Interrogo-me com alguma frequência acerca da margem de snobismo e vaidade que haverá nesta minha paixão pela obra de Proust; interrogo-me sobre até que ponto será ele sincero, este deslumbramento em face de sete volumes de uma exasperante minúcia na descrição de pormenores dos pormenores provenientes da precisa memória visual e olfactiva, auditiva, gustativa e, sem dúvida, até táctil, de Marcel (a personagem) e de Marcel (o autor), ou, pelo contrário, até que ponto não servirá principalmente para me exibir, como se eu andasse por aí a dizer: «Adoro Proust! Ai, adoro Proust!»
A resposta a tal interrogação surge em dois pontos.
Numa ordem perfeitamente arbitrária, primeiro, o carácter discreto, se não secreto, do modo como vivo esta paixão, a qual trato como se fosse uma tara de que me não covém falar demasiado. Devo dizer que essa é, aliás, uma das razões que me mais me levam a hesitar em escrever um «post» sobre Proust.
Em seguida, o prazer genuíno, indiscutível, com que releio a obra.
O que julgo ver nela e tanto me entusiasma é, por um lado, uma capacidade (uma «competência», como se diz por aí...) de que sou inteiramente destituído: a facilidade na síntese entre o analítico e o sensitivo. Eu sou capaz de descrever e, obviamente, capaz de sentir. Mas descrever as sensações, as características deste ruído rápido do matraquear sobre as teclas, ou deste zumbido, ou decompor o sabor deste gole de uísque com que faço uma pausa para pensar na frase que se segue, é-me quase doloroso. E, por falar em dor: recordo-me bem da dificuldade que constituía, para mim, quando ia ao médico, descrever «exactamente» o tipo de dor que estava a sentir. «É uma dor fininha?», propunha-me ele. Que significa isso? O que será, por oposição, uma «dor grossa»? Devo dizer que um dos grandes terrores que me perturbavam na antevisão de uma ida ao médico não residia no receio do momento em que o senhor doutor forçaria a abertura da minha boca, puxando a língua para baixo sob a pressão da malfadada espatulazinha e, com isso, quase me fazendo vomitar (sim, tal seria o meu segundo pavor), mas no momento em que ele me perguntaria: «Diz-me lá exactamente o que estás a sentir». Tinha pesadelos, imaginando que a doença poderia ser mal diagnosticada por defeito das minhas descrições, ou por um «sim» leviano, precipitado, à simples questão: «É uma dor fininha?». Ou: «É uma dor que aperta?»
Mas, sobretudo, delicia-me aquela atenção de Proust ao evanescente, ao que está disperso no tempo, ao que passa, ao que não dura, ao que não ficará, ao que já cá não se encontra no preciso momento em que acabo de o apontar; delicia-me aquela atenção ao superficial que é, curiosamente,uma das marcas da profundidade; a subtileza do que muitos vezes não captamos na sua essência à primeira leitura e, portanto, a que teremos de retornar. Extasio-me (como diz o próprio Proust de uma personagem, o escritor Bergotte) com o seu poder de pegar numa percepção por um ângulo tão pouco usual que parece um ângulo errado, produzindo, a partir dele, um sentido originalíssimo, paradoxal, de uma invulgaridade arrepiante.
Entrego-me à sua observação de contradições nos sentimentos, sempre complexos e carregados de cambiantes, em todas as personagens, na evidência reiterada de que nada é simples, de que palavras como «amo» ou «detesto» são meras etiquetas, porque há no amor sensações que se digladiam e chocam, como há no «detestamento» estranhos e inesperados elementos de atracção.
Saio de uma página de Proust completamente rendido e plenamente satisfeito, como se tivesse atingido um cume.
Não é uma experiência de que me ouvirão falar muito. Não por egoísmo, não por pouca vontade de partilha. Mas porque o próprio nome, Mar-cel Proussst, soa a clássico, a pesado.
Saboreiem só, quanto mais não seja, todas as reverbarações deste título. «Em - Busca - do - Tempo - Perdido».
Não é maravilhoso?
quarta-feira, junho 25, 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
E eu que te deixei um post tão lindo!Precisamente porque falavas de Proust! Este sim valia a pena comentar, não recebeste? Oh!
Mas nota que eu sou um eterno insatisfeito: devo deste comentário concluir que os meus outros postos NÃO valia a pena comentar!??? Estou a brincar, Sara. Benvinda de novo...!
Não é postos, é «posts»
Estive sempre por aqui...sabes que não é só de "gato", de "janota" e, «anja»,que se fazem as gloriosas contagens do teu blogue.Imagina!!!
Pois, dois dias antes de escreveres o teu amado post sobre Proust, estava eu a pensar enquanto os meus olhos corriam e mergulhavam num enredo de um livro, que com Proust isso não me acontecia, de todo.E lembrei-me de como tu amavas Proust, e esperavas com ansiedade de amante a saída do próximo volume .
No silêncio a comunicação continua, pensei em tudo isto, e dias depois escreveste um post sobre o Teu Proust... Lindo não é?
Estás a ver, não que os outros não valessem a pena comentar, de todo. Mas este sim, merecia uma celebração!
E gosto da minha posição de voyeur no teu blogue, eheheh!
Enviar um comentário