domingo, novembro 25, 2007

UMA SALVADORA INSIGNIFICÂNCIA

Fora, não ainda há muitos anos, o melhor vendedor da marca: talvez em Portugal e «quiçá» - como o seu chefe gostava de empregar, fungando abundantemente, na sua sempiterna constipação -, «quiçá» na Europa inteira!

Mas tudo muda. (Não vejam aqui um lugar comum: é uma inquestionável verdade!). A mulher saíra de casa, fugindo («fugindo» será força de expressão: não consta que saísse a correr...) com um talhante, e Jordão Silveira nunca mais se reerguera. Dos seus tempos de melhor vendedor, «quiçá» da Europa, não lhe restavam, hoje, senão a raiva e os ressentimentos dos colegas, que sempre o haviam invejado, mas com respeito, e agora se vingavam do seu passado, da sua superioridade de tantos anos, desrespeitando-o declaradamente...

Um vendedor como Jordão Silveira, batalhando duramente ao longo de quase 24 horas, mas não tendo ninguém com quem pudesse partilhar um pique-nique, uma soirée, uma viagem, ninguém com quem nada de nada, tendia a desleixar-se: primeiro, nem valia a pena ir a casa jantar; depois, deixara de tomar banho, ficando-se com o cabelo gorduroso, criando caspa nas golas, sujidade nas unhas. O desleixo infiltrava-se, invadia a sua pessoa e o seu apartamento, com jornais espalhados pelo chão e latas rolando entre pratos cheios de restos, e quantidades de repugnantes maçãs roídas e abandonadas, que são, por si só, uma imagem forte da degradação; e tudo isto coincidia, de facto, com a degradação nas vendas: Jordão Silveira tornava-se, «quiçá», o pior vendedor da Europa.

Às vezes, para se não sentir só, passava a noite no luminoso hall do Casino Estoril. Por ali perambulava, com um copinho entre as mãos, mirando os cartazes, alienando-se nos passantes e no ruído constante, até que se sentava, de perna cruzada, num dos sofás mais confortáveis, e se preparava para dormir três ou quatro horas. Pelas cinco da manhã, despertava. Fazia a barba e lavava sumariamente o rosto e as axilas na casa de banho. A seguir, partia para o trabalho e para a troça dos colegas, adormecendo várias vezes durante o dia, vendendo pouco e perdendo os melhores clientes.

Mas, vamos a mais um lugar comum, há, para cada pessoa, um ponto de rotura, um limite do suportável.
Um dia, Jordão acordou com a sensação de que tocara nesse ponto. Não se dirigiu ao seu serviço. Ao invés, entrou num prédio alto, subiu as escadas, arfando a cada novo degrau, enojado de si, ferido pelo seu ponto de rotura, obcecado pela ideia única de nunca mais voltar a querer ter ideias, nem esperanças, nem desejos, nem vendas, nem nada.

Ao chegar ao quinto andar, deparou com um relógio que o fitava de uma parede. Era um relógio redondo, como devia existir, embora não tivesse reparado em nenhum até esse momento, um por andar.
Mas, mais do que tudo, os ponteiros desenhavam, sob o vidro abaulado, as 11.11: onze horas e onze minutos.

Jordão Silveira teve um estremecimento: como se um número tão exacto, tão repetitivo, tão cheio de «uns», fosse um chamamento das profundezas do universo, um gesto apaziaguador dos deuses, ou de Deus, ou de quem quer que estivesse sentado ao controlo. Como se fosse uma piscadela de olho. Como se fosse uma expressão de cumplicidade.

Logo a seguir, porém, a força do seu azar, da sua imperfeição, do seu cansaço, da contínua degradação da sua vida, da sua tristeza, da sua angústia, do seu mal-estar, a força do limite que atingira e de onde lhe não apetecia continuar a cair (a não ser que se tratasse de cair, literalmente, do prédio abaixo ou da vida para fora) reapossou-se de si e estilhaçou aquele breve momento de quase-paz. Continuou, pois, a subir. Esquecido, logo nos degraus seguintes, daquela comunhão matemática...

Foi quando chegou ao terraço, e se aproximou do muro, com o cabelo agitado por ventanias várias, que se lembrou e, num gesto de derradeira curiosidade, olhou para o relógio de pulso. E, ali, no seu relógio, viu marcadas 11.10. Mas, imediatamente após, como um atrevimento do destino, 11.11.

Por alguma razão, portanto, ou porque o relógio do prédio estivesse adiantado, ou porque o seu relógio se atrasara, tudo ocorria como se os deuses lhe tivessem oferecido um minuto de vida.

Não podia desperdiçá-lo. Não podia ser ingrato a esse ponto. Não tinha o direito de jogar fora a divina oferenda, o minuto miraculoso, jogando-se fora a si próprio. Havia, já não uma coincidência, mas uma dupla coincidência. Uma dupla coincidência não poderia ser mera coincidência. Sentiu lágrimas nos olhos. Talvez as coisas melhorassem. Talvez a mulher regressasse. Talvez principiasse a vender. Sentiu lágrimas nos olhos. (Olha, já tinha escrito isto!). Há insignificâncias maravilhosas, não há?

Nota: demorou mais de dez minutos a descer a escadaria. Mas não reparou nisso!

3 comentários:

Sara Rainbow Soul disse...

São 11:11h, enquanto leio...e ainda não acabei, volto já

Sara Rainbow Soul disse...

Voltei! Há de facto insignificâncias maravilhosas.
Esta foi só uma delas.

Conta lá uma tua;)

Sara Rainbow Soul disse...

Não sei se já reparaste que não tens as horas certas no teu blogue, mas é só uma insignificância!