sábado, março 01, 2008

2057 (III)

Lap tinha, em sua casa, uma garrafa de «Blootea» azul. Por outro lado, não lhe apetecia ir já para casa - nunca antes das 20.00 horas porque, até esse momento, todas as cadeiras que existiam no seu apartamento, sob efeito da luz diurna, como que secavam, se tornavam muito rígidas, de modo que só um considerável tempo após o pôr-de-sol é que essas «flores-da-noite», como lhes chamara o designer, desabrochavam, acolhiam, convidavam, abrindo-se então, amolecendo então, seduzindo então.

A casa fora o grande investimento de Lap: como toda a população do quinto escalão da sociedade, também ele, com o seu ordenado restrito, tivera, aos trinta anos de idade, de fazer a grande escolha da vida: uma casa ou um veículo ou um videophone. Quem optava por habitação, teria de usar «transporters» (veículos públicos)e telefonar de «phoners» (videos de comunicação públicos); os que preferiam o veículo, prescindiam de casa (alguns dormiam no próprio veículo, outros não chegavam a deixar o lar paterno) e, que remédio, comunicavam também de cabines fónicas (os supracitados «phoners»); já os que escolhiam videophone, por fim, faziam grande vista quando o atendiam em pleno «transporter», invejados pelos demais utentes, e dormiam, literalmente, em cemitérios, onde se alugavam túmulos. (Em geral, era o que preferiam: não pareceria bem, ou melhor, pareceria particularmente ridículo e absurdo um possuidor de vp - videophone pessoal - viver ainda em casa dos pais...)

Para matar o tempo, Lap conduziu a sua companheira (a propósito: Liz) a um gigantesco posto de vendas, o ENTRA-4: o anúncio desse posto, «Quatro entradas para uma saída feliz», devia ser tomado à letra. Quatro portas iluminadas e alegres, como bocas de consumidores sorridentes, convidavam pequenas multidões a desaguar nos imensos salões, de onde só saíam, relutantantemente, por uma porta estreita e fria diante da qual, muitas vezes, a pessoa recuava, lembrando-se de que, afinal, talvez ainda fosse muito cedo, preferindo dar mais uma ou duas voltas pelas galerias.
- Mas o que vamos fazer aí? - perguntava a rapariga.
- Comprar coisas.
- Não quero comprar nada. Não preciso de nada!
Lap ficou surpreendido com esta resposta. Era uma alienada, estava visto. Uma focinho-de-gato e, ainda por cima, alienada. Uma pessoa sem liberdade, incapaz de fazer escolhas na vida.
- Devemos ser livres -, admoestou Lap, consciente, senhor de si. - Temos de saber escolher. É importante. Por exemplo, entre uma cadeira ou uma máquina de barbear, um candeeiro ou um vestido de noiva, uma garrafa de refrigerante ou...
- Eu já fiz a minha escolha e estou a ver que não consigo satisfazê-la. Quero um «Blootea». Azul.
- Mas... isso não é normal, isso não...
- Porquê?
- Mas...
- Porquê, bolas!?
(Está visto que continua)

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