sexta-feira, dezembro 23, 2005

COMENTÁRIO

O slogan de campanha de Mário Soares: «Sempre presente nos momentos difíceis».
Minha teoria: Obrigado! Presente nos momentos difíceis, «porque» a criá-los!

domingo, dezembro 18, 2005

UMA PALAVRA

Todas as manhãs se levantava para levar o filho à escola.
Desciam ambos. Preparava o prato. Aquecia a água. Adicionava-lhe farinha. Mexia com um garfo, vendo a papa ganhar consistência. O menino comia depois, imitando vozes de super-heróis, enquanto o pai emborcava um breve copo de leite. Vestia-lhe, a seguir, o casacão. Carregava-lhe a mochila. Entravam no carro. Todos os dias.

A mãe ficava na cama, coitada, porque havia também uma outra criança, recém-nascida.
Todos os dias a mesma rotina. A saída. O prato, a papa, o casaco, «Estás pronto, filho? Então vamos. Não batas com a porta, para não acordares a mana e a mãe.»
Todos os dias da mesma maneira. A papa. A mochila. Não batas com a porta. O carro tentando pegar apesar do motor frio.

Mas nesse dia, por acaso, a mãe descera com eles. A menina dormia o sono dos justos. A mãe sentara-se à mesa, no seu roupão velho, grená, assistindo ao espectáculo. Não resistia, contudo. Interferia. Emendava.
- Só isso? Isso é pouca água. O menino tem dez anos. Assim fica com fome.
- Não é nada pouca água. Faço-lhe assim todos os dias.
- É pouca. Fica com fome. Deixa cá ver.
Levantou-se, arrancou o prato das mãos do homem, encheu-o com mais água, «Assim é que é», adicionou-lhe mais farinha, mexeu, entregou à criança que esperava, de colher na mão, o fim do confronto.
O menino começou a comer. «É muito, mãe. Já estou enjoado.» E ela, segura de si no seu roupão grená. «Comes, que te faz bem! Se não, ficas com fome...» «Mas ó mãe...» «Eu é que sei!»
A criança começou com vómitos
- Não puxes os vómitos, que me fazes zangar...
- Não estou a puxar, mãe.
Levantou-se, aflito. Correu para a casa de banho. Da cozinha, onde se encontravam, ouviam-no ribombar, despejar a papa, esvair-se inteiramente para a sanita.
O marido, sob a piedade e a preocupação com o seu filho, não conseguia deixar de, intimamente, mesquinhamente, gozar uma espécie de triunfo. Se não fosse tão mau que o garoto estivesse tão mal, era quase bom de mais. Pensou: Vou manter-me calado. É melhor. Se eu não disser nada a minha vitória é maior, mais espessa, mais brilhante. Que superioridade. Que dignidade. Vou somente ver se o miúdo está melhor. Não digo nada, não digo nada, não digo nada. Ela sabe que é a culpada. Ela sabe que se excedeu na papa. Eu calo-me. Silenciosamente superior. O absoluto triunfo no mais completo silêncio. Vou aguentar. Vou aguentar...
Mas era de mais. Já à porta, voltou-se para a mulher:
- Vês!?

IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS

Muitas vezes, a perfeita sintonia não é mais do que um equívoco de que não damos conta. O amor da minha vida, o livro ou o filme que mais me tocaram, as palavras que me consolaram na hora em que delas precisava, poderão ter tido esse estatuto, não porque eram realmente o que neles vi, mas por não ter visto o que realmente eram. Tal como uma fala que me comove porque não a interpreto como irónica...

O GRANDE EQUÍVOCO

Tenho para mim a teoria de que não existe a indiscutida simpatia entre Mário Soares e o povo português, o laço fundo afectivo que, durante anos a fio, nos parecia ser uma evidência: o político que despertava o sentimento das massas, com as suas bochechas infantis, as suas gafes constantes e perdoáveis, o seu tom compreensivo e carinhoso a que ninguém resistia, remetia secretamente, na verdade, para antigos ódios e ressentimentos vários. Ex-colonos e retornados que se queixaram sempre de que este homem foi o rosto visível de uma descolonização atabalhoada, que estragou muitas vidas; ou pessoas dos mais diversos estratos, que viam em Soares o traidor, constituíam uma massa recalcada mas gigantesca. Votou-se nele - para o governo ou para a presidência, mas nunca por convicção, muito menos por amor: era o voto possível, o voto útil à esquerda, o sapo que os comunistas engoliam para evitar pior. Não sei por que se cultivou essa imagem do único político genuino, cuja autenticidade o povo sentia. Julgo que foi uma ilusão que germinou à superfície, sobre ódios de estimação, raivas surdas, fúrias tremendas, que, inesperadamente, em momentos aparentemente de festa e romaria, explodiam em dramas mínimos: agressões na Marinha Grande, ou, agora, pela mão de um maluquinho de boina. Nunca se deu grande importância a estes actos tresloucados: uma andorinha não faz a Primavera, um doido à solta não faz o manicómio, não chega para definir um sentimento geral. Ora, em certos momentos,estes maluquinhos, estes actos inconsequentes, são a ponta do icebergue. Repito: Soares nunca foi amado - pelo menos, não como ele pensava, não como o PS acreditou. E é pena, para ele, que tenha de acordar bruscamente dessa doce ilusão, aos oitenta e não sei quantos anos, por causa de uma terceira candidatura em que se não devia ter metido. Ou muito me engano...

segunda-feira, dezembro 12, 2005

IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (I)

Há pessoas que, mesmo quando estão de acordo, conseguem está-lo sob a forma de discórdia

IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (II)

Na verdade, os acordos não têm de ser expressão de compreensão mútua: já não é mau, por vezes, que sejam acertos relativamente ao modo de as pessoas mutuamente se incompreenderem

REVELAÇÃO

O menino Jesus está de novo entre nós. E já o reconheci: só pode ser o Avô Cantigas. Também já notaram como ele ressuscita em cada Natal dos Hospitais?

sexta-feira, dezembro 02, 2005

LE BLOGUE C'EST MOI

Sempre li na célebre frase de Luís XIV, «L'État c'est moi», o mais extremo exemplo de arrogância absolutista, a ilustração perfeita do poder egocêntrico ao qual tudo e todos serão sacrificados. Neste momento, de cabeça solitariamente tombada sobre o meu blogue, que ninguém comenta, que talvez ninguém leia, ou que, porventura, uma ou outra alma venha rapidamente a aflorar, numa espécie de zapping de blogues, antes de passar de imediato ao seguinte, consigo interpretar de outro modo o L'État c'est moi. Porque me reconheço - com leves diferenças - nessa ideia de coincidir, inteira, absoluta e solitariamente, com qualquer coisa. Neste caso, com o meu blogue. Não há um eco, não há uma resposta. Não há um aceno ao longe. Por esse universo infinito deslizo, montado no sótão de uma casa em S. Domingos de Rana, dentro de um planeta em vias de extinção, teclando em vão num computador, como em busca de sinais de vida inteligente - que não vêm, que não vêem, que não me lêem! Na frase de Luís XIV percebo, hoje, um grito de solidão, um desespero sem remissão. Ninguém quer ser, sozinho, o Estado. Ninguém quer ser, sozinho, um blogue inteiro. Ninguém quer ser sozinho. E dou por mim a pensar: não é possível que nada do que vou escrevendo interesse a ninguém mais senão a mim próprio, e às vezes nem mesmo a mim mesmo. E dou por mim a pensar: como pode ter acontecido esta espécie de erro genético que é, no meu caso, até um blogue, caramba!, até esse privilegiado instrumento de comunicação e comércio de ideias, que é um blogue, ter-se transformado em mais uma forma de solidão. Como se, para continuar a pensar de mim para mim, para continuar falando comigo, fizesse qualquer sentido a mediação da internet. Porra!

quinta-feira, dezembro 01, 2005

A ESCOLA É PROFUNDAMENTE DESTRUTIVA

A escola destrói. Sei do que falo: sou professor. Mais do que isso, sou pai - e o pai que sou não pode deixar de sentir um tremendo abalo interior, um desequilíbrio emocional, de cada vez que pára o automóvel à porta do gradeamento e, madrugada ainda, vê sair o seu filho para o frio, para o cinzento daquela casa, muito pequenino, muito fininho de pernas,ensonado, com o mundo já sobre as suas costas, sob a forma de uma mochila onde se acumulam dois volumes por disciplina. Recebo um beijo, acrescento, ao peso que ele carrega, umas últimas recomendações e arranco para não chorar. No espelho retrovisor vejo o vultozito tragado pelo sistema.
O meu filho estava, ainda há pouco, no infantário. Estava, ainda há pouco, na escola primária. Parece-me que saiu ontem mesmo do quarto ano. Entra agora, perdido, desintegradíssimo, num lugar imenso, em que tudo é enorme e se multiplica como num filme de ficção científica: diversos professores, meninos de vários anos, muito crescidos, de ar suspeito, com os seus skates. E estes professores que o esperam não percebem o salto que constitui saír-se do aconchego da professora única. Não percebem nada. Esperam-no, pois, cheios de si, esquecidos do que é ser-se criança, do que é evoluir, do que é verdadeiramente aprender. Do alto da sua exigência, tudo lhes parece mal: que falem nas aulas, que não tenham adquirido a motricidade fina, que escrevam com uma letra feia...! Ofendem-se. Penso, muito sinceramente, que lhes falta sensibilidade para o progresso. Que lhes custa que os alunos ali estejam para aprender, podendo sempre evoluir - não somente para serem testados. Não somente para provarem o que são já capazes de fazer.
Entendo, por outro lado, que os adolescentes normais e saudáveis são maus alunos: são poços de energia e vitalidade, desatentos e porcos, curiosos e tagarelas, prontos a rir e a distraírem-se por dá cá aquela palha. Não que todos os bons alunos sejam anormais, mas, em muitos casos, são meninos infelizes, com poucos amigos e pouca vitalidade física, que nunca dariam bons jogadores de bola.
A escola só deveria ter o direito de testar, se fosse capaz de os testar em múltiplos aspectos, tirando sempre partido de todos, reinventando-se para os melhorar naquilo em que eles podem ser melhores, em vez de os humilhar numa comparação perpétua com os outros.
Em vez disso, os professores planificam segundo objectivos. Vou fazer uma confissão: determinar objectivos é o que conheço de mais anti-pedagógico. Significa não me abrir à turma nem aos meninos, não ir ao encontro das suas capacidades, da sua imaginação, das suas carências, dos seus prazeres. Significa enfiá-los num corredor onde só conta o que eu exijo que conte, em direcção ao que eu estabeleci que deveriam saber, e testarei para ver se realmente sabem.
Estão enganados. Não ando a pregar novos métodos. Métodos «facilitistas». Não penso que que os alunos devam ser largados ao sabor da motivação. A escola deve assumir-se como um lugar de promoção de regras e de sacrifício. Os alunos devem estudar, devem ouvir. Devem registar, devem aperfeiçoar e aperfeiçoar-se: mas não pode ser um lugar do sacrifício acéfalo, que não procura tocar em cada um, que se reduza uniformemente a um saber único.
O meu filho chega a casa com imenso que estudar. Passa horas no sótão. Não tem tardes para ele. Anda fatigado e cheio de sono. Traz, na caderneta, queixas registadas pelos professores.
Como professor e como director de turma, que sou, exasperam-me os pais que se demitem e não compreendem que o problema não é, muitas vezes, do professor, mas dos meninos.
Como pai que se não demite, exasperam-me os professores que testam, testam, testam, fazem trabalhar, trabalhar, trabalhar, incapazes de fazer evoluir e de acreditar que se pode evoluir...
O meu filho vem com negativa a EVT. O professor lamenta-se de que ele não adquiriu motricidade fina: estava à espera de que a tivesse adquirido para não ter de lha treinar, de a educar?
O meu filho vem com negativa a português.
A insensibilidade, dizia a minha amiga Maria, é a burrice dos sentidos.
Nesta história, o burro não é, certamente, o meu filho.

sábado, novembro 19, 2005

LUGARES-COMUNS DE ELITE

Para além dos lugares-comuns muito comuns, grosseiramente comuns, aqueles em que mergulha a nossa fala como se fosse o ar que respira (a expressão que vim de escrever, aliás, é um bom exemplo), há um outro tipo de lugar-comum, mais reservado, ou seja, menos comum - sem deixar de ser lugar-comum: trata-se, por exemplo, de uma certa expressão, ou de um tipo de frase, ou de uma ideia, circunscritos a uma esfera sofisticada de pessoas. É, portanto, um lugar-comum mais plástico, mais subtil; vem-nos às vezes sob a forma de um paradoxo, ou de uma pequena insensatez irónica, que nos soam inteligentíssimos, fulgurantemente incomuns, razão pela qual nem sempre nos apercebemos de um travozinho a «déjà-entendu». Eis um brevíssimo léxico:

À cabeça da lista, justamente, adequar-se-ia a seguinte ideia: «Por alguma razão os lugares-comuns são lugares-comuns», como se fizesse sentido atentarmos mais cuidadosamente no que há de, «afinal», interessante em qualquer lugar-comum... (Pacheco Pereira, por exemplo: «É uma banalidade. Mas as grandes banalidades contêm grandes verdades»; cito de memória)
Em segundo lugar, colocaria a expressão «politicamente correcto»: na acepção em que os cultos gostam de a usar, tem uma conotação crítica. O «politicamente correcto» é o pensamento virtuosamente básico contra o qual é bom ser-se «politicamente incorrecto». Ou seja, ser-se um «provocador». Aqui está já a terceira entrada deste léxico: «Isto é, no fundo, uma provocação», sublinha, todo satisfeito consigo, o «provocador» himself, como se dar-se a conhecer como tal não fosse, precisamente, um gesto apaziguador, que reintroduz a provocação no domínio do aceitável: Não te zangues, pá, isto é só a brincar...
Tão português! Mas eis que, assim, apresentamos outro lugar-comum fino e filosófico. O de observar as incongruências do falar ou do comportamento lusos. Podemos ser tão observadores nesse capítulo, e tão engraçados!: já repararam, por exemplo, que os portugueses usam a absurda expressão «tem de ser» para responderem a quase tudo? «Então, por aqui?» «Tem de ser...»; «Vai passear?» «Tem de ser...» Ora o lugar-comum sofisticado consiste em sublinhar inteligentemente o absurdo desta e de outras respostas típicas. (José Gil escreveu, como se sabe, «todo» um livro sobre Portugal, que é, fundamentalmente, isso mesmo).
A última pérola - mas esta soa inteligentíssima: já a ouvi à Maria do Céu Guerra, ao Gonçalo M. Tavares, enfim, a alguns dos nossos melhores intelectuais - é, com ténues variações, o seguinte pensamento: tal como há escritores - ou actores, ou o que seja - de talento, também se pode falar (mas talvez mais raramente) de leitores - ou públicos, ou que seja - talentosos.
Apetece dizer: Enfim, é a vida!

sexta-feira, novembro 18, 2005

BARATA MOURA: REGRESSO AO FUNGAGÁ?

kaostico
Conheci de ouvido o Barata Moura talvez no fim dos anos setenta, quando ele era um alegre baladeiro, de barba encaracolada e viola em punho. Sei que, para além da intervenção contra a burguesia, também cantava para as crianças: o Joana Come a Papa, A Banda do Maestro Pinguim, A cidade do Penteado e outras, que talvez ainda hoje atiremos aos nossos filhos, eram a marca do Barata Moura - havia um disco seu chamado «O Fungagá da Bicharada»

Conheci um outro Barata Moura, talvez nos anos oitenta, na Universidade de Lisboa: era Professor de Filosofia; estou a vê-lo sobre o estrado do anfiteatro, a mesma barba encaracolada, os óculos de aros grossos, a imitar tartaruga, escorregando pela cana do nariz, a voz poderosa e bem colocada, mas para nos lançar na luta-livre da reflexão filosófico-política. E, precisamente pelo desnível entre estes dois Barata-Mouras, o das cantigas infantis e o das filosofias maduras, pelo reconhecimento de uma tão paradoxal diversidade na pessoa, deixei-me arrastar, hipnotizado, adorando-o secretamente, usando cada uma das suas palavras como degrau interior.

Tornei a reencontrá-lo, muito mais tarde, como Orientador de um inesquecível Seminário de Mestrado: Kant, Hegel, Fichte, o idealismo alemão sob a lente de Marx, que tudo invertia e renovava...

Nunca mais o ouvi cantar. Nem, entretanto, falar. Tornara-se Reitor da Universidade, perdi-o de vista. Reencontrei-o no outro dia, no ecrã da minha televisão, muito «Reitor», muito cheio de si, debitando lugares-comuns perante uma entrevistadora reverente e uma assistência maravilhada, concordando, respeitoso, dialogante, com um outro interveniente, Dom Policarpo, para, um minuto depois, retorquir com uma estranha má-criação à intervenção de uma pobre Maria José Nogueira Pinto, do alto de um pedestal que levava consigo, paternalista, douto, superior, implacável, só tornando a serenar, a seguir, diante das palavras, novamente, de Dom Policarpo...

De certo modo, tudo isto me entristeceu. Neste Barata Moura que se acerta com o quase-Papa e reduz grosseiramente a outra pessoa a nada, tive dificuldade em reconhecer o filósofo dos meus intemporais tempos da universidade - como se o estatuto de Reitor houvesse exercido um terrível e triste efeito no seu espírito.

Se ao menos, em vez de nos deixar assistir ao espectáculo de ficar completamente gagá, regressase uma última vez, por alguns instantes, ao Fungagá...

segunda-feira, novembro 14, 2005

SEMIÓTICA DE «UM» GESTO PORTUGUÊS: UMA REFLEXÃO AO JEITO DE JOSÉ GIL

Os portugueses que conduzem têm um gesto muito próprio, muito típico, muito simbólico, que é o de porem uma mãozinha de fora da janela no momento em que avançam: quando não têm prioridade mas mesmo assim vão em frente, quando esperam que lhes cedamos a vez, quando fazem, contra nós, alguma coisa que os compromete e envergonha um pouco, ou quando se preparam para a fazer. Esse maravilhoso símbolo que é a mão lançada de fora, como uma bandeirola, vive da sua ambiguidade; vive de não se saber com precisão o que significa e de, no mesmo lance, significar diversa e talvez opostamente: ela quer dizer, por um lado: «Pára, que eu vou avançar»; quer dizer, ao mesmo tempo, vagamente: «Obrigadinho», ou «Estás a deixar-me entrar? Obrigado, pá...», ou, também: «Vá lá, faz-me um jeitinho» e, sobretudo (ia-me esquecendo) um: «Desculpa» ou «Desculpa aí, pá!»
Não sei se, por si só, este gesto tão peculiar me autorizaria a interpretar a essência lusa. Mas, a fazer fé no livro de José Gil, Portugal Hoje: O Medo de Existir, que, francamente, produz toda uma filosofia sobre a portugalidade a partir da observação de gestos mínimos, ou de frases corriqueiras, ou de comportamentos típicos, por que não? Vejamos, pois: o português tem sempre em mente passar à frente de alguém. Não estabelece grandes metas: basta-lhe entrar numa rotunda, ou não parar num stop, ou ultrapassar uma velhinha que guia um automóvel pouco aguerrido. O que interessa é que possa ficar com a sensação de que enrolou alguém, de que, se não foi muito longe, pelo menos ficou à frente de um gajo menos lesto, tirou o lugar ao outro, pregou uma partida. Mas é próprio do pequeno espírito luso que a sua pulhice, aquilo que, na terminologia filosófica de José Gil se chama o «xico-espertismo», nunca se assuma por inteiro na agressividade que a move: assim, se por trás da sua «ultrapassagem» está um rancorzinho de trazer por casa, uma ferocidade miúda, é necessário que ela se possa transformar, se for caso disso, num repentino acto de submissão, num agradecimento de última hora ou mesmo num pedido de desculpas. A mãozinha do condutor português é a medida da sua ambiguidade, e esta, como no caso do gesto que estamos vendo, e tanto pode ir da ferocidade de um «Pára aí» até à delicadeza de um «Dás-me licença?» ou à cortesia de um «Desculpa lá o mau jeito» é, por sua vez, a medida da cobardia das suas ousadias...

PEPITO À ESPERA DA VIDA

Pepito ganhara muito dinheiro. Ilegal, legalmente? Quem sabe? O certo é que decidira comprar o automóvel dos seus sonhos. Foi ao «stand» onde o carro o esperava, com um emblema que era o símbolo de uma vida triunfante, rebrilhando à luz artificial da casa. Entrou: ah, era então assim que se sentia um homem poderoso, desses que sabem que basta um gesto para transformarem o mais arrevesado desejo em realidade. Pigarreou, para chamar a atenção. Poderíamos confessar que talvez, intimamente, lhe apetecesse olhar para aqueles vendedores um pouco de alto, do pedestal do seu recém-adquirido poder. Mirava em volta, ansioso por que lhe dessem uma oportunidade de se exibir. Não aparecia ninguém. Havia por ali pessoas, sim, mas ninguém que acorresse. Um homem estava ocupado com umas clientes - umas velhinhas, vejam bem...! Atendia-as pressurosamente, a cabeça ligeiramente inclinada, como os cães quando prestam atenção. Um outro vendedor atendia um fulano de cabelo grisalho, que reclamava por causa de um problema no ar condicionado. Uma rapariga falava ao telefone. Um sujeito de rosto acinzentado lia o jornal, atrás de uma secretária, com os pés cruzados sobre o tampo, deixando ver um buraco na sola. Pepito pigarreou mais alto. Houve quem o olhasse com semblante feroz, com um olhar que parecia soar como um «shh!». Sentou-se, um pouco surpreendido de que o volume da sua carteira, no bolso do casaco, não chamasse a atenção, não disponibilizasse imediatamente alguém. Pepito vinha para comprar - e a pronto!, «cash», como ele dizia, o que podia hoje pela primeira vez, e talvez amanhã, talvez nunca mais tornasse a poder. O tempo passava. O senhor que viera reclamar já se tinha retirado, mas o homem que o acompanhara não veio ter com Pepito. Em vez disso, lançou para o ar, para todos e para ninguém: «Vou tomar o pequeno-almoço. Até logo!» E saiu.
Ao fim de quase um quarto de hora, um bom quarto de hora durante o qual Pepito não sabia se sentar-se, se passear, e se foi deixando estar com um café de máquina na mão, alguém, por fim, se aproximou dele. Um rapaz mais jovem, que ainda não tinha visto. Conversaram durante poucos minutos. Pepito apontava-lhe o automóvel, pedia-lhe que o deixasse ver por dentro, sugeria um test-drive, falava em comprar a pronto, puxava orgulhosamente da carteira...! O rapaz revelava um ténue enfado. Olhava disfarçadamente as horas: «Mostrar-lhe o carro?», parecia enjoar-se com a ideia, «fazer um test-drive?» Pepeito estava estupefacto. Abismado. Quis ser irónico: «Não me diga que também ainda não tomou o pequeno-almoço...!?» Ao que o jovem respondeu, sorrindo ao de leve: «Não, na verdade não. Mas talvez o meu colega não se importe de lhe... Ó Júlio, chegas-me aqui um instante?» Era o leitor do jornal. Arrastava os pés - Pepito sabia, pelo menos, como se fosse um início de vingança, que sob um dos pés dele, numa das solas, havia um buraco. (Isto não pode ser assim. Vou abrir a carteira, contar as notas, para eles perceberem que venho mesmo para comprar). Pepito abriu a carteira recheada diante do acinzentado. Não o entusiasmou. Via-o olhar de revés para os títulos do jornal, que abrira sobre uma mesa mais pequena, perto dos dois. Estava a ler. Fingia prestar-lhe atenção, assentia delicadamente com a cabeça, mas os seus olhos fugiam-lhe constantemente para as gordas da «Bola». Pepito levantou-se. Sentia-se preso de um cansaço horroroso. «Sempre quer ver o carro?», perguntava-lhe o Júlio acinzentado, com o buraco oculto na sola. «Não, deixe estar. Não vale a pena», retrucou Pepito, um pouco envergonhado consigo. Saiu em passo lento. «Que porcaria de país este!», pensou. Sentou-se na esplanada de um café. Mandou vir coisas. Ia gastando dinheiro, coitado: mandava vir coisas...

domingo, novembro 13, 2005

DUAS BREVÍSSIMAS NOTAS

1. Está assente, entre os políticos que conheceram e lutaram contra o fascismo, a ideia de que todo o discurso anti-político é um perigo e, no limite, uma ameaça à democracia. Soares, que tanto se enerva por Cavaco insistir em que não é um político profissional, constitui um bom exemplo desse discurso anti-«discurso-anti-político». Mas: que sejam estes cinco os nossos candidatos à presidência da República, não é já, só por si, uma justificação de todos os discursos anti-políticos?

2.Hão-de ter reparado que não há, no meio desse mar encapelado de cartazes de campanha, um único com o rosto de Cavaco ou com a ordem «Vote» nele. Não sei se o manterá, se terá coragem para persistir nessa ausência durante a campanha inteira. Não sei se isto não é um mero atraso de arranque. Se a mantiver, terá ganho vários trunfos: a) Vai enervar Soares; b) Vai fazer com que falem mais de si próprio, por essa razão, do que de todos os outros juntos; c) Ler-se-á também, no seu gesto, uma crítica ao gasto de dinheiro que todas as campanhas representam - neste caso, para mais, num momento de crise do país. D) Finalmente: que mensagem de confiança em si próprio: eu não preciso de me envolver nessa luta menor, entre marketings partidários. Os portugueses conhecem-me: estou acima disso!!!

sexta-feira, novembro 11, 2005

A REALIDADE SEGUNDO TAVEIRA

Quando tomou bruscamente consciência de si, como se acabasse de acordar, estava na casa de banho, em pé, completamente nu, diante do espelho, segurando uma lente de contacto num indicador estendido. Não se lembrava de como, quando, por que fora para ali. Os seus últimos gestos haviam-se apagado. Em rigor, nem sequer sabia se, por exemplo, ia pôr aquela lente de contacto, e se no olho direito, se no esquerdo, ou se a estava tirando. Sabia simplesmente que era o Taveira, vivia sozinho, trabalhava em propaganda médica.
Pensando na sua estranha situação, na sua estranha nudez, na sua vida de todos os dias, deixou que uma memória que não dizia respeito nem àquela casa de banho, nem verdadeiramente àquele homem que o espelho reflectia, uma memória de algures, principiasse a invadi-lo. O sonho, pensou. Era a memória de um sonho que tivera... quando?
No sonho, Taveira não era Taveira. Era Brzk. E não tinha uma casa de banho numa casa de S. Domingos de Rana. Vivia na parte mais profunda e obscura do interior do planeta Qwy, a parte aonde não chegava a luz da lua interior, artificial, de que dependiam os seres da primeira camada ou círculo.
Na zona profunda em que vivia Brzk, o último círculo, só as lagartas luminosas produziam uma ténue claridade, que ele e o seu grupo ampliavam juntando, inteligentemente, várias dessas lagartas em receptáculos transparentes: uma espécie de candeeiros...
O seu grupo, envelhecido, banido, esfomeado e subversivo, vivia, apesar de tudo, num estado de permanente euforia: os cães dançavam e os homens e as mulheres devoravam, durante longas cerimónias, de cariz sexual, as lagartas luminosas, que se não os alimentavam, alegravam o espírito.
Por vezes, o bando sofria ataques. Animais ferozes ou religiosos fanáticos, que os odiavam, surpreendiam-nos com uivos, gritos e pedras-maléficas.
Quando o planeta fora invadido por semideuses, mergulhados no seu eterno combate com os invejados deuses, tudo mudou. A estratégia dos semideuses invejosos não previa o confronto directo: em vez disso, raptavam espécies nos mais diversos recantos do universo, escravizavam-nas e lançavam-nas, transformadas em hordas de combate, contra os divinos.
Foi por tudo isto que a Assembleia dos Pálidos, que reinava na primeira camada, seres superiores, próximos da lua interior, decidiu fazer um trato com o grupo de Brzk: por muito andrajosos, por muito subversivos, eles eram, naquela altura, os únicos - talvez por não terem muito a perder - a poderem ser enviados aos semideuses, deixando-se escravizar por eles, com a secreta missão de assassinar a mãe mortal - que, numa sucessão imortal de filhas de filhas, de filhas, embora se julgasse que era sempre a mesma... - alimentava(m), desde sempre, os invejosos semideuses...
Taveira suspirou. A lente de contacto principiara a secar no seu dedo. Havia um equívoco. Teria Taveira estado a sonhar? Como poderia um simples sonho ser tão demorado, tão completo, tão vívido, e possibilitar uma memória tão intensa, tão carregada de sentido - tão cheia precisamente do sentido que, pelo contrário, o quotidiano de Taveira nunca revelara? Por que raio não seria o contrário? Por que não seria ele, de facto, Brzk? Por que não seria Taveira, inversamente, o mais miserável, o mais medíocre dos seus sonhos? Suspirou novamente. Fechou os olhos: procurava despertar. Procurava regressar ao seu planeta, de onde, por um desnível do universo, com certeza que era essa a explicação, por um desnível do universo caíra numa pele que lhe não pertencia...

DA BIZARRA ANALOGIA ENTRE SARAMAGO E ALEGRE

Mentiria se vos dissesse que sou um fã de José Saramago. Não sou: moralmente, a arrogância que emana da sua personalidade, a rudeza e a má-criação no trato com os outros, a convicção de que o país lhe deve um pouco da glória que nos empresta, indispõem-me; politicamente, a estreiteza da sua visão, o maniqueísmo das suas tomadas de posição - para já não falar de um passado conhecido de intolerância - arrepiam-me; literariamente, a banalidade de certas ideias, o traço demasiado grosso e sem subtileza das suas tentativas de ironia, nunca me convenceram. O que dá um todo pessoal-literário quase odioso, embora, claro, uma coisa seja a vida, outra a obra. Salvaria, então, da obra, se, naufragando, tivesse ainda tempo para escolher alguns dos seus livros, O Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e, agora, este As Intermitências da Morte, que estou ainda lendo. O resto - ou nada acrescenta, ou pouco vale.
E, todavia, o escritor Saramago, que seria (e é), no fundo, isto e nada mais do que isto, nada mais do que esta pobreza, cresceu para além de si, ofereceu-nos outra coisa. Não evoluiu realmente, não se tranformou (basta lê-lo para ver que a pasta da sua escrita é, no essencial, a mesma pasta imperfeita), mas abriu-nos para algo diferente de si. Essa escrita - tão criticada mas, ao mesmo tempo, tão imitada - que podia nada mais revelar senão o recurso estilístico que consiste em, numa mesma frase, longa, única e confusa, juntar diversas falas, a do narrador e a de muitas personagens, num diálogo que subsume, em uma só voz, uma voz múltipla, acabou porém, quase contra o próprio autor, por ganhar insuspeitadas dimensões, vagas ressonâncias, que marcam, abrem, renovam. Encontramos neste estilo em que Saramago tropeçou, um sentido que é já mais do que Saramago, e possibilita o que não estava nem no talento nem na capacidade deste homem.
Mas este «acrescento» é, também, o que encontro em Manuel Alegre, o Candidato à Presidência.
Temos um homem de partido. Com um passado que coincide com a génese e com a história do PS, feito de lutas contra o exterior, e de lutas intestinas. A democracia a que aspirou foi sempre pensada à medida do Partido Socialista, tecendo nesse trabalho as suas cumplicidades, ligações, rivalidades. Mas sucede que por más razões, porventura pelas piores razões imagináveis, este homem de partido tornou-se o único candidato à presidência da República que não tem para prometer, se quiser singularizar-se, senão o desígnio de rasgar espaços de intervenção fora da alçada partidária. Ele é o único que, afinal, nos lembra que a democracia não tem de se esgotar na esfera dos partidos, que há possibilidades de fazer vir ao de cima uma acção de pura cidadania. Não me interessa se está a pensar na participação dos cidadãos em ranchos folclóricos, se em clubes de jogo da bisca, se em grupos de amigos do corno luso. Não me pergunto em que espaços de intervenção estará pensando, nem se haverá ainda outros, nem sequer se, uma vez presidente, Alegre cumpriria coerentemente este desígnio. Para já, limito-me a reconhecer que o homem simboliza este estimular da sociedade civil. Está para além de si. Oferece o que está para além do seu passado e da sua essência. Fá-lo contra si. Mas fá-lo. E nenhum outro o faz assim...

RECOMEÇAR

1. O Kaostico teve uma falsa partida. Mea culpa. Reabre hoje, com a mesmíssima gerência mas uma outra estratégia. Em vez de atacar por todos os lados, sem pausas para café, deixem-me começar por explicar o conceito e o plano.
2. O Kaostico não tem um tema nem um assunto, nem ao menos uma área de interesses privilegiada. Daí o «Kaos» de Kaostico: mudança de registo e de plano a cada linha, séries de palcos, saltos e piruetas, ora desço aqui, ora subo além. Ah! Ah! Ah! Nunca estar onde me vêem, ou já lá não estar quando principiam a ver-me de mais. Espreitar de onde se não espera. Ah! Ah! Ah! Política e filosofia, debate, conto e poesia, anedotas e receitas, Ah! Ah! Ah!... hum... desculpem, isto é do nervoso, é da excitação.
3. Kaostico é, também, «cáustico»: não consigo não o ser. Às vezes lamento. Gostaria de poder exprimir antes o meu amor, a ternura que me toca, a graciosidade, a leveza, a esperança. Contudo, é inevitável: uma espécie de veneno que me amarga por dentro principia imediatamente a imiscuir-se-me nas palavras, a ocorrer, a escorrer e a corroer tudo aquilo em que toco. Hei-de, um dia, morrer de mim. Não por suicídio: mas de excesso de mim. Entretanto, queiram ler-me. Comentar-me.
4. E se não me chegarem comentários, terei de comentar-me a mim próprio - o que, obviamente, não deixarei de fazer. Virei com uma série de heterónimos prontos a tecer as mais duras críticas ou os mais vibrantes elogios. Se me poupassem esse trabalho...