguição. Uma jovem Auxiliar tenta intrometer-se duas, três vezes. Diz-me algo. Ignoro-a rudemente. Tento, com um sucesso mais do que duvidoso, mostrar-lhe que a Daisy não fará hoje de mim gato-sapato. (Interiormente, sopro «miau», sentindo-me, na minha dimensão de «sapato», com os nervos completamente desatados...)

Finalmente, percebo o que a Auxiliar, que não desarma, tem para me dizer, fingindo, retoricamente, que fala para a menina:
- Então, Daisy? Já disseste ao papá quem é que vai hoje para casa com vocês?
Por alguma razão, mesmo a um homem de cinquenta e um anos como eu, habituado a ter passado pelos episódios mais surrealistas do mundo, aquela pergunta soa horrorosamente bizarra, preocupantemente bizarra. Não consigo evitar que a imaginação dispare. Vai alguém connosco para casa?! Um psicólogo, para avaliar se somos os responsáveis pelo comportamento da criança? E se for um psicólogo - perturba-se a minha mente culpabilizada -, que deveremos fazer? Oferecer-lhe de jantar? Dormirá em nossa casa? Fica uma semana? Podemos recusar...?

Daisy explica:
- Os capaínhos, pai. Os capaínhos!
Os capaínhos vão, portanto, connosco hoje. Para nossa casa. Devo preocupar-me? É que não sei quem sejam os capaínhos. Uma família carenciada, por estarmos próximos do Natal?

Os capaínhos, claro, são os passarinhos. Como castigo por ter chegado hoje tão tarde? Ah, não! Toca a vez a cada um dos meninos: ali estão dois passarinhos azuis numa gaiola branca. É a vez da Daisy.

A minha filha insiste em levá-los. Não pode com a gaiola. Bate com ela ruidosamente no chão. Contra as paredes. Os piu-pius nem piam.
Tento impor-me:
- Eu levo, Daisy, eu levo. Olha que os matas!
- Nããããããããão! Nãããããããããão! A mim, a mim, a mim!
Bem, então levamo-los os dois, pode ser? A meias. Esforço-me por pôr em prática o meu plano. Mas a gaiola vai muito inclinada, e tem de ir, a não ser que eu marche de gatas ou completamente dobrado até ao carro.
Digo para a Auxiliar:
- Bem, boa noite. Até segunda!
Responde-me, triunfante:
- Feriado! Até terça, até terça!

Lá vamos, Daisy e eu, com os passarinhos aos trambolhões, tentando não falhar uma parede.
Pergunto:
- E como se chamam eles, Daisy?
- Piquitito e Banana!
Desconfio que não. Mas, pelo menos até terça-feira, a todos os seus tormentos terão de acrescentar este, ainda: chamar-lhes-emos Piriquito e Banana!

sexta-feira, dezembro 05, 2008

POR MIM, NÃO POSSO COM PESSOAS ENCANTADORAS!

Há pessoas assim: algo no seu olhar, no seu sorriso, no todo da sua disposição irradia uma luz permanente; é ao que se chama «encantamento». Elas são, inegavelmente, encantadoras.

Mas quando as conhecemos um poucochinho melhor que seja, percebemos que, precisamente porque se habituaram a encantar, porque se habituaram a que os outros reajam à sua simples presença tornando-se-lhes ilimitadamente prestáveis, porque se habituaram a que ninguém lhes resista - tendem a sentir como um privilégio que concedem aos demais, consentir que estes as sirvam.

E os outros babam-se quando os «encantadores» os usam.

Os encantadores são pessoas que perdem a noção e a medida do que pedem: tudo lhes parece natural. Que haja quem se esforce, quem os substitua, quem, em prejuízo próprio, faça por eles o que lhes competiria.

Não sentem o sacrifício dos outros. Consideram, tácitamente e com ligeireza, que, por elas, todo o sacrifício tem de ser tomado como uma espécie de prazer. Um sorriso pagará tudo. Como o sol que, por ser quem é, sem demasiado trabalho, ilumina o mundo.

Os não-encantadores, como a ministra da Educação e eu mesmo, têm alguma dor de cotovelo. A ministra, que exige arrogante e asperamente, sem olhar a meios, e se mostra perplexa com a saraivada de manifes, greves e ovos com os quais lhe respondem, e eu, que não tenho coragem de pedir, quer porque «pedir» me humilha, quer porque sinto que mereço pouco da vida - lá está o meu lado Kalimero - ficamos, no fundo, espantados por termos de trabalhar tanto (mesmo se trabalhando pessimamente, como no caso da Dona Lurdes Rodrigues) para conseguir o mínimo ou para desconseguir de todo o que ambicionávamos...

Os encantadores, por seu lado, fazem cursos sem precisar de trabalhar!

terça-feira, dezembro 02, 2008

TESTEMUNHA À CHUVA

Ia eu no meu veículo, durante uma noite gelada de Dezembro, sob uma chuva que os limpa para-brisas insistiam debalde em extrair do meu campo de visão, quando, por um breve lapso de tempo, me pareceu ver uma série de vultos, ao abrigo de uma paragem de autocarro, entretidos numa operação frenética e bizarra.

Como eu avançava devagar, muito devagar, à medida que o carro se aproximava pude reparar que eram dois indivíduos, talvez um homem e uma mulher, e que se debruçavam sobre o banco, como se o limpassem. Havia, aos pés deles, um outro vulto estendido, comprido.

Foi pouco tempo; o meu carro, vagaroso ou não, prosseguiu o seu caminho.

Aquilo soava estranho, no entanto; de uma inquietante estranheza: estranho porque a chuva era tão intensa, que o banco da paragem estava obviamente molhado. Por que limpariam eles um banco encharcado, sob uma chuva que continuava caindo torrencialmente? Parecia ridículo. Não fazia sentido.

Depois, pensei melhor: só se estivessem tentando eliminar algum vestígio que a chuva não varresse por completo. Sangue...? Manchas de sangue já seco, incrustadas no banco metálico, que nenhum temporal poderia apagar?
Talvez então - continuei pensando enquanto, ridiculamente, a música dos Abba roufinhava no meu rádio -, aquele volume comprido, a seus pés, fosse um corpo? Ou (demasiado cilíndrico para ser um corpo humano), se tratasse de um tapete enrolado, no interior do qual tivessem enfiado o corpo de que se queriam livrar?