sexta-feira, novembro 09, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - VI

Saiu do apartamento, preocupada e com alguma vergonha; desceu pela escada; espreitou, no átrio, antes de se aventurar à rua. Correu, por fim, olhando em todas as direcções, meio perdida, seguindo um mapa diferente do habitual, redesenhado em função de possíveis e súbitos esconderijos por onde pudesse desaparecer rapidamente, se necessário.

Contudo, nenhuma das situações previstas e temidas por Hermengarda viria a ocorrer. Dona Luizita e a Vizinha Maria nunca a confrontaram, nunca sequer se referiram àquele seu quase-encontro por paragens tão longínquas. Porquê? Porque esperavam vê-la regressar ao local do crime, aguardando o momento de a apanharem em flagrante (como julgou durante muito tempo, à medida que os dias passavam e ninguém lhe dizia fosse o que fosse)? Ou simplesmente porque, após confereciarem uma com a outra, teriam concluído que fora tudo um erro de Maria, uma, como se diz?, alucinação, pois não poderia realmente tratar-se de Hermangarda (como, mais tarde, aliviada, principiou a acreditar)?
Também nunca soube o que faziam as duas naquele bairro. Nunca o soube.
Tudo retomava a pavorosa forma da normalidade: a sogra entre medicamentos e cafés que enchia de açucar e mexia com uma colherinha de prata, trling, trling, trling, um ar de beatitude no rosto amarelado; Maria enfiando o nariz aguçado por todas as frinchas - «Boa tarde! Olááá! Posso entrar? Estão a comer? Não incomodo, não?».
Pior que tudo: Hermengarda, seu nome, voltou a colar-se-lhe definitivamente à pele, aos ossos, ao corpo, à alma, à vida.

Durante muito, mas muito tempo, não foi capaz de voltar ao apartamento.
Um dia, voltou. Havia pequenas mudanças na rua, no bairro, que a incomodaram. Coisas indefiníveis.
Chegou a subir - mas desceu imediatamente, claro, quando viu, à porta, um senhor de juba grisalha e uns óculos de aros muito finos. O pintor!

Não reencontrou a solidão.
«Tens sempre de acabar tão mal? Que melancolia!», sopram-me sobre o ombro, acompanhando este fim.
De vez em quando, recorda-se da sua amante. Recorda-se que, por pouco tempo, poucas vezes, a solidão foi sua. A saudade dói. Mas é diferente do que seria se não a tivesse tido nunca.
Mais: quando recorda os seus bons momentos, a sua solidão, a sua amante, dá-lhe, agora, um rosto. Uns olhos curiosos, vagamente trocistas. Um ar sábio, de alguém que tivesse visto e compreendido um segredo.
Sonha com ela, até.
É um amor perdido. Platónico.
É muito pouco. É bom.

FIM

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