sábado, novembro 10, 2007

UM DIA COM O «DENNIS THE MENACE» NO FEMININO

Oh, como odeio estes sábados em que a minha mulher trabalha, o meu filho se refugia na casa da avó, onde lhe crava revistas, bugigangas, pizzas e coca-cola para o almoço, e eu tenho de passar um dia que não tem com certeza menos do que vinte e seis horas, a sós com um adversário curiácio, um bandido que me persegue, um ser de outro planeta que me investiga minuciosamente: a minha filha de dois anos e poucos meses, que continua sem dizer uma única frase completa!

Esqueçam o duelo Sócrates/Santana.
O duelo mais tremendo dos últimos anos, é este, em que, aliás, não tenho qualquer hipótese: Papá/Daisy. Ela é o «desperado», eu sou o «desesperado»!

A sessão do almoço, sobretudo, é de antologia. Começamos bem. Eu cantarolo, enquanto lhe aqueço a sopinha, o pratinho com franguinho e massinha e, sim, nessa fase ainda acrescento um «inho» a todas as palavras. (Mais tarde, os palavrões que grito já não levarão qualquer «inho»!). A tipa observa, entre curiosa e maquiavélica, com os olhinhos castanhos a brilhar dos planos tortuosos que me esmagarão. Está encarrapitada numa cadeira elevadíssima, uma torre eiffel cheia de cintos de segurança. Sorrio-me. Coitadinha: «És tão linda!»

A primeira escaramuça, mal chega para a aquecer. Quer comer por sua mão. Sei o que isso vai significar. Oh, oh! Mas cedo imediatamente. «Leva lá a colherinha, toma lá o pratinho do ursinho».
Enfia uma colherada de sopa na boca. E zás. Acto contínuo, lança a colher ao chão. O meu sorriso é já amarelo. A voz com que a admoesto é ainda simpática, mas um ouvinte atento e perspicaz descobriria, sem dúvida, uma tremura nervosa que não augura nada de bom. Lavo a colher. Devolvo-a. Mais uma colherada. Zás. Lança novamente a colher ao chão. «Pára com isso, Margarida!» Baixo-me para apanhar a colher. Nem de propósito: é o tempo de que Margarida precisa para cuspir a sopitanga sem que eu possa intervir. Quando me aproximo, estendendo-lhe atrasada e ridiculamente a colher, percebo que fui ultrapassado: ei-la com o babete nojento, o queixo e o ombro cheios do que me parecera uma sopinha mas, agora, já não me parece senão uma pasta viscosa e alaranjada. Limpo-a. Com movimentos bruscos. Irritados. Margarida não quer mais. Eu insisto. «Uma pela avó!» - Enfia a cabeçorra entre os braços, para que eu tenha a certeza de que não há a mais pequena possibilidade de a manipular. Endireito-a à força. Pega no prato, atira-o ao chão. Berro asneiras. Os vizinhos fazem um silêncio absoluto. Margarida olha-me, com os olhos a exprimir, inequivocamente: «Boa! Estou a gostar. Qual vai ser a próxima diversão, tens mais ideias?» (Como ela, mesmo sem palavras, fala tão clara e sofisticadamente com os olhos).

Passa-me pela cabeça que toda esta agitação se deva ao cansaço da menina. Pego nela. Levo-a para a sua caminha. Vou acalmando, enquanto subo a escada. Já me imagino a ver televisão, o som muito baixo para não a acordar, os pés, em peúgas, fatigada mas confortavelmente estendidos sobre uma cadeira, cadernos do Expresso espalhados pelo chão...!

Margarida não dorme. Cansada?! Isso sim! Deito-me numa cama ao lado, esperando que perceba o que tem de fazer. Nada. Bate com os pés no gradeamento da sua caminha. Puxa pelo cordel que põe um urso a tocar uma musicata enervante. Ergue-se, olhando para mim no escuro, o branco dos olhos iluminando o quarto, as mãos apoiadas às grades. Choraminga. Decido não lhe ligar. Perigo! Margarida tenta trepar, sozinha, pelo gradeamento da cama, está já com uma das pernas quase inteiramente do outro lado. Precipito-me.

Em desespero de causa, tomo decisões: Vamos passear! Vamos à Bulhosa. Tomo um café, ofereço-me uma prenda que me anime, o livro que a minha amiga Lara Croft me recomendou. Caramba, preciso desta compensação. Recomeço a sentir-me feliz. Que poderá a miuda fazer, destruir a livraria? Eheheh! Estou eufórico. (Não é normal. Consultar o psiquiatra?!)

Coloco-a na cadeirinha do carro. Amarro-a à vida. Arrancamos.

Margarida adormece dois quarteirões depois.

Regresso a casa. Bolas!

3 comentários:

Sara Rainbow Soul disse...

Tadito do papá;)Tou cá com uma pena, vida dura da pobre daisy

Já agora qual é o livro qua a Lara croft te falou...devias dar dicas literárias no blog.

Estava a pensar pôr um link para o teu blog no meu pó de estrela, não te importas?

Gil Duarte disse...

Claro que não me importo, só posso agradecer. Se achares que os teus leitores habituais, românticos e bonitos, têm estômago para as minhas histórias cínicas e feias...!

Gil Duarte disse...

Já agora, o livro em causa é «Os Filhos de Anansi», e, agora que finalmente o tenho entre mãos, devo dizer que me prendeu desde a primeira linha. Literalmente a primeira. O fulano é interessante e original até na dedicatória e nos agradecimentos...!