Um leitor que vinha seguindo aguda e ansiosamente esta história usou a expressão certíssima e certeira: «Não me digas que Lordingham descobriu esta orgia particular!?»
Utilizo a expressão, porque me serve e eu não teria inventado melhor. Orgia particular soa-me bem, agrada-me - sendo que, esta orgia particular teria mais de «particular» do que propriamente de «orgia».
Lap abriu a porta, não a Lordingham, que nunca aparecia em pessoa - a ponto de haver quem duvidasse da sua existência real -, mas a um pequeno grupo de indivíduos vestidos de negro, empunhando pequenos escudos redondos e viseiras que lhes tornavam inidentificável a origem planetária.
Por um microfone situado junto à boca, um dos agentes falou, com aquelas pausas enervantes através de que os polícias se asseguravam que nenhuma palavra escapava ao presumível culpado:
- Os vizinhos... queixaram-se... de risos... e gritos... embriagados... suspeita-se... posse e uso... de substâncias... não recomendáveis, repito: legais, mas não recomendáveis...
«Os vizinhos», pensou Liz, amargamente. Seu pai, professor de História do Período pré-Design (isto é, do tempo até à revolução de 2021), contava-lhe que, outrora, os habitantes de apartamentos se queixavam, frequentemente, de que se ouvia tudo o que acontecia nos apartamentos vizinhos; paredes mal concebidas, lamentavam-se; erros de construção. E pensar que, depois da revolução, o governo dos designers descobrira a virtude das paredes intercomunicativas. Que, de «erro de construção», se tinham elevado à categoria de «paredes não-separadoras», «paredes não-barreira», que não dividiam vizinhos, mas os punham à escuta uns dos outros, os uniam, os ligavam...
- Queira... fazer... o favor... de soprar... aqui.
- É... uma... verificação - acrescentava outro agente. - Simples... rotina.
- Por... favor! - insistiu outro.
- Por... favor -, mais um.
A delicadeza dos polícias era conhecida; mesmo quando agrediam - o que raramente ocorria numa sociedade do design, onde todos eram livres -, mesmo quando agrediam, faziam-no gritando, pelos seus microfones portáteis:
- Perdão.
- Perdão.
Liz estava perdida. Sabia-o. Não era procurada - se o fosse, já teria sido presa há muito - mas encontrava-se referenciada. Por muitos motivos: pela sede da bebida azul, por comportamentos no limiar da rebelião, que transformavam os objectos, recusando-lhes a função e o poder. Não era uma revolucionária, longe disso. Era incómoda. Talvez não chegasse a ser perigosa. Mas era uma pedra no sapato. Mais uma chata do que uma rebelde!
E ninguém a defenderia. Lap, menos do que qualquer outro.
Lap - pobre terrestre tonto -, que mal a conhecia e já fora tão incomodado por ela, dificilmente se ergueria para a defender. Aliás, ele tinha uma casa: ninguém com uma casa se arriscaria a meter-se em sarilhos. Ia acusá-la, portanto, de o ter desencaminhado.
- Por... favor! - insistia o polícia.
O aparelho por onde queriam que ele soprasse, nada tinha de ameaçador. Pelo contrário, era reconfortante. Apetecia entalá-lo na boca e adormecer, como se fosse uma chupeta. Lap aproximava-se. Porém, deteve-se. Olhou-a. Fixamente. Na boca. Na boca de gata.
- Desculpe lá. Eu estava a fazer alguma coisa proibida? - perguntou.
- Nada... é... proibido.
- Sopre... aqui... por favor!
- Por... favor...
Ao invés de o fazer, contudo, Lap beijou-a. Como quem descobre uma escolha que nunca fora escolhida. Como quem descobre um «possível» que sempre estivera escondido ao seu horizonte de possibilidades. Como, por exemplo, preferir um «Blootea» azul. E reivindicá-lo.
Os polícias ficaram sem saber o que fazer. Se aquela escolha fora a conquista de um novo possível para o mundo das possibilidades de Lap, não deixava também de ser, para os polícias, uma revelação: a revelação de uma possibilidade com a qual não sabiam como lidar.
E, desse modo, retiraram-se. Vagarosamente.
Era estranho. Era novo. Para todos.
Liz estava extasiada.
- Ainda há «Blootea» azul? -, perguntou-lhe Lap.
Os polícias regressariam. Com novas instruções ou novas ordens.
Era simplesmente uma pausa.
Mas Lap, mesmo ignorando o que o futuro lhe reservava, entendera e entendia mais, durante aquela curta pausa, do que o que conseguira descobrir ao longo de toda a vida.
2057 seria um ano de que não se esqueceria.
FIM
quarta-feira, março 05, 2008
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3 comentários:
Advinhei a continuação, mas nunca conceberia este fim. Fascinante! Encontrar uma possibilidade improvável... Creio que é disso que eu preciso!
Mais uma história giríssima, Gil! Sou tua fã, já sabes.
Agora... experimentem lá por a entoação do nosso PM na fala do agente... não fica mesmo adequado?
Estou a tentar com a entoação do PM. E ainda não parei de rir! É adequadíssimo. Até já, vou recomeçar...
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