quinta-feira, janeiro 22, 2009

E O QUÊ ACERCA DA VIDA ANTES DA VIDA?!

Talvez precisamente porque não creio em reencarnação, consigo ver tão precisamente quem fui (ou poderia - ou deveria - ter sido) numa anterior existência.

Não tenho dúvidas de que já era um homem; a minha alma, por muito feminina que seja, é certamente, em qualquer uma das suas vidas, uma alma de homem. (E sou franco: não creio que uma alma de mulher pudesse alguma vez ser assim tão feminina...)

Sei que morri cedo. No máximo, no princípio dos anos vinte. Não teria mais de quarenta anos.

O que retenho com mais nitidez é o meu escritório dessa outra vida. Curiosamente, parece-me uma antítese do meu actual isto a que pomposamente chamo, às vezes, escritório.

Vejo livros, mas não destes que hoje possuo, com a capa em cartolina (livros que, numa livraria que é prudente não mencionar, mas cujo nome obterão por uma sábia mistura de «Bolhão» - como em Mercado do Bolhão - com «rosa», livrous que vou aí desrespeitosamente trocando por livros novos, agora que descobri que é possível fazê-lo sem que me levantem quaisquer problemas, mesmo sem qualquer tipo de talão): os que eu lia então eram livros muito bem encadernados; vejo-me, por exemplo, abrindo um e soltando no ar partículas de poeira que bailam num foco de luz que me entra por uma janela alta.

A minha secretária, algures, não podia senão ser em mogno. Vejo, sobre ela, canetas de aparo e tinteiro. Vejo um mata-borrão delicioso, daqueles em forma de gôndola, com uma pega, que se fazem balançar para a frente e para trás sobre a tinta ainda húmida.

Também vejo no chão, algures, um globo gigante. Há quadros. Há gravuras.

Não uso nunca chapéu, contra as convenções sociais. Mas tenho uns sapatos com arabescos pontilhados.

Penteio-me para trás, com a devida brilhantina. Não creio que fosse míope. (Se hoje o sou, não se trata de uma miopia da alma, mas do corpo que nesta vida se me atribuiu. Mas não me queixo...)

Algum médico me terá convidado, nessa vida, a tornar mais raras as minhas visitas ao escritório, indicação que clara e imprudentemente ignoro: suponho que o pó dos livros me não fizesse bem. Sofria, naturalmente, de qualquer coisa nos pulmões.

Devo ter morrido afogado: não vejo nenhuma outra razão para a ideia de afogamento me impressionar tanto; nem para não ter sido capaz, sequer, de aprender a nadar. Poderiam chamar-lhe «mariquice». Eu acho que estaria ligado a uma tragédia em outra encarnação.

Tirando, é claro, o pormenorzinho de que não creio em nada disto.

E que nada disto interesserá menormente aos meus leitores...

1 comentário:

zorbas disse...

Isto da reencarnação é como a história das bruxas: eu não acredito nelas, mas que as há, é uma evidência.
Tendo eu já vivido algumas(o problema é que não sei quantas) das minhas sete vidas, encontro nos meus gostos e medos constantes evidências dessas vidas passadas. Tenho até por hábito, quando furioso, lançar o que para mim é a pior das maldições, que começa sempre assim:"Vais ver! Na próxima encarnação vais ser..." Claro que é o extremo do desespero porque eu, nesta encarnação, nada mais posso fazer naquele momento. Acautelem-se e não me irritem porque, já sabem, na próxima encarnação as coisas vão ser diferentes...