sábado, março 15, 2008

APRENDER A DESESCREVER

Sartre foi contemporâneo da introdução do som no cinema. E desdenhava dessa inovação. Pior, muito pior: mostrou-se rigidamente contra uma tal mudança. Passados tantos anos, e conhecendo nós a fortuna que a história posterior reservaria ao cinema sonoro, podemos troçar da ingenuidade de Sartre, ou lamentar a sua ausência do dom da profecia, ou a sua cegueira para todas as possibilidades que a invenção encerrava em si. Podemos. Mas faríamos mal, porque os argumentos do filósofo são de uma inteligência fulgurante e porque, no fundo, ele tinha razão. A história encarregou-se de lha retirar, mas o ponto é: o que ele afirma é verdade.

Alegava Jean-Paul Sartre que o cinema nunca deveria confundir-se com uma tentativa de «copiar» e transportar, para a tela, a realidade, e sim ser visto como arte, isto é, como amplificadora, intensificadora do real, numa transfiguração cujos dispositivos seriam, pela própria natureza dessa arte, o movimento e a expressão; por outras palavras, a linguagem do cinema não é a linguagem oral, mas a linguagem dos corpos e dos rostos.
Deste ponto de vista, a ausência de som, o silêncio intrínseco dos filmes, longe de ser uma perda, seria a exigência da concentração do espectador nos outros elementos. E portanto, da mesma maneira que um cego desenvolve capacidades que em nós são incipientes, o grande realizador e o grande actor trabalhariam talentos cinematográficos, de modo a exprimir, sem a distracção do som e da voz, o essencial.

Recupero este argumento porque me sinto, hoje, numa posição similar à de Sartre.
Sei um pouco mais do que ele: sei, por exemplo, que daqui a trinta anos (ou menos) a História terá demonstrado que eu não tinha razão; sei que se terá criado uma normalidade linguística em face da qual os argumentos reaccionários que exponho hoje só suscitarão risos.
Mas a questão é que não posso senão estar contra o acordo ortográfico que já entretanto se estabeleceu. E que me arrepio à ideia de que, para escrevermos como os nossos irmãos lusófonos, deixaremos cair as sílabas átonas, não podendo (senão pelo contexto, como é evidente) distinguir, digamos, a palavra «facto», da palavra «fato». Tudo serão «fatos».

O meu argumento é perfeitamente aristocrático e, por isso, destinado a perder.
Eu sei que a língua portuguesa é difícil de escrever; sei que a maioria dos portugueses comete erros graves; não gosto, de facto, de ler os textos dos meus alunos que, em geral, são ortograficamente absurdos.Não gosto de os ler, de facto, nem costumo lê-los de fato. (E gravata!)
Mas sustento que, de alguma forma, essa dificuldade é um bem, não um mal. Ela significa: «O universo da leitura e da escrita é um universo rigoroso e exigente, uma espécie de templo reservado a uma espécie de eleitos - os que merecem entrar, quer dizer, em última análise, os que estão dispostos ao sacrifício e ao trabalho de aprender a ler e a escrever, fazendo-o com dedicação e cuidado, com atenção, amor e empenho na coisa amada».

A ideia de que, se Maomé não vai à montanha, a montanha que venha a Maomé, isto é, se os jovens - por exemplo - revelam dificuldades em aprender a escrever, então há que resolver o problema reformulando a escrita, libertando-a de todas as agruras, ou de tudo o que faz dela um material particularmente subtil e superiormente expressivo, sempre me pareceu errada. Está ao nível de toda a política da Educação levada a cabo por este ministério: se as crianças têm insucesso, então, em vez de levarmos os alunos ao sucesso (o que seria demasiado trabalhoso), leve-se o sucesso aos alunos, exigindo-se muito menos, aceitando-se quase tudo, dificultando por todos os meios o acto de reprovar. Do mesmo modo: se os irmãos brasileiros, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, são tomenses ou timorenses não lidam bem com os «h» aspirados, os «c» e os acentos que enriquecem o português de Portugal, suprima-se tudo isso.

Gosto muito da objecção segundo a qual, se pensássemos assim, como eu, ainda estaríamos a escrever «pharmacia» ou - na sua versão mais dura - estaríamos hoje falando latim.
É uma objecção (ou «objeção»?) que não faz o menor sentido, ou passa ao lado do problema porque, afinal, a língua irá necessariamente mudando ao longo da História, a ortografia também, e só me parece mal que essa mudança se faça por decreto e num acordo que se estabelece em função de interesses políticos e económicos linearíssimos e pobrezinhos.

Escrever bem deveria ser um orgulho e uma distinção; acredito que aprender a escrever uma língua que tem dificuldades próprias, sem as rasurar nem simplificar, é um empreendimento que estimula a inteligência, que a abre e ramifica, obrigando a mais sinapses e rasgando mais percursos da dinâmica cerebral, do que aprender a escrever na língua do «SMS». :)

Sem comentários: