segunda-feira, março 31, 2008

A PROPÓSITO DE AVALIAÇÕES

Para que eu me tornasse no professor que agora se quer, de novo, avaliar - o que é justo, desde que se trate de uma avaliação justa -, tive de estudar muito; entreguei-me à filosofia, li Platão, Kant e Hegel, discuti teses, apresentei dissertações, fui classificado, licenciei-me, mestrei-me, doutorei-me.
Se tivesse querido ser médico, ou engenheiro, teria tido igualmente de me preparar. Seria testado, examinado, classificado sobre anos de empenho e trabalho.
Curiosamente, para se ser político, não me parece que o candidato tenha de se preparar grandemente: sob o argumento um pouco débil de que os políticos são avaliados pelo povo, nas urnas, a democracia não considera a política como matéria de estudo e reflexão. Esquece que seria importante fazer-se uma ideia, mesmo pálida, sobre o que o senhor A ou o senhor B compreenderam da posição de Aristóteles, de Rousseau ou de John Locke, de Maquiavel, de Hegel, Saint-Simon, Proudhon ou Bakunine, Marx, Engels, Popper ou Rawls - e abrevio, limitando-me a juntar estes poucos nomes só para recordar que, se não conseguimos imaginar Mendes Bota, Luís Filipe Meneses ou José Sócrates a pronunciarem-se acerca das teorias que estão associadas a esses pensadores, é porque, no fundo, temos noção de que para se ser político não é necessário estar-se preparado, ou seja, haver-se estudado minimamente História, Geografia, Sociologia e Filosofia Política: basta ter-se lábia; ingressar-se, na altura certa, numa juventude partidária; ligar-se aos pesos pesados do partido escolhido; e aguardar a sua vez. É isto!

É próprio da democracia a ideia de que a política não deve estar reservada a especialistas; ou que deve ser algo tão simples e acessível a todos, que uma cozinheira ou uma mulher-a-dias (sem desprimor) seriam capazes de a exercer: e, mais, teriam direito a fazê-lo. O problema está no seguinte: as cozinheiras ou as mulheres-a-dias não se dedicam à política; dedicam-se-lhe, em contrapartida, uns senhores e umas senhoras que se tornam profissionais do parasitismo: espécimens, em geral, de uma ignorância atroz e de uma ambição ignara. Bem sabem que não têm de mostrar o que compreenderam do assunto; bem sabem que lhes basta ser hábeis.

Eu serei avaliado. Pela sexta ou sétima vez na minha vida. Certo.
Mas, na verdade, os políticos que se instalaram na 5 de Outubro deveriam, em algum momento, ter respondido a algum tipo de teste, feito um qualquer exame de Política, de Pedagogia, de Cultura ou de Educação; se tivessem sido avaliados em devido tempo, não assistiríamos à sua penosa incapacidade para encontrarem os meios certos e justos para avaliarem os outros...

sábado, março 22, 2008

SKINNY [III]

Pensei que não ia adormecer, que nunca mais na vida tornaria a conseguir dormir.
Enganei-me redondamente.
Queria gritar por Skinny. Via-os retirarem-se e abri a boca com o seu nome desenhado nos lábios. Mas enganava-me de novo. Não me saiu voz e o cansaço era tamanho que mergulhei numa escuridão enorme. Depois, acordei. E readormeci. E acordei novamente, por breves instantes, e tornei a cair num sono não reparador, um sono angustiado e infeliz.

Só despertei uma última vez com a invasão do corpo policial. Eram cinco ou seis. Gritavam ordens, disparavam armas, moviam-se pelos quartos, prendiam pessoas, libertavam-me, agasalhavam-me num cobertor, punham-me entre as mãos dormentes um chávena de uma bebida amarga, fumegante.

Eu só queria saber de Skinny. Perguntei ao inspector se haviam prendido o chefe do bando. Que sim. Se era um miúdo franzino. Que não. Não havia nenhum menino franzino. O chefe era um jovem de bom aspecto. Não falava. Nenhum falava, aliás. Haviam sofrido um tratamento que os fizera esquecer tudo. Ou um tratamento ou, alternativamente, marteladas na cabeça. Nenhum dos homens sabia dizer fosse o que fosse. A não ser «Bllllgh» e «rhmmmm» ou assim. Com olhos esgaseados.

Também me haviam feito algo. Tenho um corte na cabeça. Fechado com agrafos. Julgo que algo me foi implantado no cérebro. Riem-se. Todos. Ou ficam tristes, têm pena. Já há quem fale em internar-me. («Numa casa de repouso», sugerem, «só para descansar por uns tempos...»)

Às vezes pergunto-me se não sonhei. Mas, então, que é feito de Skinny? Também me pergunto se ele era realmente o chefe, ou se os convencera de algum modo a segui-lo (o miúdo é muito esperto, tem lábia; comigo, sempre a teve...) num estranho plano para, depois, me salvar. Teria batido, no meio da confusão, com um martelo nas cabeças deles? Mas, então, por que não aparecia?

Outras vezes, penso que ele era o chefe, sim. E que me implantaram qualquer coisa na cabeça. E vem-me à ideia: um dispositivo para me tornar um pai mais calmo?! Menos nervoso? Menos irascível? Porque, agora, me tenho sentido um excelente pai. Claro, talvez isso se deva ao facto de o meu filho ter desaparecido...

Em todo o caso, não tenho com quem discutir esta última ideia. É, aliás, quando a refiro, sempre que a refiro, que sacodem compungidamente a cabeça. E falam em internar-me!

FIM

segunda-feira, março 17, 2008

SKINNY [II]

Quando despertei num quarto húmido, com ervas ruins a subir pelas paredes e graffitis em vez de quadros, não precisei de muito tempo para me lembrar do que sucedera.
Estava deitado sobre uma enxerga que cheirava a mofo, em tronco nu, com as pernas e os braços amarrados por uma espécie de cintos. O corpo doía-me por todo o lado.
A seguir, percebi que um rosto, que me pareceu angustiado, se debruçava sobre mim. Skinny. Sorri-lhe, com terríveis dores na boca, como se a rasgasse. Sorria-lhe para o sossegar; fez efeito. Imediatamente vi a angústia transformar-se em alegria.
- Pai!
- Skinny!
Relanceei o olhar pelo quarto. O grupo estava reunido junto à porta. O rapaz que me injectara aproximou-se. Temi por Skinny. Tentei soerguer-me, mas debalde.
- Deixem-no em paz! -, gritei. - Ouviram? Façam de mim o que quiserem, mas deixem o meu filho em paz!
Houve gargalhadas. Preso, não consegui abraçar o meu filho, protegê-lo, ampará-lo, defendê-lo.
- Bem, vamos deixar-te descansar um pouco, pai. Não te preocupes, está tudo bem! -, disse Skinny. Para meu grande espanto, ordenou ao bando: - Toca a sair, rapazes!
E para meu espanto ainda maior, o grupo respondeu-lhe, em coro:
- Sim, chefe!

(CONTINUA)

domingo, março 16, 2008

SKINNY: um conto minimalista

Skinny, meu filho menor, estava particularmente desobediente, o que não costumava acontecer quando - e era o caso - eu vinha de o recompensar, pelo bom desempenho escolar, com uma ida ao cinema.
Mais: ao cinema e a seu modo, com tudo o que eu habitualmente negoceio ou recuso - as pipocas, a coca-cola, etc. etc. etc.
Por que raio me lixava agora o puto desta forma? Eu chamava-o e ele não ligava; afastava-se demasiado; atravessava ruas a correr. Furibundava-me. Dei comigo a berrar, por entre cabeças de transeuntes que se voltavam para mim, surpreendidos e assustados.
Quando Skinny enfiou por um beco estreito e estranho, pejado de graffitis e malta da pesada em todos os recantos, considerei que era tempo de pôr cobro a uma atitude tão inaceitável. Decidi-me a mostrar quem mandava ali, embora tivesse algumas dúvidas sobre quem realmente seria. Meti-me pelo beco, capaz de puxar o garotão por uma orelha, de lhe assentar um par de biscoitos nas nádegas, de lhe dar dois gritos que lhe chegassem efectivamente ao cérebro atrofiado. Falava comigo mesmo, como os malucos. «Tu vais ver! Tu vais ver!» e «Anormal duma figa!»

Naquela fúria despropositada, não cheguei a reparar que me cruzava com grupos de mau aspecto, bandos de barbas por fazer e capuzes.
Skinny desaparecera. Só o voltei a ver muito adiante, em cima de um telhado, de onde me acenava alegremente. Subira por um cano, balançava as pernas magras e não reparava, dali, nos óbvios indícios do meu estado apoplético.
Mas, para mim, era muito tarde. Porque um bando já me rodeara.
O tipo que me falou nem tinha particularmente mau ar.
Caí imediatamente em mim. Esqueci Skinny. A raiva transmutou-se-me em genuína cobardia. Lembro-me de que lhe disse, ao sujeito:
«Não tenho nada!» -, e acrescentei, num sopro de voz, «man», para me mostrar da mesma laia, como um previsível compincha, um potencial companheirão.
«Nós também não queremos nada», respondeu. «A não ser a ti».
Mais rapidamente do que o tempo de que eu dispus para narrar todo este acontecimento, ergueu-me a manga do braço direito e, perante a minha estupefacta inércia, introduziu uma agulha na minha veia.
Vi o produto da seringa descendo no interior do vidro, passando-se-me para o sangue, ouvi, vagamente, como num sonho, a voz de Skinny, e mais nada.

(CONTINUA)

sábado, março 15, 2008

APRENDER A DESESCREVER

Sartre foi contemporâneo da introdução do som no cinema. E desdenhava dessa inovação. Pior, muito pior: mostrou-se rigidamente contra uma tal mudança. Passados tantos anos, e conhecendo nós a fortuna que a história posterior reservaria ao cinema sonoro, podemos troçar da ingenuidade de Sartre, ou lamentar a sua ausência do dom da profecia, ou a sua cegueira para todas as possibilidades que a invenção encerrava em si. Podemos. Mas faríamos mal, porque os argumentos do filósofo são de uma inteligência fulgurante e porque, no fundo, ele tinha razão. A história encarregou-se de lha retirar, mas o ponto é: o que ele afirma é verdade.

Alegava Jean-Paul Sartre que o cinema nunca deveria confundir-se com uma tentativa de «copiar» e transportar, para a tela, a realidade, e sim ser visto como arte, isto é, como amplificadora, intensificadora do real, numa transfiguração cujos dispositivos seriam, pela própria natureza dessa arte, o movimento e a expressão; por outras palavras, a linguagem do cinema não é a linguagem oral, mas a linguagem dos corpos e dos rostos.
Deste ponto de vista, a ausência de som, o silêncio intrínseco dos filmes, longe de ser uma perda, seria a exigência da concentração do espectador nos outros elementos. E portanto, da mesma maneira que um cego desenvolve capacidades que em nós são incipientes, o grande realizador e o grande actor trabalhariam talentos cinematográficos, de modo a exprimir, sem a distracção do som e da voz, o essencial.

Recupero este argumento porque me sinto, hoje, numa posição similar à de Sartre.
Sei um pouco mais do que ele: sei, por exemplo, que daqui a trinta anos (ou menos) a História terá demonstrado que eu não tinha razão; sei que se terá criado uma normalidade linguística em face da qual os argumentos reaccionários que exponho hoje só suscitarão risos.
Mas a questão é que não posso senão estar contra o acordo ortográfico que já entretanto se estabeleceu. E que me arrepio à ideia de que, para escrevermos como os nossos irmãos lusófonos, deixaremos cair as sílabas átonas, não podendo (senão pelo contexto, como é evidente) distinguir, digamos, a palavra «facto», da palavra «fato». Tudo serão «fatos».

O meu argumento é perfeitamente aristocrático e, por isso, destinado a perder.
Eu sei que a língua portuguesa é difícil de escrever; sei que a maioria dos portugueses comete erros graves; não gosto, de facto, de ler os textos dos meus alunos que, em geral, são ortograficamente absurdos.Não gosto de os ler, de facto, nem costumo lê-los de fato. (E gravata!)
Mas sustento que, de alguma forma, essa dificuldade é um bem, não um mal. Ela significa: «O universo da leitura e da escrita é um universo rigoroso e exigente, uma espécie de templo reservado a uma espécie de eleitos - os que merecem entrar, quer dizer, em última análise, os que estão dispostos ao sacrifício e ao trabalho de aprender a ler e a escrever, fazendo-o com dedicação e cuidado, com atenção, amor e empenho na coisa amada».

A ideia de que, se Maomé não vai à montanha, a montanha que venha a Maomé, isto é, se os jovens - por exemplo - revelam dificuldades em aprender a escrever, então há que resolver o problema reformulando a escrita, libertando-a de todas as agruras, ou de tudo o que faz dela um material particularmente subtil e superiormente expressivo, sempre me pareceu errada. Está ao nível de toda a política da Educação levada a cabo por este ministério: se as crianças têm insucesso, então, em vez de levarmos os alunos ao sucesso (o que seria demasiado trabalhoso), leve-se o sucesso aos alunos, exigindo-se muito menos, aceitando-se quase tudo, dificultando por todos os meios o acto de reprovar. Do mesmo modo: se os irmãos brasileiros, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, são tomenses ou timorenses não lidam bem com os «h» aspirados, os «c» e os acentos que enriquecem o português de Portugal, suprima-se tudo isso.

Gosto muito da objecção segundo a qual, se pensássemos assim, como eu, ainda estaríamos a escrever «pharmacia» ou - na sua versão mais dura - estaríamos hoje falando latim.
É uma objecção (ou «objeção»?) que não faz o menor sentido, ou passa ao lado do problema porque, afinal, a língua irá necessariamente mudando ao longo da História, a ortografia também, e só me parece mal que essa mudança se faça por decreto e num acordo que se estabelece em função de interesses políticos e económicos linearíssimos e pobrezinhos.

Escrever bem deveria ser um orgulho e uma distinção; acredito que aprender a escrever uma língua que tem dificuldades próprias, sem as rasurar nem simplificar, é um empreendimento que estimula a inteligência, que a abre e ramifica, obrigando a mais sinapses e rasgando mais percursos da dinâmica cerebral, do que aprender a escrever na língua do «SMS». :)

quarta-feira, março 12, 2008

A LUTA CONTINUA (APESAR DE SE ME IR ESGOTANDO A ROUPA PRETA...)

Eu bem sei que o Miguel Sousa Tavares e o Emídio Rangel são idiotas. Ponto final.
Não obstante, quando leio os seus artigos a transbordar de peçonha, conduzidos por aquela falta de objectividade que anuncia ressentimentos e raivas de outros carnavais, acabo sempre por me perguntar como diacho veria eu a luta dos professores se, acaso, a não vivesse por dentro. Imagino que sou um cidadão comum, medianamente informado. Um manga-de-alpaca, um vendedor de gelados, um Serafim Lampião que está, à noite, sentado, com a família, diante da televisão, ouvindo a senhora dona Lurdes Rodrigues de mãos postas, os dedos unidos nas pontas, entrevistada por uma Judite de Sousa que lhe não dá réplica («mas ó senhoga ministga, a senhoga não acha que...?»), ou ouvindo o senhor habilidoso da Confederação de pais, ou seguindo sequências rápidas de imagens da manif que juntou cerca de cem mil, dos quais, entretanto, eram focados alguns, cinco ou seis, respondendo, em geral desnorteadamente, à simples pergunta: «Afinal, por que protestam os senhores?!» Imagino que tenho um filho, dois filhos, três filhos na escola pública; imagino que nenhum dos meus filhos fosse um barra, imagino que houvesse negativas aqui e ali e, naturalmente, recados na caderneta; imagino que o mais velho, viciado do telemóvel, advertido várias vezes por um professor - farto de o aturar mais o aparelho sob o tampo da secretária, teclando mensagens de amor durante as aulas -, me chegaria sempre a casa com fúrias e indignações inauditas contra todos os docentes, e histórias das perseguições que lhe moveriam concertadamente. Que pensaria eu da justeza da luta dos professores? Até que ponto compreenderia - eu, Serafim Lampião, adequadamente invejoso dos professores que, tal como os veria, «trabalham pouco, não querem trabalhar mais, têm férias longas» e, pelos vistos, «agora nem sequer querem ser avaliados»?!
Estaria capaz de compreender o sentido desta indignação?
Teria noção de até que ponto este ministério vem escangalhando sistematicamente as mínimas possibilidades de um ensino sério e responsável?
Perceberia as implicações e os estragos inflingidos, quase até ao ponto do não-retorno para os próximos dez ou quinze anos? (Sim, sempre fui um optimista!)
Perceberia, ao menos, a insanidade que constitui admitir que, ainda que as medidas fossem justas e correctas, nunca poderiam ter qualquer razão de ser se incompreendidas e rejeitadas por milhares de professores?
Hesitaria?
Sentir-me-ia perturbado?
Pensaria duas vezes?

A minha pergunta, no fundo, resume-se a este pouco: não será tão obtuso como estar no posto de ministro da Educação CONTRA os professores - o lutar contra as medidas ministeriais sem conquistar a opinião pública, isto é, sem tratar simultaneamente de a conquistar???

E esta pergunta tem, como é evidente, uma alínea: como se ganha um país sistematicamente desinformado?

domingo, março 09, 2008

CARTA ABERTA DE SOLIDARIEDADE AO SENHOR AUGUSTO SANTOS SILVA

Convocada que foi uma reunião de socialistas, encontravam-se à porta do local previsto, à espera dos senhores reunintes, uns quantos professores protestantes, aos gritos de uuuhuuu, uuuhuuu! e acenando com lenços brancos.

O senhor, como igualmente se sabe, deu-se mesmo ao trabalho de ficar ao rubro, apesar de esta ser uma cor de que não gosta. E disse, como pessoa frontal que é, que se tratava de uma manobra intimidatória. Tem Vossa Excelência inteiramente razão. Todos conhecemos o terrífico poder intimidatório de um lenço branco. É feroz! É bárbaro! Aliás, ninguém o compreenderá tão bem como o senhor Camacho, treinador do Benfica, o qual Benfica, ao que dizem os historiadores mais idosos, foi já tão grande como o PS parece ter sido outrora. Pois o senhor Camacho, coitado, esse nem prega olho, imerso em pesadelos de lenços brancos, que tenta afugentar recorrendo a uma fórmula mágica, que lhe posso indicar (embora se tenha provado cientificamente que não vale grande coisa): «Hay que salir a gañar! Hay que salir a gañar!»

Lembrou ainda o senhor, senhor Silva, que o 25 de Abril e a democracia foram feitos por gente do seu campo, como Mário Soares, Salgado Zenha e Manuel Alegre. (Por acaso, três exemplos infelizes no que toca ao apoio «deste» PS, até porque um deles só o poderia apoiar em sessões espíritas, mas não nos percamos nos pormenores); que foram feitos por gente como essa, sim, e não por Álvaro Cunhal (aí, fiquei perturbado com uma levíssima dúvida, por causa de um filme protagonizado pelo senhor Paulo Pires segundo o qual o senhor Álvaro Cunhal teria andado a mexer-se um bocado contra o fascismo: mas há-de ser erro meu; tratarei de reler os meus livros de História recente e nunca mais acreditarei nos filmes do senhor Paulo Pires, que é modelo e não propriamente historiador!). Não por Álvaro Cunhal nem por Mário Nogueira. E mais, muito mais poderia ter dito, o que só não fez por decência ou piedade. Mas eu ponho os pontos nos ii: Mário Nogueira, por exemplo, na altura, que eu saiba, portou-se como um fraco e como um débil mental e político. Era uma criançola ranhosa, é o que é!

Mas deixe-me vir em socorro da sua memória, senhor Silva: o senhor esqueceu até ilustres camaradas seus, que muito têm feito pela democracia. Permita-me referir - já para não mencionar o senhor engenheiro Sócrates -, o imenso e impagável Vitalino Canas, ou aquele senhor cujo nome não recordo mas, entretanto, desposou a lindíssima senhora Dona Bárbara Guimarães, ou o Palhaço Pepito que (revelo-o em primeira mão, uma vez que os maiores heróis são sempre homens discretos) é também um militante activo do PS: são, todos, pessoas que fizeram muito mais pelo humor livre em Portugal do que, digamos, os sobrevalorizados «Gato Fedorento». As graças que têm surgido à conta deles, do Vitalino, o da dona Bárbara, o senhor Coelho e quejandos! Por mim, há que dizê-lo, é raríssimo que apareçam na televisão e que, só de aparecerem, me não dêem imediatamente vontade de rir. (Ou de chorar, o que mostra que, como comediantes, dominam perfeitamente a técnica de fazer passar o espectador do riso ao choro e do choro ao riso, duas reacções tão opostas e, afinal, tão próximas!)

Terminou o senhor afirmando corajosamente, como é seu timbre, que, se for caso disso, o PS estará outra vez nas trincheiras. É de homem! Munidos, calculo eu, de imensas remessas de lenços brancos, arma moderna a que nenhum terrorista resiste.

Para o melhor e para o pior, senhor Silva,

Um Combatente da Primeira Linha

quarta-feira, março 05, 2008

2057 (V)

Um leitor que vinha seguindo aguda e ansiosamente esta história usou a expressão certíssima e certeira: «Não me digas que Lordingham descobriu esta orgia particular!?»

Utilizo a expressão, porque me serve e eu não teria inventado melhor. Orgia particular soa-me bem, agrada-me - sendo que, esta orgia particular teria mais de «particular» do que propriamente de «orgia».

Lap abriu a porta, não a Lordingham, que nunca aparecia em pessoa - a ponto de haver quem duvidasse da sua existência real -, mas a um pequeno grupo de indivíduos vestidos de negro, empunhando pequenos escudos redondos e viseiras que lhes tornavam inidentificável a origem planetária.
Por um microfone situado junto à boca, um dos agentes falou, com aquelas pausas enervantes através de que os polícias se asseguravam que nenhuma palavra escapava ao presumível culpado:
- Os vizinhos... queixaram-se... de risos... e gritos... embriagados... suspeita-se... posse e uso... de substâncias... não recomendáveis, repito: legais, mas não recomendáveis...
«Os vizinhos», pensou Liz, amargamente. Seu pai, professor de História do Período pré-Design (isto é, do tempo até à revolução de 2021), contava-lhe que, outrora, os habitantes de apartamentos se queixavam, frequentemente, de que se ouvia tudo o que acontecia nos apartamentos vizinhos; paredes mal concebidas, lamentavam-se; erros de construção. E pensar que, depois da revolução, o governo dos designers descobrira a virtude das paredes intercomunicativas. Que, de «erro de construção», se tinham elevado à categoria de «paredes não-separadoras», «paredes não-barreira», que não dividiam vizinhos, mas os punham à escuta uns dos outros, os uniam, os ligavam...
- Queira... fazer... o favor... de soprar... aqui.
- É... uma... verificação - acrescentava outro agente. - Simples... rotina.
- Por... favor! - insistiu outro.
- Por... favor -, mais um.
A delicadeza dos polícias era conhecida; mesmo quando agrediam - o que raramente ocorria numa sociedade do design, onde todos eram livres -, mesmo quando agrediam, faziam-no gritando, pelos seus microfones portáteis:
- Perdão.
- Perdão.

Liz estava perdida. Sabia-o. Não era procurada - se o fosse, já teria sido presa há muito - mas encontrava-se referenciada. Por muitos motivos: pela sede da bebida azul, por comportamentos no limiar da rebelião, que transformavam os objectos, recusando-lhes a função e o poder. Não era uma revolucionária, longe disso. Era incómoda. Talvez não chegasse a ser perigosa. Mas era uma pedra no sapato. Mais uma chata do que uma rebelde!
E ninguém a defenderia. Lap, menos do que qualquer outro.
Lap - pobre terrestre tonto -, que mal a conhecia e já fora tão incomodado por ela, dificilmente se ergueria para a defender. Aliás, ele tinha uma casa: ninguém com uma casa se arriscaria a meter-se em sarilhos. Ia acusá-la, portanto, de o ter desencaminhado.
- Por... favor! - insistia o polícia.
O aparelho por onde queriam que ele soprasse, nada tinha de ameaçador. Pelo contrário, era reconfortante. Apetecia entalá-lo na boca e adormecer, como se fosse uma chupeta. Lap aproximava-se. Porém, deteve-se. Olhou-a. Fixamente. Na boca. Na boca de gata.
- Desculpe lá. Eu estava a fazer alguma coisa proibida? - perguntou.
- Nada... é... proibido.
- Sopre... aqui... por favor!
- Por... favor...
Ao invés de o fazer, contudo, Lap beijou-a. Como quem descobre uma escolha que nunca fora escolhida. Como quem descobre um «possível» que sempre estivera escondido ao seu horizonte de possibilidades. Como, por exemplo, preferir um «Blootea» azul. E reivindicá-lo.

Os polícias ficaram sem saber o que fazer. Se aquela escolha fora a conquista de um novo possível para o mundo das possibilidades de Lap, não deixava também de ser, para os polícias, uma revelação: a revelação de uma possibilidade com a qual não sabiam como lidar.
E, desse modo, retiraram-se. Vagarosamente.
Era estranho. Era novo. Para todos.
Liz estava extasiada.
- Ainda há «Blootea» azul? -, perguntou-lhe Lap.

Os polícias regressariam. Com novas instruções ou novas ordens.
Era simplesmente uma pausa.
Mas Lap, mesmo ignorando o que o futuro lhe reservava, entendera e entendia mais, durante aquela curta pausa, do que o que conseguira descobrir ao longo de toda a vida.

2057 seria um ano de que não se esqueceria.

FIM

terça-feira, março 04, 2008

ANA DRAGO vs. DONA LURDES

Ensino aos meus alunos, no 11º ano, que, no acto e no modo de argumentarmos, deveria haver sempre um tal rigor, que, para se convencer outrem, a nossa argumentação não careceria de nada mais para além da sua própria força. Nada senão a solidez no encadeamento dos raciocínios, nada senão a forma como as ilações se imporiam por si.

Era bom, com efeito, que conseguíssemos concentrar-nos sempre nos argumentos. Deste modo, para ser convincente, um discurso nunca deveria depender, por exemplo, de uma voz bem colocada ou atraente. Sê-lo-ia tão-só pela sua lógica interna: ainda que exposto por um sujeito de fraca figura e voz débil, com espuma nos cantos da boca e nódoas na camisa.

Posto isto, devo confessar que me não é indiferente que a voz que defende os professores, no Parlamento, seja sobretudo a de Ana Drago.
Não me é nada indiferente que esta jovem brilhante se tenha tornado o verdadeiro símbolo político da luta dos professores, porque à inteligência dos seus argumentos se aliam coisas tão simples e acessórias como a limpidez e a segurança da sua voz; o pormenor de nos transmitir a ideia de dizer o que pensa, pensado profundamente tudo quanto diz (ao invés de se limitar a repetir o que já ouvíramos a outros, ou de se limitar a ler cábulas, como muitos dos seus colegas na Assembleia); ou até o modo como, delicadamente, conclui o seu discurso onde entende conclui-lo, não deixando que lhe cortem o pio, apesar da sempiterna ameaça de um qualquer Presidente que, no estrito cumprimento do regimento, lhe vai repetindo: «Esgotou o seu tempo, senhora Deputada»; «Faz favor de terminar!». Ana Drago responde «Termino já» ou «E termino, senhor Presidente...», mas prossegue triunfalmente até ao fim, ou até que tenha exposto o que considera essencial.

Esta jovem reconcilia-me com a política. Mostra-me como é, de facto, um preconceito extremo pensar-se que ser deputado significa, necessariamente, ser-se medíocre.
Ela, justamente, nunca o é.

Agradam-me particularmente os frente-a-frente. Os frente-a-frente com a ministra, então, são, para mim, momentos altos.

E mesmo tendo de me penitenciar por fugir ao terreno dos princípios, das ideias e dos argumentos, penitenciando-me por descambar para uma dimensão retórica e, sem dúvida, falaciosa, penitenciando-me por estar a elogiar Ana Drago de um modo que ela própria não veria com bons olhos, deixem-me perguntar: ao nível do simbólico, de que outra forma poderíamos ser tão intensamente postos em face da certeza clara e maniqueista de haver, nesta história, um lado certo e um lado errado, um lado bom e e um lado mau e, mais do que isso, um lado bonito e um lado feio, do que vendo Ana Drago, aqui e, além, a senhora dona ministra da Educação?

Este post não pretende argumentar. Não é racional nem razoável. Não visa convencer. Tomem-no por um desabafo: sinto-me bem representado. Está dito.

domingo, março 02, 2008

2057 (IV)

Entraram em sua casa às 20.02. As «flores-da-noite» abriam-se-lhes, a própria cor se mudara de castanho para um rosa convidativo.

Tendo ido buscar a garrafa de azul, isto é, de «Blootea» azul («Bluetea», afinal), sentiu uma espécie de nojo, incapaz de servir-se do líquido que enchia o interior de uma garrafa em forma de barata. Liz, porém, não parecia impressionar-se. Segurou nessa garrafa com evidente prazer e levou a barata de vidro aos lábios; fez uma careta. Como um gato surpreendido. Tornou a beber: áspero, ácido; depois, a uma terceira golada, o líquido pareceu bruscamente tocar em diferentes zonas da língua, acordar qualquer sentido adormecido no paladar. O olhar da rapariga brilhou.
Controlando o seu asco, Lap imitou-a. Percebeu a repulsa da sua língua impreparada para o sabor estranho, como se tivesse acabado de provar uma substância viscosa, produzida, com efeito, nas entranhas de uma barata. (Desculpem, sim!?) Forçou-se a provar novamente, em busca do mesmo olhar e do mesmo sorriso que Liz já encontrara. E, sim: algo se desanuviava, não só na língua, mas também no peito, nos membros, na mente, no espírito...

Lordingham, chefe do esquadrão que verificava as condições dos bares e dos restaurantes, mandando fechar, violentamente, todos os que não obedeciam, sobretudo, ao «Protocolo do Design», não gostaria de ver um macho e uma fêmea, a sós num apartamento, em torno de um «Bluetea», mas, ahahahah!, que poderia Lordingham fazer?, o apartamento de Lap era o apartamento de Lap, ponto final, não era um bar nem um restaurante, não era um «transporter» nem uma das galerias do ENTRA-4, não era um local público: como raio poderiam os homens de Lordingham saber que, na casa que Lap escolhera livremente - em vez de um veículo, em vez de um videophone -, um homem e uma mulher se entregavam, cada vez mais demoradamente, à experiência, entretanto tornada deliciosa, sublime, de degustar um «Bluetea»?

Estava bêbedo. Estavam bêbedos. Ou seja: eufóricos. Felizes.
- Nunca me senti assim - confessou Lap.
- Sentes-te livre.
- Nããão, não é isso. Livre já eu era. Sempre fui. Agradeço, ao Designer do Universo, ter nascido neste tempo e ter podido viver no glorioso ano de 2057, numa sociedade tão perfeita, tão livre, tão democrática.
- Estás errado - segredou Liz.
- Querias um «Bluetea», não querias? Estás a beber um «Bluetea», não estás? Eu escolhi esta casa, não escolhi?
- Oh, pobre ingénuo, não vês que esse é o segredo da sociedade governada pelos designers?
- «Design é liberdade»! - repetiu Lap o slogan da Confederação (a frase que encimava os templos consagrados ao Grande Designer do Universo).
Liz ria. Com um sentimento de felicidade em que despontava um nódulo de desespero. Ela, filha de professores caídos em desgraça, compreendera que, naquela sociedade livre, em que nada se proibia, os objectos, porém, detinham todo o poder sobre os cidadãos: manipulavam-nos, obrigavam-nos a fazer coisas, a tomar decisões que só aparentemente eram deles, posto que, sob a aparência de «decisões», de caminhos «livres», não haviam sido realmente decididas por eles que julgavam tomá-las...

Nada era proibido porque os objectos, as casas, as cadeiras, os bares, as garrafas de bebida, os bancos de balcão, as pinturas, os postos de venda, tudo-tudo-tudo, tudo coisas concebidas pela Confederação ou aprovadas por esta, faziam fazer o que se esperava que os cidadãos fizessem. Nem mais nem menos. Ele não percebia que as suas próprias cadeiras o impediam de entrar em sua casa antes da hora que se entendia ser conveniente para se entrar em casa, depois de ter trabalhado, bebido um copo, comprado coisas...? Não tnha percebido que até o desconforto dos bancos-de-balcão, longos, sem costas, estava pensado para uma circulação rápida de clientes, que passavam dando de imediato o lugar a outro...?
Alguma vez conseguiria explicá-lo àquele homem generoso, mas tolo?
E valeria a pena?
Oh, Lap, pobre e desgraçado terrestre, tão satisfeito porque escolhera uma casa, em vez de outras coisas, sem perceber que a casa, a própria casa o atraíra, ou seja, lhe dissera, de algum modo, «compra-me», simplesmente porque...

Batiam à porta. Com violência. Com raiva.

(Continuará?)

sábado, março 01, 2008

2057 (III)

Lap tinha, em sua casa, uma garrafa de «Blootea» azul. Por outro lado, não lhe apetecia ir já para casa - nunca antes das 20.00 horas porque, até esse momento, todas as cadeiras que existiam no seu apartamento, sob efeito da luz diurna, como que secavam, se tornavam muito rígidas, de modo que só um considerável tempo após o pôr-de-sol é que essas «flores-da-noite», como lhes chamara o designer, desabrochavam, acolhiam, convidavam, abrindo-se então, amolecendo então, seduzindo então.

A casa fora o grande investimento de Lap: como toda a população do quinto escalão da sociedade, também ele, com o seu ordenado restrito, tivera, aos trinta anos de idade, de fazer a grande escolha da vida: uma casa ou um veículo ou um videophone. Quem optava por habitação, teria de usar «transporters» (veículos públicos)e telefonar de «phoners» (videos de comunicação públicos); os que preferiam o veículo, prescindiam de casa (alguns dormiam no próprio veículo, outros não chegavam a deixar o lar paterno) e, que remédio, comunicavam também de cabines fónicas (os supracitados «phoners»); já os que escolhiam videophone, por fim, faziam grande vista quando o atendiam em pleno «transporter», invejados pelos demais utentes, e dormiam, literalmente, em cemitérios, onde se alugavam túmulos. (Em geral, era o que preferiam: não pareceria bem, ou melhor, pareceria particularmente ridículo e absurdo um possuidor de vp - videophone pessoal - viver ainda em casa dos pais...)

Para matar o tempo, Lap conduziu a sua companheira (a propósito: Liz) a um gigantesco posto de vendas, o ENTRA-4: o anúncio desse posto, «Quatro entradas para uma saída feliz», devia ser tomado à letra. Quatro portas iluminadas e alegres, como bocas de consumidores sorridentes, convidavam pequenas multidões a desaguar nos imensos salões, de onde só saíam, relutantantemente, por uma porta estreita e fria diante da qual, muitas vezes, a pessoa recuava, lembrando-se de que, afinal, talvez ainda fosse muito cedo, preferindo dar mais uma ou duas voltas pelas galerias.
- Mas o que vamos fazer aí? - perguntava a rapariga.
- Comprar coisas.
- Não quero comprar nada. Não preciso de nada!
Lap ficou surpreendido com esta resposta. Era uma alienada, estava visto. Uma focinho-de-gato e, ainda por cima, alienada. Uma pessoa sem liberdade, incapaz de fazer escolhas na vida.
- Devemos ser livres -, admoestou Lap, consciente, senhor de si. - Temos de saber escolher. É importante. Por exemplo, entre uma cadeira ou uma máquina de barbear, um candeeiro ou um vestido de noiva, uma garrafa de refrigerante ou...
- Eu já fiz a minha escolha e estou a ver que não consigo satisfazê-la. Quero um «Blootea». Azul.
- Mas... isso não é normal, isso não...
- Porquê?
- Mas...
- Porquê, bolas!?
(Está visto que continua)