quinta-feira, janeiro 22, 2009

UM PROJECTO FABULOSO

Incontornável em tantas das minhas estórias, Dudu, extremoso filho meu, vai mostrando parecer-se cada vez mais comigo quando tinha a sua idade.

Se não, vejamos:

Teve uma excelente ideia para um trabalho em Educação Tecnológica: conceber e fabricar um carrinho de rolamentos; depois, esqueceu-se do assunto. Precisava de rolamentos, mas não voltou a pensar nisso; precisava de madeira, mas nunca mais se lembrou - a não ser na véspera da aula, à noite, quando arrumava a mochila.

Não digo que se pareça comigo no facto de haver tido uma ideia brilhante. Admito que, aí, possa sair à mãe; mas sai certamente a mim no pormenor de não se ter voltado a lembrar, de se haver esquecido completamente, a não ser, por acaso, na noite anterior à aula.

Perguntou à mãe: «Trouxeste-me rolamentos?». Também aí reconheço algo de meu: não tendo feito nada pelo seu projecto, esperar que, pelo menos, alguém possa arcar com as culpas. A mãe, que não fora avisada, respondeu-lhe que não tinha nenhuma loja de rolamentos. Houve choro.



Na ausência e na impossibilidade de fazer aparecer de um dia para o outro as mafaldadas peças, haveria a possibilidade de, para ele não se confrontar com o professor de mãos vazias, levar, ao menos, madeira. Mas que madeira???

Tentou tudo: perguntou-me se podia ser uma estante, uma porta velha, uma cadeira. Não. Não. Também não. Houve choro.



Zangámo-nos todos. Aproveitámos para nos mostrar didácticos, recordando-lhe que era muito bem feito, que aprendesse com os seus próprios erros, que, para a próxima, já sabia.

Adormeceu soluçando.

De manhã (dia de ser eu a levar as duas crianças, os inefáveis Dudu e Daisy, às respectivas escolas), acordo e sou posto perante a hipótese de se ir pedir ao vizinho uma das muitas madeiras que ele colecciona num espaço ao lado de sua casa. Não é que a ideia seja má, pelo contrário: é que o vizinho em causa, que hei-de já ter por aqui mencionado em anteriores posts, é um de óculos grossos e barba cerrada, alentejano de má catadura, que se intitula a si próprio «uma espécie de administrador da rua» e que, a esse título, vai criando conflitos com a restante vizinhança. Há que continuar a ser didáctico com o meu filho. Tenho, pois, de dizer-lhe:
- Vai lá tu falar com ele, então!
O Dudu quase cai de quatro. «Não vais tu, pai?!». Não, e tal, faz parte da lição de vida que tem estado a receber, e tal, ele é que se esqueceu de tudo e, portanto, a ele é que cabe patati-patatá.
- Mas não podemos ir juntos, pai?
Hesito. Mas a imagem do vizinho vem-me à cabeça: óculos grossos, barba cerrada, má catadura. Ná, há que ser didáctico: faz parte da lição de vida desenrascar-se sozinho das alhadas em que se meteu por causa da sua imaturidade, e tal...

Tudo isto sempre sob uma chuva abundante. (Talvez as tábuas do vizinho lhe servissem para construir uma nova Arca de Noé...). Pego na Daisy, levo-a para o carro, encho-a de cintos que ela vai desatando.
Vejo que Dudu arrasta uma pesada tábua. Não é uma tábua, é um estrado.
- Falaste com o vizinho?
- Não. Toquei, mas ele não atende. Falamos depois, não é?
Aquele «falamos» não me agrada. Entretanto, onde enfiar o estrado? Tento na bagageira: não cabe! Está ensopadíssimo, é pesadíssimo, enorme, quase maior do que a totalidade do carro.
Tentamos enfiá-lo dentro do veículo. Dudu e Daisy, sentados atrás, vêem os meus esforços e ouvem os meus palavrões no exercício de, à chuva, colocar o estrado lá atrás, entre o banco deles e os bancos da frente, aos seus pés...
Daisy chora.

Arrancamos vagarosamente. Não os vejo. No meu espelho retrovisor não cabe senão um enorme estrado de madeira, uma pesada fronteira que nos separa.

Chegamos à escola de Dudu. Ele arrasta-se com o estrado lá para dentro. Não o posso ajudar, visto que isso me obrigaria a deixar sozinha a Daisy. Observo o minúsculo petiz, à chuva, derreado ao peso de um monstro, iniciando as explicações à desconfiadíssima porteira. Atrás de mim, carros enervados de pais que largam os seus rebentos e querem partir de imediato para os respectivos serviços, buzinam-me. Dudu desapareceu no interior da escola. Mas eu não posso arrancar porque a mochila dele jaz no automóvel. E, uma vez mais, não posso ir em sua busca porque isso significaria deixar a Daisy sozinha, ou carregar com ela à chuva por uma busca aventureira.
Daisy chora, de novo, do carro.
A mochila chora pelo dono.
Eu próprio estou com vontade de chorar.
O céu ainda não parou de chorar...

Mas eis que se aproxima, sorridente, sob um chapéu magnífico, uma amiga que é professora naquela escola. Vem para me cumprimentar - mas eu, malcriadamente, penduro-lhe a mochila na mão, explicando-lhe que...

São agora vinte e uma horas e trinta e um minutos. É verdade, esqueci-me de falar ao vizinho. Bolas!

Amanhã eu... (hmmm... óculos grossos, barba cerrada, má cat...)... Se calhar, amanhã peço ao Dudu que lhe vá explicar a situação. Para ver se o miudo aprende o que custa a vida!

3 comentários:

zorbas disse...

Isto de educar os filhos, às vezes, até dá medo. Inúmeros medos: se fizémos bem, se devíamos ter feito de outro modo ou, pura e simplesmente, se não devíamos ter feito nada (esta dupla negativa também me enche de receios)

lara_1012 disse...

Quem te escreve não é a ANGEL mas a amiga que mencionaste simpaticamente no post. Como surge este comentário? Bem em conversa alegre com esta amiga perguntei pelos colegas de Linda-a-Velha e surgiu a tua pessoa. Contei a história da mochila e ela lembrou-se que havia este teu post!! Divinal ser referida em tal façanha matinal do Dudu, da Daisy e tua!!
Amigo, estarei até Julho à disposição para qualquer outra ajuda!!
E já agora informo que adoro o Dudu que quando se cruza comigo estabelecemos o seguinte diálogo:
- Bom dia Duarte! Tudo bem?
- Olá bom dia. Tudo bem e com a "senhora"? - responde ele!!

lara_1012 disse...

Quem te escreve não é a ANGEL mas a amiga que mencionaste simpaticamente no post. Como surge este comentário? Bem em conversa alegre com esta amiga perguntei pelos colegas de Linda-a-Velha e surgiu a tua pessoa. Contei a história da mochila e ela lembrou-se que havia este teu post!! Divinal ser referida em tal façanha matinal do Dudu, da Daisy e tua!!
Amigo, estarei até Julho à disposição para qualquer outra ajuda!!
E já agora informo que adoro o Dudu que quando se cruza comigo estabelecemos o seguinte diálogo:
- Bom dia Duarte! Tudo bem?
- Olá bom dia. Tudo bem e com a "senhora"? - responde ele!!