sexta-feira, novembro 30, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. PRIMEIRO CAPÍTULO DE UM PEQUENO CONTO GÓTICO (para o caso de não perceberem imediatamente)

No seu snobismo característico, James B. Lawford mostrava sempre um certo enfado pelo modo como Mrs. Miriam se apoderava do filho dele, rapaz inteligente e vivo, muito bom aluno, para o levar a "estudar com o" - isto era um eufemismo: tratava-se, na verdade, de "dar explicações ao" - seu [dela] filho adoptivo, um moço distraído, triste, sujo e mau aluno.
J.B.Lawford tinha dificuldade em responder, à pobre senhora, com uma recusa peremptória, sobretudo quando ela entoava, numa espécie de melopeia, aquelas palavras do costume: «Desculpe, desculpe, o senhor desculpe»; mas que os meninos eram «tão amiguinhos...», e nhã-nhã-nhã-nhã. (A expressão «amiguinhos», a propósito do seu filho e da outra criança, exasperava-o, mas ia acenando com a cabeça num gesto monótono que, todavia, a não calava). Para além do mais, havia os pastelinhos. Leo Lawford, o filho de James, trazia invariavelmente das sessões de estudo, umas caixas carregadas de pastelinhos.

Às vezes, a sessão prolongava-se: era já noite cerrada, em pleno Inverno, e Leo ainda não tinha voltado para casa.
E, uma vez, James Lawford decidiu mesmo vestir o sobretudo, pôr o cachecol, um chapéu, luvas, meter-se no seu automóvel e dirigir-se, sob uma chuva inquieta, amarelecida num cone de luz projectada pelos faróis, até à casa de Mrs. Miriam.
Era uma casa muito velha, antiga, em que mal se reparava, durante o dia, mas que, à noite, no escuro, sob a toalha da água dos céus, se tornava lúgubre, cheia de sombras e tristeza, evocando sinais da passagem da morte e violências inconfessáveis.
Estacionou, esperando que vissem, de alguma janela, o automóvel expectante. Mantinha os faróis ligados contra a escuridão, molhando a luz ténue na chuva. Mas Leo não aparecia. Ninguém aparecia.
Buzinou.
E numa janela pequena, de um primeiro andar iluminado por alguma vela, surgiu um vulto.
Fez sinais de luzes. Abriu a porta do carro, lançou a cabeça de fora, gritando quase desesperadamente para o ar impregnado do ruído da água:
- Sou eu! O pai de Leo!
Mas nada. O vulto não reagia. Foi só um ou dois segundos depois, à luz de um relâmpago que se despenhou do céu negro (uau! Estou estarrecido comigo) que James se apercebeu de que não se tratava nem de Mrs. Miriam, nem de um dos rapazes, mas de um homem - ou de um cadáver: branco, anguloso, magro, envolto em sombra, esculpido por sombras.

(CONTINUA)

domingo, novembro 25, 2007

UMA SALVADORA INSIGNIFICÂNCIA

Fora, não ainda há muitos anos, o melhor vendedor da marca: talvez em Portugal e «quiçá» - como o seu chefe gostava de empregar, fungando abundantemente, na sua sempiterna constipação -, «quiçá» na Europa inteira!

Mas tudo muda. (Não vejam aqui um lugar comum: é uma inquestionável verdade!). A mulher saíra de casa, fugindo («fugindo» será força de expressão: não consta que saísse a correr...) com um talhante, e Jordão Silveira nunca mais se reerguera. Dos seus tempos de melhor vendedor, «quiçá» da Europa, não lhe restavam, hoje, senão a raiva e os ressentimentos dos colegas, que sempre o haviam invejado, mas com respeito, e agora se vingavam do seu passado, da sua superioridade de tantos anos, desrespeitando-o declaradamente...

Um vendedor como Jordão Silveira, batalhando duramente ao longo de quase 24 horas, mas não tendo ninguém com quem pudesse partilhar um pique-nique, uma soirée, uma viagem, ninguém com quem nada de nada, tendia a desleixar-se: primeiro, nem valia a pena ir a casa jantar; depois, deixara de tomar banho, ficando-se com o cabelo gorduroso, criando caspa nas golas, sujidade nas unhas. O desleixo infiltrava-se, invadia a sua pessoa e o seu apartamento, com jornais espalhados pelo chão e latas rolando entre pratos cheios de restos, e quantidades de repugnantes maçãs roídas e abandonadas, que são, por si só, uma imagem forte da degradação; e tudo isto coincidia, de facto, com a degradação nas vendas: Jordão Silveira tornava-se, «quiçá», o pior vendedor da Europa.

Às vezes, para se não sentir só, passava a noite no luminoso hall do Casino Estoril. Por ali perambulava, com um copinho entre as mãos, mirando os cartazes, alienando-se nos passantes e no ruído constante, até que se sentava, de perna cruzada, num dos sofás mais confortáveis, e se preparava para dormir três ou quatro horas. Pelas cinco da manhã, despertava. Fazia a barba e lavava sumariamente o rosto e as axilas na casa de banho. A seguir, partia para o trabalho e para a troça dos colegas, adormecendo várias vezes durante o dia, vendendo pouco e perdendo os melhores clientes.

Mas, vamos a mais um lugar comum, há, para cada pessoa, um ponto de rotura, um limite do suportável.
Um dia, Jordão acordou com a sensação de que tocara nesse ponto. Não se dirigiu ao seu serviço. Ao invés, entrou num prédio alto, subiu as escadas, arfando a cada novo degrau, enojado de si, ferido pelo seu ponto de rotura, obcecado pela ideia única de nunca mais voltar a querer ter ideias, nem esperanças, nem desejos, nem vendas, nem nada.

Ao chegar ao quinto andar, deparou com um relógio que o fitava de uma parede. Era um relógio redondo, como devia existir, embora não tivesse reparado em nenhum até esse momento, um por andar.
Mas, mais do que tudo, os ponteiros desenhavam, sob o vidro abaulado, as 11.11: onze horas e onze minutos.

Jordão Silveira teve um estremecimento: como se um número tão exacto, tão repetitivo, tão cheio de «uns», fosse um chamamento das profundezas do universo, um gesto apaziaguador dos deuses, ou de Deus, ou de quem quer que estivesse sentado ao controlo. Como se fosse uma piscadela de olho. Como se fosse uma expressão de cumplicidade.

Logo a seguir, porém, a força do seu azar, da sua imperfeição, do seu cansaço, da contínua degradação da sua vida, da sua tristeza, da sua angústia, do seu mal-estar, a força do limite que atingira e de onde lhe não apetecia continuar a cair (a não ser que se tratasse de cair, literalmente, do prédio abaixo ou da vida para fora) reapossou-se de si e estilhaçou aquele breve momento de quase-paz. Continuou, pois, a subir. Esquecido, logo nos degraus seguintes, daquela comunhão matemática...

Foi quando chegou ao terraço, e se aproximou do muro, com o cabelo agitado por ventanias várias, que se lembrou e, num gesto de derradeira curiosidade, olhou para o relógio de pulso. E, ali, no seu relógio, viu marcadas 11.10. Mas, imediatamente após, como um atrevimento do destino, 11.11.

Por alguma razão, portanto, ou porque o relógio do prédio estivesse adiantado, ou porque o seu relógio se atrasara, tudo ocorria como se os deuses lhe tivessem oferecido um minuto de vida.

Não podia desperdiçá-lo. Não podia ser ingrato a esse ponto. Não tinha o direito de jogar fora a divina oferenda, o minuto miraculoso, jogando-se fora a si próprio. Havia, já não uma coincidência, mas uma dupla coincidência. Uma dupla coincidência não poderia ser mera coincidência. Sentiu lágrimas nos olhos. Talvez as coisas melhorassem. Talvez a mulher regressasse. Talvez principiasse a vender. Sentiu lágrimas nos olhos. (Olha, já tinha escrito isto!). Há insignificâncias maravilhosas, não há?

Nota: demorou mais de dez minutos a descer a escadaria. Mas não reparou nisso!

quinta-feira, novembro 22, 2007

ESCOLA SECUNDÁRIA DE JOSÉ LUCAS

Costuma dizer-se que a memória é curta. Que há alguma hipocrisia no modo como, em face da morte de alguém, se esquece tudo - as zangas, os ressentimentos, os azedumes, os defeitos - para que, de tudo o que era a pessoa que morreu, não restem senão os traços bons, não fique senão um resumo lembrável.

Mas eu penso que não. Que não há, nisto, qualquer hipocrisia. Que, simplesmente, sob a lente crua - e cruel - da morte, tudo se transforma e adquire novas proporções; e a existência humana, subitamente revelada na sua tremenda fragilidade, não possa aguentar nada mais para além daquilo que realmente vale a pena: para quê preocuparmo-nos com as ninharias e as insignificâncias, se o tempo é pouco e, no pouco tempo que nos é dado, há coisas tão belas, tão boas - essenciais?

Na morte de Lucas, o que fica na memória de milhares de pessoas é demasiado grande. Já não há espaço para pormenores. E mesmo as zangas, se as houve, ou as ofensas, se as queremos recordar, tornam-se momentos humanos, mais ou menos dolorosos, que serviram para fortalecer laços e dar um rumo singular à relação. Digo-o porque sei que, no seu posto de Presidente, ao longo de tantos anos, com a «insegura teimosia» e aquela necessidade absoluta de consensos - a que se refere a minha colega Elisa Costa Pinto, num dos textos mais bonitos que eu já li sobre a saudade perante a morte de um amigo... -, Lucas terá cutucado onças, exasperado amigos da onça, discutido, com ou sem razão, e voltado bruscamente as costas. Mas que interessa?

Em Lucas, precisamente, a amizade, a generosidade, a solidariedade, o medo de incomodar (que o fez ser tão discreto e secreto até em relação ao seu mal), o riso, o sorriso, os gestos - que o filho refaz numa semelhança assombrosa, ligeiramente perturbadora -, até a dicção trapalhona, a alegria e a tristeza, o cuidado com os outros, a preocupação com todos, e o amor pela escola, pela sua escola, como uma sua casa, vão perdurar, vão encher a escola, vão estar em cada recanto, em cada corredor, em cada lugar, no espaço inteiro: da escola e da memória de nós, os felizardos que o tivemos, que com ele convivemos!

Ouvi dizer que a eslav vai chamar-se com o seu nome.
Estou comovido. E, como professor da escola, sinto-me honrado.

Até já, Lucas.

quinta-feira, novembro 15, 2007

DICAS LITERÁRIAS (SEM PRETENSÕES)

Disse-me, um dia, o Juiz. [Mas quem é o «Juiz», perguntar-se-ão os meus raros leitores]:
«Considero de uma enorme arrogância oferecer-se livros. A mim, não me ofereçam livros!»
Suponho que, para o Juiz, não será certamente arrogância menor aconselhar-se livros.
Mas porque uma amiga e leitora assídua mo pediu, porque não existe qualquer hipótese de que o Juiz esteja entre os leitores deste blogue, porque tenho feito algumas descobertas que gostaria de partilhar, atrevo-me a este gesto pretensioso, embora, na verdade, sem a mínima pretensão.

Duas descobertas que tinha porventura a obrigação de haver feito há muitos séculos, mas que acabei de fazer, são Flannery O'Connor e Dino Buzzati.
Não há que misturá-los. Tudo os separa: o tempo, o país, o género, as referências, as preocupações. Mas se algo os une - o talento -, esse é suficientemente forte para que me refira simultaneamente a ambos.
Há outro factor. Nos dois, comecei - por mero acaso - pelos contos. Os de O'Connor, reunidos no magnífico «Um Bom Homem é Difícil de Encontrar», primam por um estilo delicioso, poético, encantatório na descrição de vidas numa América sulista e rural, onde, a cada passo, surgem os negros, os brancos pobres, as pequeníssimas proprietárias, o vendedor de bíblias, os garotos malandros, que ninguém aceita nem quer - nem mesmo os bons cristãos...! O confronto, e é sempre de de confrontos que se trata, é escalpelizado de uma forma inesperada e, sobretudo, com constantes mudanças de ângulo: ora vemos as coisas do ponto de vista desta personagem, ora de outra; todos têm razão, nenhuma tem razão - todas são compreensíveis nas sua mesquinhez ou crueldade, todas são justificáveis na sua maldade. Mesmo o mais terrível dos assassinos, que mata friamente, aparentemente sem razão.
Buzzati, por outro lado, é autor dos contos reunidos em «Pânico no Scala», onde uma dimensão de estranheza, roçando o surrealismo, está sempre presente, à espreita, abrindo insuspeitadas possibilidades em cada conto, fazendo-nos sorrir amargamente. Reencontro esta mesma atmosfera quase fantástica, sem, no entanto, se perder um esteio permanentemente realista, no seu romance que, entretanto, já comecei a ler, «O Deserto dos Tártaros»...

Para quem pensa que os «clássicos» são, essencialmente, aquelas obras de que nunca se tem a coragem de dizer: «Estou a lê-la», mas, sempre: «Estou a relê-la», é tempo de «reler», rapidamente, Gogol. Na verdade, estou a ler pela primeira vez (confesso) o seu «Contos de São Petersburgo». (Mas que tendência para os contos, observo agora). Que, aliás - para dizer realmente toda a verdade -, comprei, antes de mais, porque se tratava de uma edição de bolso, que me custou menos de sete euros. Posto isto, todos os contos são de facto maravilhosos, mas eu começaria (e comecei) por «O Nariz», verdadeira obra-prima de humor macabro, tortuoso, retorcido que, ao mesmo tempo, nos dá uma riquíssima imagem da Rússia do Século XIX e, mais concretamente, de São Petersburgo. Também o primeiro conto - «Avenida Névski» - é de um virtuosismo estilístico delirante: principia-se por nos descrever a avenida, com as suas lojas e as suas populações habituais, consoante as horas, dispersando-se cinematograficamente até ao momento em que segue uma personagem e o desenvolvimento da sua história...

sábado, novembro 10, 2007

UM DIA COM O «DENNIS THE MENACE» NO FEMININO

Oh, como odeio estes sábados em que a minha mulher trabalha, o meu filho se refugia na casa da avó, onde lhe crava revistas, bugigangas, pizzas e coca-cola para o almoço, e eu tenho de passar um dia que não tem com certeza menos do que vinte e seis horas, a sós com um adversário curiácio, um bandido que me persegue, um ser de outro planeta que me investiga minuciosamente: a minha filha de dois anos e poucos meses, que continua sem dizer uma única frase completa!

Esqueçam o duelo Sócrates/Santana.
O duelo mais tremendo dos últimos anos, é este, em que, aliás, não tenho qualquer hipótese: Papá/Daisy. Ela é o «desperado», eu sou o «desesperado»!

A sessão do almoço, sobretudo, é de antologia. Começamos bem. Eu cantarolo, enquanto lhe aqueço a sopinha, o pratinho com franguinho e massinha e, sim, nessa fase ainda acrescento um «inho» a todas as palavras. (Mais tarde, os palavrões que grito já não levarão qualquer «inho»!). A tipa observa, entre curiosa e maquiavélica, com os olhinhos castanhos a brilhar dos planos tortuosos que me esmagarão. Está encarrapitada numa cadeira elevadíssima, uma torre eiffel cheia de cintos de segurança. Sorrio-me. Coitadinha: «És tão linda!»

A primeira escaramuça, mal chega para a aquecer. Quer comer por sua mão. Sei o que isso vai significar. Oh, oh! Mas cedo imediatamente. «Leva lá a colherinha, toma lá o pratinho do ursinho».
Enfia uma colherada de sopa na boca. E zás. Acto contínuo, lança a colher ao chão. O meu sorriso é já amarelo. A voz com que a admoesto é ainda simpática, mas um ouvinte atento e perspicaz descobriria, sem dúvida, uma tremura nervosa que não augura nada de bom. Lavo a colher. Devolvo-a. Mais uma colherada. Zás. Lança novamente a colher ao chão. «Pára com isso, Margarida!» Baixo-me para apanhar a colher. Nem de propósito: é o tempo de que Margarida precisa para cuspir a sopitanga sem que eu possa intervir. Quando me aproximo, estendendo-lhe atrasada e ridiculamente a colher, percebo que fui ultrapassado: ei-la com o babete nojento, o queixo e o ombro cheios do que me parecera uma sopinha mas, agora, já não me parece senão uma pasta viscosa e alaranjada. Limpo-a. Com movimentos bruscos. Irritados. Margarida não quer mais. Eu insisto. «Uma pela avó!» - Enfia a cabeçorra entre os braços, para que eu tenha a certeza de que não há a mais pequena possibilidade de a manipular. Endireito-a à força. Pega no prato, atira-o ao chão. Berro asneiras. Os vizinhos fazem um silêncio absoluto. Margarida olha-me, com os olhos a exprimir, inequivocamente: «Boa! Estou a gostar. Qual vai ser a próxima diversão, tens mais ideias?» (Como ela, mesmo sem palavras, fala tão clara e sofisticadamente com os olhos).

Passa-me pela cabeça que toda esta agitação se deva ao cansaço da menina. Pego nela. Levo-a para a sua caminha. Vou acalmando, enquanto subo a escada. Já me imagino a ver televisão, o som muito baixo para não a acordar, os pés, em peúgas, fatigada mas confortavelmente estendidos sobre uma cadeira, cadernos do Expresso espalhados pelo chão...!

Margarida não dorme. Cansada?! Isso sim! Deito-me numa cama ao lado, esperando que perceba o que tem de fazer. Nada. Bate com os pés no gradeamento da sua caminha. Puxa pelo cordel que põe um urso a tocar uma musicata enervante. Ergue-se, olhando para mim no escuro, o branco dos olhos iluminando o quarto, as mãos apoiadas às grades. Choraminga. Decido não lhe ligar. Perigo! Margarida tenta trepar, sozinha, pelo gradeamento da cama, está já com uma das pernas quase inteiramente do outro lado. Precipito-me.

Em desespero de causa, tomo decisões: Vamos passear! Vamos à Bulhosa. Tomo um café, ofereço-me uma prenda que me anime, o livro que a minha amiga Lara Croft me recomendou. Caramba, preciso desta compensação. Recomeço a sentir-me feliz. Que poderá a miuda fazer, destruir a livraria? Eheheh! Estou eufórico. (Não é normal. Consultar o psiquiatra?!)

Coloco-a na cadeirinha do carro. Amarro-a à vida. Arrancamos.

Margarida adormece dois quarteirões depois.

Regresso a casa. Bolas!

sexta-feira, novembro 09, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - VI

Saiu do apartamento, preocupada e com alguma vergonha; desceu pela escada; espreitou, no átrio, antes de se aventurar à rua. Correu, por fim, olhando em todas as direcções, meio perdida, seguindo um mapa diferente do habitual, redesenhado em função de possíveis e súbitos esconderijos por onde pudesse desaparecer rapidamente, se necessário.

Contudo, nenhuma das situações previstas e temidas por Hermengarda viria a ocorrer. Dona Luizita e a Vizinha Maria nunca a confrontaram, nunca sequer se referiram àquele seu quase-encontro por paragens tão longínquas. Porquê? Porque esperavam vê-la regressar ao local do crime, aguardando o momento de a apanharem em flagrante (como julgou durante muito tempo, à medida que os dias passavam e ninguém lhe dizia fosse o que fosse)? Ou simplesmente porque, após confereciarem uma com a outra, teriam concluído que fora tudo um erro de Maria, uma, como se diz?, alucinação, pois não poderia realmente tratar-se de Hermangarda (como, mais tarde, aliviada, principiou a acreditar)?
Também nunca soube o que faziam as duas naquele bairro. Nunca o soube.
Tudo retomava a pavorosa forma da normalidade: a sogra entre medicamentos e cafés que enchia de açucar e mexia com uma colherinha de prata, trling, trling, trling, um ar de beatitude no rosto amarelado; Maria enfiando o nariz aguçado por todas as frinchas - «Boa tarde! Olááá! Posso entrar? Estão a comer? Não incomodo, não?».
Pior que tudo: Hermengarda, seu nome, voltou a colar-se-lhe definitivamente à pele, aos ossos, ao corpo, à alma, à vida.

Durante muito, mas muito tempo, não foi capaz de voltar ao apartamento.
Um dia, voltou. Havia pequenas mudanças na rua, no bairro, que a incomodaram. Coisas indefiníveis.
Chegou a subir - mas desceu imediatamente, claro, quando viu, à porta, um senhor de juba grisalha e uns óculos de aros muito finos. O pintor!

Não reencontrou a solidão.
«Tens sempre de acabar tão mal? Que melancolia!», sopram-me sobre o ombro, acompanhando este fim.
De vez em quando, recorda-se da sua amante. Recorda-se que, por pouco tempo, poucas vezes, a solidão foi sua. A saudade dói. Mas é diferente do que seria se não a tivesse tido nunca.
Mais: quando recorda os seus bons momentos, a sua solidão, a sua amante, dá-lhe, agora, um rosto. Uns olhos curiosos, vagamente trocistas. Um ar sábio, de alguém que tivesse visto e compreendido um segredo.
Sonha com ela, até.
É um amor perdido. Platónico.
É muito pouco. É bom.

FIM

quinta-feira, novembro 08, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - V

Teve de se segurar, numa vertigem, numa náusea, num pavor, numa aflição - sensações e sentimentos inomináveis, por muito que eu multiplique palavras em busca da mais exacta.

Naquele pouco tempo, não teria sido possível, a Maria, telefonar - digamos - para Dona Luizita, prevenindo-a de que acabara de ver a sua nora, de modo que, logo a seguir, a senhora apanhasse um transporte para se materializar quase imediatamente ali. Não: a explicação tinha de ser outra. Talvez viessem juntas, mas onde iam? Ao médico? Que raio de coincidência! A não ser... a não ser... a não ser... que a seguissem há mais tempo...? Que as suas ausências - breves e espaçadas - as pusessem de sobreaviso? Pensariam, então, mas como pensar diferentemente numa situação tão suspeita?, que Hermengarda tinha um amante. O que era indigno, insultuoso. Não tinha um amante: tinha «uma» amante. Ou uma «amante».
Olhou. Já lá não estavam. Nem uma. Nem outra. Uma visão? Uma, como se chama, como se diz, ai, uma alucinação?!
O seu olhar percorreu as ruas, a seguir foi-se elevando, numa pesquisa confusa. Embateu no prédio em frente. Embateu na janela em frente da janela onde ela se postara. E, aí, descobriu um rosto que a seguia, de uma mulher muito jovem, que sorria, mais para si própria do que para Hermengarda, talvez com curiosidade, mas, sem dúvida, também com uma chama de troça no olhar. Como se tivesse visto tudo, percebido tudo: a sua fuga, o seu medo, como um rato cercado. Como uma presa acossada. E presa.

(CONTINUA)

quarta-feira, novembro 07, 2007

HERMANGARDA E SUA AMANTE - IV

Não estava ninguém lá em baixo. Nenhuma pessoa conhecida. Maria nenhuma.
Hermangarda sabia, todavia, que se não enganara. Inexplicavelmente, num sítio onde nenhuma razão conhecida colocaria a vizinha Maria, o certo é que a vizinha Maria aparecera, e a vira! E a reconhecera...

Claro que Maria não podia estar absolutamente segura de a ter reconhecido. Ou podia? Se ela lhe falasse mais tarde no assunto, o que Hermengarda tinha de fazer era mostrar um espanto convincente:
«Eu?! No bairro tal? Não! Podia lá ser. Eu, a que propósito...?!» (A vizinha Maria não associaria o bairro ao irmão de Hermengarda. Ninguém, nem mesmo a sua sogra, soubera alguma vez onde vivera ele, com quem nunca se tinha dado.)

Sentia-se mal, uma opressão no peito, uma turvação num prazer tão claro, talvez no único autêntico prazer na sua vida. Não conseguiu relaxar. Dava voltas, sentava-se, levantava-se, mas não era capaz de deixar de ser Hermengarda. Tinha, de resto, o grito de Maria ecoando-lhe ainda nos ouvidos. «Hermengaaarda!»
Não quis mais. (E regressaria? Talvez não já para a semana, mas dali a duas ou três semanas...? Poderia voltar a ser ali feliz...? E, entretanto, o legítimo proprietário não acabaria por aparecer...?) Não suportava nem mais um minuto daquela angústia. Ao fim de dez minutos, se tanto, preparou-se para se ir embora. Pegou na mala e espreitou pela janela, oculta, discreta, quieta.
E viu-a. Ou melhor, viu-as. Maria e sua sogra, lá em baixo. Maria apontava o dedo numa vaga direcção.

(CONTINUA)

domingo, novembro 04, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - III

Tornava-se um vício.
Nunca ia mais do que uma vez por semana, encurtando o tempo destinado às compras.
E nunca ficava mais do que uma hora; chegou a levar despertador que a arrancasse ao seu torpor, à sua paz, ao seu namoro consigo, ou melhor, com a sua almejada solidão.

Até ao dia em que, prestes a entrar para o prédio, ouviu chamar por si. Pelo horroroso «Hermengarda!». Não enfrentou o chamamento, mas olhou de soslaio, vagamente, incertamente, a fingir que não, escondendo-se um pouco entre umas colunas. E topou Maria, uma vizinha sua, que a perdera um pouco de vista mas a procurava, certa de que se não enganara. Que raio faria ali Maria? O seu médico seria para aqueles lados? Doente, sempre muito doente, com a respiração fraca, os pulmões enfermiços, o olhar de cão abandonado, eterna pedinte de umas migalhas de afeição, colando-se às pessoas, aparecendo-lhe em casa, como por acaso, sempre que lhe cheirava a algum jantar de amigos, a alguma festita de anos, Maria era uma pessoa de quem a sua sogra gostava muito, e que convidava amiúde, mas para quem Hermengarda não tinha paciência...
Aproveitou o ar desnorteado da mulher, aquele minuto em que ela a perdera de vista e entrou no prédio. Subiu pela escada, como de costume. (Mais discreta, menos passível de encontros indesejáveis do que o elevador...). Abriu a porta do seu reduto, do seu minúsculo antro, acercou-se da janela, meio escondida pelo cortinado velho, com o olhar em busca de Maria, lá em baixo...

(CONTINUA)

sábado, novembro 03, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE II

Ou talvez não, talvez não fosse assim uma ideia tão perversa. Simplesmente entrar, sentar-se e repousar. Mais nada. Uma meia hora sem ouvir Dona Luizita, um tempo esquecendo-se de que se chamava Hermengarda, namorando a sua preciosa e interdita solidão.
Mas não foi nesse dia. Estivera quase, mas não...
Nem no dia seguinte.
Mas no outro, as mãos tremiam-lhe como se perpetrasse o pior dos crimes, ao tentar penetrar com a chave na fechadura. E o coração batia-lhe descompassadamente. E teve, uma vez entrando, de ficar quase um minuto encostada à porta, respirando fundo, para se acalmar. E não se deixou ficar senão um quartito de hora, e sem prazer, sem qualquer prazer naquela espécie de encontro fortuito com nada nem ninguém.

Foi num outro dia, ainda, que se deixou estar uma hora. Uma hora! E se, ao princípio, existia naquele gesto qualquer coisa de uma violação, de uma transgressão que a magoava até aos ossos, como se, mais do que a criminosa, fosse a vítima, aos poucos foi-se abandonando, deixando de estar tão agudamente consciente do lado doentio e malévolo do seu acto, do lado proibido, para se deixar tombar - é a palavra - num esquecimento tépido, como se estivesse numa banheira cheia de água: já nem se chamava Hermengarda, já nem havia uma sogra, já nem ruído lá fora, já nem peso, já nem ser, já nem coisa nenhuma, já nada senão a solidão que se unia a ela, a completava, a transformava...

(CONTINUA)

quinta-feira, novembro 01, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - I

Dois erros haviam ocupado, por inteiro, a vida de Hermengarda.
Um, era o seu nome. Não é possível fugir-se a um nome de que se não gosta. Está em todo o lado, suavizado pelas vozes dos que amamos (e não imaginam o mal que nos fazem) ou atirado contra os nossos ouvidos pelas vozes dos outros, ou nas cartas, nos documentos oficiais, nos cheques que assinamos. Mesmo dormindo, mesmo nos sonhos, uma Hermengarda não deixa de ser uma Hermengarda.
O outro, era a sua sogra. Dona Luizita não era idosa - não teria mais do que sessenta e poucos anos -, mas comportava-se como tal, sempre muito queixosa, muito rodeada de medicamentos, muito sem fazer coisa alguma e, sobretudo, muito esperando, e exigindo, que Hermengarda lhe fizesse tudo. Viviam juntos, como um país com excesso de população, sua sogra, seu marido, seu horroroso nome e ela.

Hermengarda tinha um amante. Ou, melhor, «uma» amante. Mas não nos precipitemos. A sua amante era a solidão. E era uma amante, aliás, com quem pouco se cruzava. Em casa, sobretudo, a solidão não era visita frequente, porque Dona Luizita nunca dali despegava, enchendo-se de cafés.
«Isso não lhe faz mal, Dona Luizita?», perguntava-lhe.
Para o que existiam duas respostas possíveis. De resto, contrárias, mas ambas típicas da senhora, ora uma,ora outra, consoante a sua disposição:
a) «Faz. Mas é o meu único consolo, filha. É o prazer que tenho nesta vida...»
b) «Não faz, faz agora! Este café feito em casa não é como as bicas lá fora. Isto não tem nada, é uma água preta...»

Mas um dia, por um bizarro acaso do destino que é a fantasia destravada do autor desta história, calhou a Hermengarda, passando pelo estúdio onde vivera o seu irmão até emigrar, havia cerca de um mês, perceber que esse estúdio, um mero T-zero num bairro-dormitório, ainda não fora ocupado pelo senhor pintor que o comprara. Não teve dúvidas: a desocupação notava-se do exterior; tudo nas janelas, na varanda, cheirava a desabitação; mas chegou a perguntar: «Já mora alguém no 1-L, e tal» e, no cafezito da Dona Tina, entre galões e uma torrada, soube tudo, que o senhor Alfredo começara a transportar as suas telas, os seus pincéis, as tintas, a tralha, mas só dali a um mês faria a mudança definitiva. Pois já captaram, não captaram? Hermengarda trazia, no seu porta-chaves, a chave do apartamentozito, que, na altura em que o seu irmão lá morava, ela mesma se encarregava de limpar uma, duas vezes por semana. De modo que não levou mais do que um instante a tomar conta da sua mente, a mais absurda, perversa, tremenda, imoral das ideias...

(CONTINUA)