domingo, novembro 04, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - III

Tornava-se um vício.
Nunca ia mais do que uma vez por semana, encurtando o tempo destinado às compras.
E nunca ficava mais do que uma hora; chegou a levar despertador que a arrancasse ao seu torpor, à sua paz, ao seu namoro consigo, ou melhor, com a sua almejada solidão.

Até ao dia em que, prestes a entrar para o prédio, ouviu chamar por si. Pelo horroroso «Hermengarda!». Não enfrentou o chamamento, mas olhou de soslaio, vagamente, incertamente, a fingir que não, escondendo-se um pouco entre umas colunas. E topou Maria, uma vizinha sua, que a perdera um pouco de vista mas a procurava, certa de que se não enganara. Que raio faria ali Maria? O seu médico seria para aqueles lados? Doente, sempre muito doente, com a respiração fraca, os pulmões enfermiços, o olhar de cão abandonado, eterna pedinte de umas migalhas de afeição, colando-se às pessoas, aparecendo-lhe em casa, como por acaso, sempre que lhe cheirava a algum jantar de amigos, a alguma festita de anos, Maria era uma pessoa de quem a sua sogra gostava muito, e que convidava amiúde, mas para quem Hermengarda não tinha paciência...
Aproveitou o ar desnorteado da mulher, aquele minuto em que ela a perdera de vista e entrou no prédio. Subiu pela escada, como de costume. (Mais discreta, menos passível de encontros indesejáveis do que o elevador...). Abriu a porta do seu reduto, do seu minúsculo antro, acercou-se da janela, meio escondida pelo cortinado velho, com o olhar em busca de Maria, lá em baixo...

(CONTINUA)

1 comentário:

Sara Rainbow Soul disse...

Delicioso...mais...