Entraram em sua casa às 20.02. As «flores-da-noite» abriam-se-lhes, a própria cor se mudara de castanho para um rosa convidativo.
Tendo ido buscar a garrafa de azul, isto é, de «Blootea» azul («Bluetea», afinal), sentiu uma espécie de nojo, incapaz de servir-se do líquido que enchia o interior de uma garrafa em forma de barata. Liz, porém, não parecia impressionar-se. Segurou nessa garrafa com evidente prazer e levou a barata de vidro aos lábios; fez uma careta. Como um gato surpreendido. Tornou a beber: áspero, ácido; depois, a uma terceira golada, o líquido pareceu bruscamente tocar em diferentes zonas da língua, acordar qualquer sentido adormecido no paladar. O olhar da rapariga brilhou.
Controlando o seu asco, Lap imitou-a. Percebeu a repulsa da sua língua impreparada para o sabor estranho, como se tivesse acabado de provar uma substância viscosa, produzida, com efeito, nas entranhas de uma barata. (Desculpem, sim!?) Forçou-se a provar novamente, em busca do mesmo olhar e do mesmo sorriso que Liz já encontrara. E, sim: algo se desanuviava, não só na língua, mas também no peito, nos membros, na mente, no espírito...
Lordingham, chefe do esquadrão que verificava as condições dos bares e dos restaurantes, mandando fechar, violentamente, todos os que não obedeciam, sobretudo, ao «Protocolo do Design», não gostaria de ver um macho e uma fêmea, a sós num apartamento, em torno de um «Bluetea», mas, ahahahah!, que poderia Lordingham fazer?, o apartamento de Lap era o apartamento de Lap, ponto final, não era um bar nem um restaurante, não era um «transporter» nem uma das galerias do ENTRA-4, não era um local público: como raio poderiam os homens de Lordingham saber que, na casa que Lap escolhera livremente - em vez de um veículo, em vez de um videophone -, um homem e uma mulher se entregavam, cada vez mais demoradamente, à experiência, entretanto tornada deliciosa, sublime, de degustar um «Bluetea»?
Estava bêbedo. Estavam bêbedos. Ou seja: eufóricos. Felizes.
- Nunca me senti assim - confessou Lap.
- Sentes-te livre.
- Nããão, não é isso. Livre já eu era. Sempre fui. Agradeço, ao Designer do Universo, ter nascido neste tempo e ter podido viver no glorioso ano de 2057, numa sociedade tão perfeita, tão livre, tão democrática.
- Estás errado - segredou Liz.
- Querias um «Bluetea», não querias? Estás a beber um «Bluetea», não estás? Eu escolhi esta casa, não escolhi?
- Oh, pobre ingénuo, não vês que esse é o segredo da sociedade governada pelos designers?
- «Design é liberdade»! - repetiu Lap o slogan da Confederação (a frase que encimava os templos consagrados ao Grande Designer do Universo).
Liz ria. Com um sentimento de felicidade em que despontava um nódulo de desespero. Ela, filha de professores caídos em desgraça, compreendera que, naquela sociedade livre, em que nada se proibia, os objectos, porém, detinham todo o poder sobre os cidadãos: manipulavam-nos, obrigavam-nos a fazer coisas, a tomar decisões que só aparentemente eram deles, posto que, sob a aparência de «decisões», de caminhos «livres», não haviam sido realmente decididas por eles que julgavam tomá-las...
Nada era proibido porque os objectos, as casas, as cadeiras, os bares, as garrafas de bebida, os bancos de balcão, as pinturas, os postos de venda, tudo-tudo-tudo, tudo coisas concebidas pela Confederação ou aprovadas por esta, faziam fazer o que se esperava que os cidadãos fizessem. Nem mais nem menos. Ele não percebia que as suas próprias cadeiras o impediam de entrar em sua casa antes da hora que se entendia ser conveniente para se entrar em casa, depois de ter trabalhado, bebido um copo, comprado coisas...? Não tnha percebido que até o desconforto dos bancos-de-balcão, longos, sem costas, estava pensado para uma circulação rápida de clientes, que passavam dando de imediato o lugar a outro...?
Alguma vez conseguiria explicá-lo àquele homem generoso, mas tolo?
E valeria a pena?
Oh, Lap, pobre e desgraçado terrestre, tão satisfeito porque escolhera uma casa, em vez de outras coisas, sem perceber que a casa, a própria casa o atraíra, ou seja, lhe dissera, de algum modo, «compra-me», simplesmente porque...
Batiam à porta. Com violência. Com raiva.
(Continuará?)
domingo, março 02, 2008
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3 comentários:
Porque é que não havia de continuar? Os objectos mandam que sim, olha aí o teclado a convidar-te.
Continua siiiiimm...
Não me digas que o Lordinghan descobriu esta orgia particular?!
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