quinta-feira, março 30, 2006

IMAGENS KAOSTICAS (I)

Eis-me sozinho ao volante do meu Honda básico e insípido.
Abrando à medida que me aproximo de um semáforo.
E diante de mim - de costas, portanto - vejo um minúsculo bólide, descapotável, vermelhão, daqueles que só têm dois lugares.
E sentados nos dois lugares, dois homens calvos: verdadeiros carecas à moda antiga, sem complexos nem disfarces, sem cabelos falsamente puxados de uma orelha para a outra; não: algum cabelo na nuca, nas têmporas, mas o alto da cabeça livre e reluzente. Tento ultrapassá-los quando o semáforo muda. Não consigo. Desaparecem numa trapalhada de ruído e fumo.

Tudo nesta imagem se desajusta - felizmente, febrilmente, euforicamente - em relação ao conceito de um carro desportivo, de um descapotável. Em primeiro lugar, porque nos habituámos estupidamente a que o esperável seria, nesses lugares, um homem e uma mulher. Em segundo lugar porque, fosse como fosse, deveriam ser ambos cabeludos. Um descapotável é o mesmo que cabelos ao vento, longas cabeleiras loiras de Barbie, com óculos de sol no alto, a fazer de bandelete em vez de proteger os olhos (elas), e franjas de quéques, a tapar as orelhas, nos homens.
Considero, pois, estes dois senhores carecas verdadeiros revolucionários da estética do quotidiano.
Bem-vindos ao Kaostico

terça-feira, março 28, 2006

A CRISE DOS PARTIDOS

1. Com a «instauração» - que é um termo muito feio - da democracia em Portugal, foi-se criando - e «instaurando» -, sobretudo no seio da Esquerda, uma visão para a qual qualquer vestígio de crítica à política seria sempe suspeita e, em última análise, necessariamente reaccionária. Poderíamos pôr em causa, quando muito, o funcionamento deste ou daquele partido - mas não a instituição-partido enquanto tal, não os partidos em geral, nunca uma democracia cujo modelo é o da representatividade por via partidária; poderíamos até criticar certas políticas - as do governo, nomeadamente -, mas não «a» política, vista, em Portugal, pelos próprios políticos em primeiro lugar, como uma função de uma superioridade, nobreza e utilidade incontestáveis.

2. No limite, este tipo de tabu, este tipo de imperativo democrático, justificaria que se não tolerasse que algumas pessoas decidissem não votar.
Pessoalmente, entediei-me desse discurso consensual: «o abstencionismo é a vergonha máxima, é o acto impuro e indigno que envergonha a democracia». Entediei-me de ouvir o velho lugar-comum: «Não é importante saber se votamos neste ou naquele; vote-se em quem se entenda. Mas não podemos deixar de votar».

3. Eu voto. Sou um cidadão democraticamente insuspeito. Sempre que me chamam, lá estou diante das urnas, pronto a trocar o cartão de eleitor e o bilhete de identidade por um papelinho, a recolher-me na solidão responsável de uma câmara escura com uma prancha de madeira e uma bic dependurada de um cordel, a desenhar uma cruz num quadrado, como se não soubesse escrever, a enfiar o papel, dobrado em quatro, numa abertura estreita, a receber de volta o cartão de eleitor e o B.I. Mas uma percentagem embaraçosa de portugueses abstém-se. Vai para a praia. Os políticos não compreendem, vociferam contra essa inconsciência e essa irresponsabilidade. Pudera!

4. Ao mesmo tempo que sou um votante empedernido, compreendo o desprezo tremendo dos abstencionistas, esse acto extremo de não-participação, essa ruptura radical que soa como um manguito. As expressões primariamente anti-políticos, que nos tínhamos habituado a identificar com chavões de toda a imbecilidade, e a que os abstencionistas recorrem para justificar as suas abstenções, o «não vale a pena», o «são todos iguais», o «eles querem é encher-se», o «eles querem é poleiro» fazem, infelizmente, ao fim de cerca de trinta anos de democracia, um impressionante sentido: contêm um inevitável fundo de verdade. Se parece senso comum, no sentido menos nobre da palavra, o de «opinião vulgar», não instruída, é porque corresponde a uma percepção generalizada, inescapável.
Os partidos operam como caixas fechadas sobre si.
O interesse partidário tornou-se um filtro pelo qual é lido o interesse do povo, da democracia, do país.
A autonomia dos membros de qualquer partido reduz-se a uma tábua confrangedoramente limitada: todos vemos como é próprio dos membros partidários raciocinarem de acordo com uma lógica estrita, pobre, de conflito e de oposição aos outros partidos. (As cabeças pensantes dão-se sempre mal no «milieu» partidário).
O carreirismo é a grande e única medida.
Por isso, quando os políticos profissionais se escandalizam porque Cavaco Silva tenha tido a esperteza saloia de se demarcar precisamente dos «políticos profissionais» ou porque Manuel Alegre retirasse dividendos da ideia de uma participação cívica extra-partidária, bramando tratar-se de um equívoco, esquecem que, de facto, o que está em causa é, e cada vez mais, a instituição-partido. Ou o que políticos medíocres e arrivistas disso fizeram.

5. Eu continuarei a votar.
Por uma espécie de consciência política em vias de extinção, ou por um hábito muito arreigado.
Mas cada vez mais cepticamente.
E cinicamente.

segunda-feira, março 27, 2006

PREDILECÇÕES

Muito longe da intenção de classificar ou, sequer, de aconselhar de cátedra, venho hoje referir-me àquelas pessoas, das que andam por aí a fazer coisas nas mais diversas áreas, que têm conseguido captar-me a atenção e cujo percurso sigo:

No humor:
Considero Nuno Markl imperdível; a ter de escolher, prefiro o Markl radiofónico ao Markl televisivo, porque se é verdade que a rádio e a televisão são ou implicam linguagens completamente diferentes, então o «meu» Nuno Markl é o da Antena 3, onde o seu «Há Vida em Makl», que oscila entre o mero sorriso - amarelo - que às vezes provoca e a genialidade hilariante, é para mim o pequeno-almoço, a oração matinal.
Mas a mais recente descoberta que fiz é José de Pina, no «Prazer dos Diabos»: a sua imaginação delirante, sob a forma rude e truculenta, quase malcriada, que reveste,é de um efeito cómico irresistível. (José de Pina é um dos autores do Contrainformação e de um ou dois livros perfeitamente dispensáveis...)
Gosto dos Gato Fedorento: mas que dizer acerca deles que o país inteiro não diga já - até um Banco, que os usa na sua publicidade?

Na política:
Confesso, tristemente, que ninguém, rigorosamente ninguém: nem já a Ana Drago me é suportável.

Na literatura:
Çonçalo M. Tavares criou um universo onde a fantasia se articula de uma forma matematicamente perfeita (um pouco à maneira de Lewis Carrol) e onde a sua bizarria tem a eficácia de um relógio. As personagens que passam de uns romances para os outros, com os seus nomes estrangeiros (frequentemente de ressonância germânica) compõem uma complexa rede cujos elementos são uma inocência infantil, o puro prazer da brincadeira que reinventa os mais simples objectos, o rigor e a contenção da forma e dos meios, as referências literárias que fazem de cada uma das suas palavras, de cada uma das suas frases, uma remissão para livros e autores, como se na sua obra se percepcionasse toda a sua biblioteca.
Frederico Lourenço é o escritor cuja prosa, neste momento, me encanta mais: pela sua limpidez, pela sua serenidade, por uma sobriedade que não é simplicidade, mas se consegue por um trabalho aturado na busca do «mot juste». Para além dos seus romances, dos seus contos, a que subjazem uma visão e um ideal de aristocracia muito belos, há um texto curto sobre a sua infância e adolescência: trata-se, para dizer tudo, do texto mais delicado e profundo acerca da homossexualidade, da sua própria homossexualidade, onde a naturalidade com que é apresentada, como uma condição da sua vida, está longe de querer chocar, ou impor, ou sequer provar seja o que for.

Na pintura:
Há um tipo chamado Nuno Viegas. Para não falar, também eu, da inevitável Paula Rego, relembro este Nuno Viegas com cujo trabalho deparei por mero acaso numa exposição do Centro Cultural de Cascais (Tinta Envenenada). Dos seus pequenos quadros a preto e branco, onde o traço satírico, carregado de influências de BD, pressupõe uma narrativa sobre a qual podemos unicamente especular (por que razão aquelas personagens chegaram à situação que nos é desenhada? Por que prega aquela espécie de Sócrates para um urso de peluche? Que lhe sucederá depois?) até às pinturas maiores, cheias de cores vivas, de um realismo no traço que não descura nenhum pormenor (notem os ténis do jovem pintor autoretratado num quadro) para melhor nos mostrar imagens de um irrealismo que nos perturba, o que vi da pintura de Nuno Viegas fez-me pensar duas coisas: 1. Um dia, este jovem será famoso e irá residir em Londres; 2. Um dia, terei dinheiro para comprar um destes quadros (sei, até, qual compraria: mas não digo...). Posso ter-me enganado numa, ou noutra, ou nas duas, até poque não tornei a ver nem a ouvir falar de Viegas. Mas seria pena.

Na música:
Há quanto tempo não oiço nada interessante pós-Ala dos Namorados???

sábado, março 25, 2006

IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (V)

O homem é o animal que não come do chão. A dinâmica do corpo humano vai afastando a sua cabeça, progressivamente, dos seus pés. O rosto não cheira o que está em baixo, nem toma contacto com a terra: este é o primeiro e último segredo da sua fisiologia e da sua filosofia.

DIÁLOGO CONCISO

Atreveu-se a dizer à própria mulher:
- Às vezes, tenho saudades da outra.
Ouviu-a reagir, num princípio de surpresa horrorizada e horrorosa:
- Dizes-me isso a mim? Odeio-te!
Ouviu-a, depois de um silêncio, sussurrar, como se tivesse medo de acordar a resposta:
- Quem é ela?
Explicou-lhe:
- Quem? A outra? A outra és tu. Ou eras. A outra tu. A que foste naquele tempo em que me amavas tanto.
- Tonto. Mas eu amo-te.
- Não tanto. Não da mesma maneira. Já não. Não como a outra.

sexta-feira, março 24, 2006

O MÉTODO DE GONÇALO M. TAVARES

O método de Gonçalo M. Tavares consiste em olhar para um objecto simples, corriqueiro - digamos: um telefone. Para que serve um telefone? Para duas pessoas se falarem. Que lembra um telefone, ou que animal falante poderia evocar? Um papagaio. Eis estabelecido o princípio da analogia. Mas dizer que um telefone é um papagaio soa demasiado simples, seria preciso tornar a analogia mais completa e mais complexa. O que evoco agora é um papagaio pousado sobre fios de alta tensão, e esta ideia de uma ave palradora que tivesse fugido, por exemplo, e pousado nos fios, entre postes, permite-me completar a ideia, precisamente porque, num telefone, também se trata de fios.

Diria, por exemplo: um telefone é um papagaio sobre fios eléctricos - não pousado neles, mas ligado a eles.

Este método é um delicioso propiciador de paradoxos, de imagens tanto mais ricas quanto maior for o engenho. Também é fácil cansarmo-nos, quando a técnica começa a espreitar demasiado sob os efeitos, como um mágico que, inadvertidamente, deixa os fios e os arames transparecerem. Enquanto não transparecem, é pura magia: um movimento de uso lúdico das palavras, o retorno a uma recriação quase infantil das coisas mais banais do quotidiano.

Aconselho uma visita à Biblioteca Municipal de Oeiras. Ao longo das paredes, ao pé das estantes - não sei até que data - encontram painéis onde Gonçalo M. Tavares deixou escritos alguns destes paradoxos: o que são os sapatos, o que são os óculos, o que é um novelo de lã.

DA DIFICULDADE EM LER A IRONIA (II)

Quando falo da impotência dos jovens para a ironia - a questão é apaixonante - não me refiro a um problema etário, mas a um problema social: conheci rapazes e raparigas que eram verdadeiros mestres nessa arte, apenas observo, como professor, que, de ano para ano, vou ensinando novos bandos de jovens que não dominan nem têm já sensibilidade para ela, que a não usam como um dos seus instrumentos, ou que a afinaram pouco e não se sentem muito à vontade nesse elemento.
Na verdade, penso que o problema é mais vasto. Não é exclusivamente a questão da ironia mas, do meu ponto de vista, a questão da linguagem o que está em causa.
A ironia não é uma pura função intelectual, uma mera capacidade cerebral, mas uma das possibilidades da linguagem. A ironia é uma forma de usar a linguagem simbólica, que pressupõe um rasgão no sentido, um subtil desvio, que não introduz a mentira porque assume que o receptor da mensagem é capaz do mesmo desvio, do mesmo recuo, de compreender o contrário do que está expresso.
Evidentemente, quando me refiro a um embotamento da ironia, é a um embotamento desta no seu uso mais sofisticado, mais delicado, mais inteligente. O símbolo, pelo contrário,da ironia dos jovens de hoje, que é uma forma toda ela feita de sublinhados, de risos, de advertências, de indicações, para não haver a mínima hipótese de que a duplicidade do sentido possa escapar, é o gesto tipicamente norte-americano com que, uma pessoa que está a falar, faz questão de pôr uma frase ou uma palavra entre aspas, como desenhando-as no ar com dois dedos de cada mão.
Uma ironia mais plástica, menos óbvia, menos grosseira, requereria um outro poder sobre a linguagem, uma outra capacidade de interpretação, que multiplicasse os seus níveis e as suas virtualidades; isso implicaria um convívio com o texto escrito, com os grandes autores, os grandes mestres, um prazer e um cuidado com a linguagem e com a língua, que há algumas gerações, por muitos motivos, se veio descurando.

quinta-feira, março 23, 2006

DA DIFICULDADE EM LER A IRONIA

Quando estava nos alvores da minha juventude mais destravada, com as hormonas e a adrenalina a projectarem-me numa roda viva do disparate, peguei, um dia, numa mochila de lona e zarpei para um longo périplo por França onde, acompanhado de uma amiga de óculos, dentes de coelho e cabelo encaracolado, fiz algumas das melhores coisas da minha vida (que são, na maior parte dos casos, coisas de que me arrependo e não tornaria hoje a fazer): roubava em supermercados o almoço da cada dia - e, uma vez, fomos apanhados pelo detective da casa em flagrante delito -, dormi num citroen que sofrera um acidente e ali repousava à beira da estrada, preparei-me para andar de comboio sem pagar bilhete porque já não tinha dinheiro - soube, depois, que era dia de greve: passei a noite num banco da estação sem ver passar um único comboio -, infiltrava-me em vãos de escada de prédios para passar a noite.
O grande objectivo era irmos fazer as vindimas.
Antes de chegarmos a esse ponto, no percurso, a minha amiga e eu integrámo-nos num grupo que, sob as ordens de um professor universitário, procedia a escavações arqueológicas. Parece interessante, não parece? Também a mim, inicialmente, pareceu muito interessante: na verdade, tudo se resumia a dias terríveis, que começavam muito cedo, madrugada ainda, e se prolongavam até às cinco ou seis da tarde, sob um sol abrasador, com uma curta pausa para almoço; no chão, mal sentados, escavávamos morosamente umas pedras sem nada que as tornasse muito especiais, mas que o professor mirava, colocando os óculos na testa, como um aviador, piscando muito os seus olhos pequeninos e argutos. Eu era inexperiente: tremo, hoje, só de pensar nos vestígios historicamente valiosíssimos que não terei destruído sem sequer disso me aperceber.
Já muito tarde, arrasados, muito melancólicos, éramos devolvidos ao parque de campismo onde pernoitávamos; tomávamos um duche, vestíamo-nos o melhor possível e (abençoado tempo de uma viagem de furgoneta, que eu desejava que nunca mais terminasse) rumávamos a um restaurante dos arredores, onde jantávamos todos, à volta de uma mesa enorme. Havia muitos franceses, dois portugueses (nós), um camaronês, um grupo de belgas, no meio do qual brilhava uma rapariga gorducha, loira, sempre muito corada, extremamente divertida; um inglês, o professor, a esposa do professor...
E nunca me esqueço de que fazíamos muito barulho. E de que, curiosamente (para quem conhece o pãozinho sem sal em que entretanto me tornei), rapaz pouco habituado à bebida como eu era, com dois ou três copos a mais, que eles insistiam em que eu emborcasse, ou que me iam discretamente reenchendo, sem que desse conta, eu era o mais ruidoso, o mais apatetado (nem quero imaginar as figuras que terei feito), o do sapateado, o da cantoria, o dos brindes...
Mas lembro-me de que, por qualquer razão, um dia, o patrão do restaurante nos veio pedir que não fizessemos tanta algazarra: talvez houvesse mais clientes lá para o fundo, talvez alguém se incomodasse, talvez outra coisa qualquer.
O professor olhou imediatamente para mim:
- Gil, du calme!
E eu, levantando-me muito apressadamente, mimando o menino queixinhas, dei quase uma volta inteira à mesa para me aproximar da rapariga belga, que era divertida, como já disse, mas, acrescento agora, tímida e discreta - e, por isso, um alvo fácil das nossas brincadeiras -, apontar-lhe um dedo acusador e bradar:
- Não sou eu quem está a fazer barulho! É a belga...

Era uma clara ironia. Ou pensei que sim. Uma brincadeira inconsequente: porque eu fora, obviamente, o barulhento mais barulhento, porque a belga fora, pelo contrário, a mais risonha mas também a mais sossegada das pessoas, aquela minha acusação não podia ter efeito literal.

Mas a mulher do professor universitário olhou-me friamente. Gelidamente.
E, sem ponta de ironia, lançou-me esta lição absoluta:
- Gil, é muito feio acusar as outras pessoas.

A lição desta história - porque esta história contém uma moral - não reside, naturalmente, nas palavras de madame. A lição está na percepção de que talvez nunca existam ironias claras: porque somos todos muito diferentes uns dos outros e temos diversos e diversificados limites, a prática da ironia será necessariamente um exercício e um jogo de risco, um movimento entre alguns, que lêem literalmente aquelas palavras, outros, que hesitam, sem saberem se devem tomar a sério ou não e, porventura, por vezes, um só, o próprio sujeito irónico, o único capaz de se distanciar e de se compreender.

Vem-me esta lição novamente ao espírito, quando me apercebo - por razões, por razões que não vêm ao caso - de que a ironia é uma espécie em vias de extinção, uma daquelas profissões antigas que já praticamente não tem seguidores, que uma temível gravidade se abateu sobre os jovens, que a sociedade se fechou, ou se vai fechando, que já poucos e raros são capazes de vislumbrar o segundo sentido.

Imaginem uma sociedade feita de pessoas como a mulher do professor universitário.

quarta-feira, março 22, 2006

O SUBLIME. (LEMBRANDO CONVERSAS COM UMA AMIGA)

A beleza é tranquila.
As coisas que me são belas não me amedrontam. O rosto de uma criança adormecida, uma melodia que me corta a respiração, o riso. Mesmo quando no intuir de algo de uma beleza tocante há uma espécie de melancolia, ou de tristeza, é um sentimento que salva, não um sentimento que deprime, nem que despedaça. É uma turvação, sim, mas com a qual os meus sentidos e o meu espírito se reconciliam numa secreta harmonia e numa serena limpidez. O belo, mesmo que seja essa turvação triste e melancólica, mesmo que seja essa quase-intranquilidade, é sempre desejado, é sempre buscado. Não se foge à beleza.

Naturalmente, nem só ela nos atrai os sentidos. E o meu espírito defronta-se, mais raramente, mas algumas vezes, com uma outra categoria estética, que me surpreende, me chama, mas não confere tranquilidade alguma. No fascínio pelo que me ultrapassa infinitamente, e me ultrapassa de tal modo que sinto em mim um misto de receio, ou de terror, já não é de beleza que se trata. Uma tempestade que, ao mesmo tempo que, no seu espectáculo apocalíptico, me revela a inquietante fragilidade de que sou feito e os meus próximos e a minha casa ante a loucura da natureza, repele-me, amedronta-me, esmaga-me, é certo, mas envolve-me numa experiência que me prende também absolutamente, e a que não resisto.
Miguel Sousa Tavares referia-se, nos mesmos termos, a uma tempestade de areia no deserto: a vivência que aterroriza na sua grandiosidade - e nos põe perante o infinito: aquilo que os nossos sentidos já não apreendem de todo, o que a nossa razão não abarca e, portanto - como escreveu Kant - já só a nossa imaginação possibilita que se vislumbre no seu terrífico sentido.
Deve ter sido o sentimento de Moisés em face de Deus.
A reverência, o respeito, quando não o terror, são as formas possíveis dessa antevisão, desse espreitar aquilo que nenhuma forma humana consegue conter nos limites da sua compreensão.
E, neste enunciar de exemplos com que me vou, somente, aproximando do que é impronunciável, inominável, impensável, recordo-me de uma fotografia que me fascinou num longo e doloroso arrepio: um leopardo mirando-nos de frente, com um olhar de uma intensa luminosidade, tenso, vigilante, com o focinho tingido de sangue. Nesse tipo de beleza maléfica, perversa, nessa beleza que é anti-beleza, de certo modo, reside, porventura, a explicação de espectáculos hediondos, brutais, cruéis que são, para muitas pessoas, espectáculos magníficos: a tourada, como um bailado bárbaro e macabro, mas de uma precisão, de uma elegância, de uma subtileza, de uma delicadeza no mal que encarna e provoca, no estranho sentido da proximidade do perigo e da morte; ou Hannibal, quem não se lembra? - esse exemplo imoral de como o terrível pode exercer uma incompreensível e medonha atracção.

Tal é o sublime.

segunda-feira, março 20, 2006

IDEIAS DE AINDA MENOS PALAVRAS

(...)

IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (IV)

O sentido de humor dos outros é, para a maioria das pessoas, como uma daquelas doenças temíveis: suportamo-lo estoicamente quando toca aos nossos próximos; nunca o esperamos. Mas ficamos como se fosse o fim do mundo, quando nos bate também à porta.

sábado, março 18, 2006

DIA APROXIMADO DO PAI

No dia dezassete de Março, o infantário da minha menina (já com cinco meses!) festejou com os pais das crianças o «dia de semana mais próximo do dia do pai».
Fomos tomar, digamos, um leitinho com os meninos.
E ali estávamos, cinco ou seis pais, algumas mães, uns quantos avós, várias educadoras de bata de riscas azuis, todos num atropelamento mútuo no interior de uma sala pequenina, diante de uma mesa redonda, ajoujada de salgadinhos e de Ice-tea, que os pais tinham sido convidados a levar mas em que, embaraçadamente, ninguém se atrevia a mexer.
Cada pai com o seu rebento ao colo, éramos, ali, um grupo de pessoas que se não conheciam umas às outras e não sabiam de que falar. Alguns sentavam-se, como Brancas de Neve do sexo masculino, em cadeirinhas da casa dos sete anõezinhos, minúsculas, muito coloridas.
Ríamos exageradamente da mínima gracinha de algum dos bebés, do mais pequeno tropeção, do menor choro.
Havia balões, umas bonecas de trapo presas, do tecto, por elásticos.
Um pai falava ao telemóvel.
Escreveramos previamente uma mensagem paterna em cartões que nos olhavam agora, ternamente (ou ridiculamente), afixados numa parede.
SER PAI É, dois pontos - e, para um: «Amar muito»; para outro: «Ser a mais feliz das criaturas e dar milhões de beijinhos aos seus filhos» (se fosse só isso...!); para alguém (talvez o de fato e gravata, que falava ao telemóvel): «Ter sempre tempo para eles».
E eu, que escrevera uma patetice de que me envergonhava um pouco, só conseguia ruminar na frase que não ousara escrever, mas seria ali, naquele momento, a mais sincera, a mais sentida, a com mais sentido, e a mais bizarramente intensa que me poderia ocorrer:
SER PAI É, dois pontos - «Amar-te ao ponto de vir a esta festinha de quase-dia-do-pai».

sexta-feira, março 17, 2006

SOBRE TRAIÇÕES, ERROS E O QUE MAIS SE VERÁ

Terei talvez perdido - com uma natural melancolia - aquela que, desde o momento em que descobri que o meu blogue atraía alguns curiosos, talvez equivocados, se mostrou a minha leitora mais interessada e atenta: sm, que comentava com alguma regularidade os textos que a tocavam, não voltou a emitir sinais vitais.
Preocupa-me a ideia de um encontro tão fugaz.
Preocupa-me que um dos meus aforismos, em especial, a tenha indignado.
Talvez valha a pena falar disso mais detidamente.

Sob a capa peremptória, petulante, de saber definitivo, que é a forma própria e natural de um aforismo, o que procurei foi apresentar frases - aquilo a que gosto de chamar «ideias com poucas palavras» - que me obrigam a reflectir contra a corrente, à margem da visão consensual (a minha própria, em primeiro lugar), da rotina ideológica e moral em que, como todos, também no dia-a-dia tendo a equilibrar-me.

Sei que, em situação de equilíbrio, raramente penso, na acepção mais lata do termo «pensar»: quando muito, limito-me a repetir-me.
É quase sempre na instabilidade, no desequilíbrio, na ameaça do desconhecido, do «e se fosse de outra maneira?», que sinto o pensamento abrir asas.
Não, não se trata de querer por força mostrar-me original ou de querer, por força, ser paradoxal e diferente: trata-se, para empregar uma expressão da própria sm, de abrir frestas. De arriscar, aqui ou ali, a vertigem do «e se fosse?»

Não professo nenhuma teoria sobre a infidelidade. Não venho aqui fazer a apologia dela. Pergunto-me, somente, se tenho a certeza de que está, relativamente à «traição», tudo já moralmente certificado. Se, mesmo o acto terrível e escandaloso de enganar alguém, não contém às vezes algo, não digo de bom, mas irredutível ao moralismo imediato: uma dimensão trágica...? Pergunto-me o que será, o que poderá ser, por exemplo, o dilema de estar partido entre duas pessoas que ame intensa, imensamente, que me mereçam ambas absolutamente e eu desejaria merecer - ambas - fielmente.

Conheço quem seja infiel por lhe estar na massa do sangue, que engane como quem bebe água, porque dessa duplicidade e desse secretismo retira a adrenalina necessária para se sentir vivo; conheço quem solucione, pelo contrário, as suas infidelidades mentais optando por uma estrita fidelidade, alimentando uma inconfessada e inconfessável paixão platónica, pensando mais na outra ou no outro do que no/a legítimo/a. Conheço gente, ainda, de uma fidelidade fácil - a dos que nunca sofreram sequer a tentação, nem se sentiram divididos, nem entreviram qualquer outra possibilidade, nem estremeceram: espíritos tranquilos, que dormem sossegadamente, sem um único dilema amoroso, e que não sei se inveje, se lamente. Mas conheço, por fim, outros casos: os que vivem esta impossibilidade como possibilidade, ou esta possiblidade como impossibilidade e, sempre, como um mal profundo, que os corrói e traga, que os esmaga mas a que não podem escapar.

É por tudo isto - mas, em relação a certos temas, é certo, nunca nos explicamos suficientemente: tudo ficaria ainda por dizer - que este acto que eu não aprovo - não se trata aqui de aprovação - contém algo de paixão infeliz, de impossibilidade fatal, que me parece que a palavra «traição» julga sem tentar compreender.

Não quero ter razão, sm. Ter razão é demasiado fácil e, sobretudo, demasiado enganador. Gostaria, isso sim, de pensar e ver para além do que me é segura e comodamente oferecido.

Deixa-me não ter aquilo que tu consideras ser o «ter razão» - e, mesmo assim, continuares a ler-me.
De vez em quando...

terça-feira, março 14, 2006

SOBRE A COLUNA, HOJE, DE PRADO COELHO

Esteja eu ou não de acordo com ele: porque, num país de certos consensos tão fáceis, tão imediatos e tão indiscutíveis, Eduardo Prado Coelho escreveu hoje que Mariza canta o mais banal dos fados e tem, na sua opinião, sido extremamente sobrevalorizada, E.P.C., os meus parabéns.

NUNO CRATO, O ANTI-EDUQUÊS

Eu gosto de Nuno Crato.
Se às vezes faço dele o alvo do meu sarcasmo, não é porque não entenda que, no fundo, a falta de tacto e de polimento de algumas das suas afirmações é somente a forma que elegeu para «épater le bourgeois», isto é, no caso, os bons sentimentos, leia-se, o «politicamente correcto».

O seu último livro, sobre (e contra) o «eduquês», é uma crítica implacável e, geralmente, bem fundamentada, das modernas pedagogias e do seu romantismo que reduz todo o ensino ao problema de como motivar os alunos.
É esta crítica original? Não é. Se nos lembrarmos de um texto recente e polémico de Maria Filomena Mónica sobre os «Filhos de Rousseau» (também, depois, editado em livro) compreendemos a linha de que são feitas estas críticas: Rousseau seria, segundo elas, o verdadeiro pai teórico da pedagogia em que chafurdamos em Portugal; somos todos herdeiros da ideia rousseauniana de que os meninos não devem ser sacrificados, de que todo o progresso - e exigência de progresso - é simultaneamente uma perversão do bem natural e espontâneo, de que o ensino terá de ser não um factor de progresso mas de prazer, uma espécie de permanente exercício lúdico...

Rousseau tem as costas largas. A busca de um pai intelectual é sempre uma tarefa imperfeita. Do meu ponto de vista, Jean-Jacques tem pouco que ver com o estado a que o ensino chegou. Os verdadeiros e múltiplos pais dos novos métodos são toda uma geração: a daqueles - de que Maria Filomena Mónica e Nuno Crato fazem parte - que eram jovens nos anos sessenta, e que, contra uma sociedade asfixiante, que lhes impunha modelos bafientos enquanto enviava os rapazes para a guerra (Vietname, Angola, Moçambique), opôs a sua contracultura: feita de liberdade e criação na música, nas relações, no vestuário, na linguagem, com uma procura delirante do exótico e do prazer imediato - fosse no amor, fosse nas drogas, nas filosofias do Oriente, em Che ou em Mao.

Este movimento, de que nos tendemos, hoje, a esquecer, envolveu e mudou o mundo de várias formas e em diferentes frentes. É da vaga de psicólogos e sociólogos então produzidos, carregados de boas intenções, sonhos e droga, que nós somos, todos os professores quarentões, os autênticos herdeiros.

Não há dúvida de que os disparates se acumularam e o desastre parece ameaçar-nos a cada instante. Estou, como Crato ou como Mónica, contra as novas pedagogias em que se apoia o sistema que se tornou, aparentemente, pouco sério e nada eficaz. Não há, talvez, nada mais pernicioso do que as boas intenções, quando mal compreendidas, mal digeridas e estupidamente aplicadas. Mas seria importante não lançar fora o bebé com a água do banho: não perder de vista a intenção de humanização do ensino que subjazia a esses projectos que tanto mal fizeram. Seria importante que, corrigir, reformar, não fosse - como, às vezes, parece na boca de alguns - passar do modelo que em tudo detecta horrorosas fontes de desprazer e recalcamento, para o modelo que não teme minimamente fazer sofrer, e que exclui o prazer como elemento da aprendizagem.

domingo, março 12, 2006

«SI NON É VERO...»

Conta o meu irmão, em cujas histórias não posso confiar plenamente mas que me fazem sempre rir, que Freitas do Amaral foi entrevistado para a TVI, num encontro em Salzburg.
A propósito das recentes polémicas por causa do seu comunicado acerca dos cartunes, respondia, com a arrogância e os olhos esbugalhados do costume, por trás dos seus óculos de aquário: «Perdão, só os ignorantes é que não entenderam o que se pretendia com esse comunicado...»; e para provar que, internacionalmente, a sua mensagem, como agora se diz de novo, passara, clara e consensual, Freitas fez questão de chamar para o pé de si o ministro dinamarquês, que deveria aplaudir as suas palavras, o seu comunicado e a «compreensão» nele mostrada em relação à fúria devastadora do mundo árabe.
O ministro dinamarquês aproximou-se, com efeito, grato pela solidariedade que os portugueses haviam dado, pelo apoio oferecido neste momento difícil, e bla-bla-blá, bla-bla-blá.
Mas, por uma vez, o jornalista que os interrogava era um homem que falava inglês e, com uma pronúncia (sempre segundo meu irmão) ainda mais correcta do que a do próprio Freitas, atravessou-se, perguntando ao ministro se tinha efectivamente lido o dito comunicado, especialmente o ponto em que este se referia à «compreensão» da reacção muçulmana.
Perante este esclarecimento, o ministro dinamarquês gritou, espantado: «Compreensão!? Compreensão!? Mas não; que disparate, é inadmissível: «compreender» os destruidores das embaixadas? como compreensão, como compreensão...?», ao que Freitas, por sua vez, interpunha, muito vermelho, «Mas eu não disse exactamente «compreensão», o que eu disse, atenção!, o que eu disse...», saindo então ambos a esbracejar, e deixando o jornalista sozinho com o microfone.

Duvido que isto se tenha passado assim.
Mas lá que teria sido merecido, que era bom que se tivesse passado assim, isso...

sábado, março 11, 2006

AFORISMOS - PORVENTURA ERRADOS - ACERCA DE ERROS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE

Uma pessoa nunca é o que pensávamos. Pode, porém, suceder que nunca sejamos confrontados com o nosso engano: nesse caso, dir-se-á que a conhecemos.

Se não encontramos a pessoa talhada para que sejamos ambos felizes, paciência. Encontramos sempre outra: geralmente, pagamo-lo caro.

A primeira lição que devemos aprender com os nossos erros, é que os erros são professores austeros: não nos perdoam que erremos.

A maior imoralidade numa traição por amor, consiste em que se lhe chame «traição».

A infidelidade é, muitas vezes, a fidelidade exercida como dilema.

sexta-feira, março 10, 2006

ISA A MENTIROSA

Isa brincava no recreio da escola, quando viu, em cima do muro baixo, um poucochinho de brilho sob o sol da manhã.
Por um momento, pensou que esse brilho fosse um bocado do próprio sol, que tivesse caído. Devia ser quente! Uma curiosidade gazelídea movia-a devagar em direcção ao brilho; ia um pouco receosa mas, ao mesmo tempo, com o prazer desse receio.
Ao perceber o que era, deu um gritinho. Melhor do que um bocado do sol: um bâton a sério, de senhora, que se tornava, de súbito, a melhor coisa do recreio, a melhor coisa do momento, talvez da sua vida. Um bâton como o da tia São (a mãe praticamente não usava), como o daquelas senhoras de lábios lustrosos, que deixavam marcas nos guadanapos de papel, nos copos e nas chávenas.
Pegou no supositório (é verdade que também lhe parecia um supositório), pô-lo na palma da mão, nas duas mãos em concha, tirou-lhe a tampa, mirou-lhe a cor: fez um traço sobre o muro e arrependeu-se imediatamente, com medo de gastar o que acabara de descobrir.
Andou o resto do tempo do intervalo sozinha, não se pintando, mas fingindo que se pintava, sentindo o pauzinho nas mãos suadas, guardando-o no bolso, tirando-o de novo para o ver, como se tivesse esquecido e quisesse recordar a sua forma, ou como se duvidasse da sua existência.

Mais tarde, na casa de banho da escola, olhando-se ao espelho, pintou ao de leve os lábios; depois, como se não se visse bem, como se não tivesse tido nos lábios a cor viva que esperara, tornou a passá-lo. Quando saiu, sentia-se uma senhora crescida. Se limpasse os lábios a um guardanapo, deixaria uma marca, o desenho de uns lábios. Se desse um beijo ao Marco, que ela adorava secretamente, estamparia na bochecha dele a forma de um coração. Se levasse um copo à boca, ficaria um borrão na borda...

Já não sei quem foi a primeira a reparar. Possivelmente a professora, que perguntou o que tinha ela. Isa explicou que pintara os lábios. A professora não percebeu com quê, julgou que com tinta, mandou-a lavar muito bem a boca.

Quando soube que uma sua colega perdera o bâton, e o procurava, aflita, assustada até, porque tinha sido um presente muito caro, a professora fez mentalmente uma vaga associação, como uma descoberta que não se vestira ainda completamente para sair à rua, mas poderia sair dentro de pouco tempo.
- Mas onde é que tu tinhas o bâton?
- Na minha mala. Esteve sempre na minha mala.
- Mas não o terias perdido...?
- Não. A mala estava fechada. Esteve sempre fechada. Não.
- Achas que to roubaram? Desapareceu-te mais alguma coisa? Não o terás deixado em casa?
A colega tinha a certeza absoluta. A mala estivera pousada numa cadeira, à mão de semear de quem passasse, talvez de uma das empregadas...
- Mas não te levava a carteira? Só o bâton? Não achas estranho?

De novo na aula, a professora mandou chamar Isa para o pé da sua secretária.
Olhou-a muito atentamente, como uma adulta capaz de seguir o rasto dos pensamentos de uma criança culpada, como um polícia esperto, a quem não escapam os sinais do medo no rosto do assassino.
- Aquilo que tu tinhas hoje de manhã nos lábios... aquilo era bâton, Isa?
- Era - (nem sombra de atrapalhação na expressão, na voz, no gesto).
- E onde é que arranjaste o bâton?
- Ah, foi a minha tia que me deu. - (A tradução-para-adulto destas palavras deveria ser: Este bâton é igual aos da minha tia, é tão importante como os da minha tia, faz de mim uma senhora crescida como a minha tia, como se tivesse sido a minha tia a abrir-me esta deliciosa porta).
Era uma mentira óbvia, pensou a professora. Uma tia não oferece um bâton a uma criança de seis anos.
- Tens aí o bâton? Posso vê-lo?
A professora parecia demasiado interessada no seu segredo, no seu brinquedo, na sua brincadeira, no seu brilho - que começara por ser um brilho de sol sobre o muro e se tornara num brilho de cor nos seus lábios. Isa olhou-a, tentando encontrar o significado daquele interesse.
- Não.
Baixou a cabeça. Escondeu os olhos no chão.
- Tens a certeza? - insistia a professora.
- Não.
- Não quê? Não tens a certeza, ou não tens o bâton contigo?
- Não.
- Bem. Vá, vai lá sentar-te.
Isa foi. Mas a professora sabia já o que queria saber, a sua suspeita vestira-se completamente, pusera chapéu e luvas, não era uma curiosidade assomada à janela, mas uma certeza pronta para sair à rua.
Quando tocou para o intervalo do almoço, a professora seguiu silenciosamente Isa, espreitou-a na casa de banho onde, como a senhora previra, a menina, diante do espelho baixo, à medida das meninas, se encantava consigo, com os seus lábios, com o seu bâton.
- Ah! malandra. Ladra. Ladrazinha de uma figa!!!

Quando a mãe de Isa a veio buscar à escola, a professora disse-lhe que precisava de falar com ela. Estava muito séria. Muito grave. Com a voz ligeiramente velada. Levou-a para um gabinete onde se sentaram, já as duas um pouco nervosas, ambas tensas e preocupadas, sem que a professora soubesse como começar a narração; sem saber muito bem, apesar de ter treinado essa conversa, como insultar a menina em linguagem psicologicamente correcta.

IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (III)

Quando alguém a quem se diz «Isto não pode ser» responde «Então parte disto» ou «Ao menos aquilo», este e este ao menos são como um pé que se atravessa na fresta da porta, para que esta se não feche: e um pé que impede uma porta de se fechar, fá-lo sempre com o intuito de, mais tarde, a abrir.

quinta-feira, março 09, 2006

NO SILÊNCIO DO SENTIR-TE

A mais usada das palavras é só
Um nome para este tremor imenso,
Este querer-te tanto, que assim querer alguém
Não pode senão ser ilusão ou erro

Esta palavra demasiado fácil,
Que todos os amantes, todos os dias
Usam, nós não podemos porém usá-la
Porque o seu som não designa este silêncio

Concentremo-nos
Simplesmente
No que nunca pertenceu às palavras

PROBLEMAS GOSTOSAMENTE IRRELEVANTES

Quando iniciei este blogue, não tinha dúvidas de que a minha intenção e a minha intensidade de comunicação se tornariam irresistíveis e de que, em pouco tempo, um universo de sedentos leitores dos meus mais pequeninos pensamentos se formaria. Espalhei o endereço por alguns amigos, comecei a escrever. Insistia com as pessoas: Já leste, já viste? Assediados, um ou outro acabavam por dar com textos a que, depois, se referiam - raramente para o blogue, a maioria das vezes em mensagem de telemóvel ou, quando me encontravam, de viva voz. Uns quantos «postaram», no entanto, os respectivos comentário. Um convite publicitário - foi a primeira reacção ao meu blogue -, e algumas impressões. Com o tempo, os comentários foram rareando. Ainda me lembro de uma série de textos em que eu reflectia sobre a sensação de isolamento que me ganhava, a ideia de estar a escrever na água, em vão, para o tempo passageiro e volúvel, para o vazio. Eram textos pungentes, chamamentos, apelos, pedidos de um eco longínquo, de um sinal mínimo. Num certo sentido, habituei-me à ideia de que estava só. De que escrevia pelo prazer de escrever.

E fui, até, deixando de frequentar o meu próprio blogue. Alternativamente, escrevia para um outro, da escola, que, esse sim, se tornara popular, e me granjeava leitores - gente que gostava e gente que detestava, mas, fosse como fosse, reacções vivas, comentários. Negligenciei, pois, o Kaostico.

A minha primeira surpresa deu-se quando uma colega de, digamos, relação formal, ou meio-formal - já aqui falei disto - me contou, um dia, que se dera ao trabalho de, através do blogue da escola, me seguir até este: lia os meus textos kaosticos, apreciara muito alguns, reconhecia-se num em especial. Fiquei siderado. Pensei, numa espécie de sobressalto, que talvez me tivesse excedido, de que a sensação de estar só me levara, porventura, a escrever com uma sinceridade incómoda, como quando estamos sozinhos a tirar macacos do nariz e descobrimos que, afinal, algures, alguém olhava para nós...

Vieram, entretanto, outras surpresas.
Uma «sm» pedia-me que, a propósito de uma prevista conversa com alunos acerca do amor platónico, de que eu aqui dava conta, escrevesse mais, fizesse uma «continuação» de modo a noticiar como tinha, depois, corrido essa conversa.
Automaticamente, de mim para mim, descodifiquei «sm» como «São Morais» - minha amiga e organizadora dessa conversa com alunos - e respondi-lhe tratando-a por esse nome. Até que descobri que «sm», que continuava comentando, não era «São Morais», mas outra. Que outra? Alguém que eu conhecesse? Uma desconhecida que tropeçara por acaso no blogue e se interessara? Como sabê-lo? Ironicamente, expliquei que, pelas minhas contas, já teria três leitores, talvez quatro nos dias de maior engarrafamento - e digo «ironicamente» porque, no fundo, no fundo, supunha ter bem menos.

A propósito de novos textos, tenho recebido outros comentários. Um «curioso» elogia-me uma reflexão, comenta um conto sobre monstros, adverte-me para que terei mais leitores que só não se tinham manifestado - como ele, até então - por não saberem como. E perante esta sensação estranha, perturbadora,esta noção de um eco desconhecido, um murmurar de desconhecidos, no outro lado (são quem eu penso? «sm», que não é a São, será a Paulina? «Curioso» será o Carlos? Ou pessoas que nunca me viram...?) sinto-me preocupado, temeroso, excitado, inseguro. São, num certo sentido, preocupações irrelevantes: não me matam, não há que dramatizar. Excitantes: comunico, afinal (embora um blogue, lembra-me «sm», seja uma fresta muito pequena). São problemas, de algum modo, gostosos, em que me perco um pouco.

Posso comprometer-me a escrever aqui um texto - pelo menos - por dia. Posso comprometer-me a, sobretudo, não me vigiar: a dizer o que sinto, o que estou pensando, ainda que possa estar a pensar mal. Não como quem tira macacos do nariz. Mas sentindo que, se alguém se dá ao trabalho de vir até mim, merece que eu seja mesmo eu diante dele.

terça-feira, março 07, 2006

RACIOCÍNIOS FRÁGEIS

O Doutor Boaventura de Sousa Santos (BSS), expoente maior das ciências humanas na sua versão pós-moderna, escrevia um artigo em que tentava responder, no fundo, a uma adivinha: o que há de comum entre (1) uns jovens que, recentemente, assassinaram um sem-abrigo à pedrada, (2) uns outros jovens brasileiros que, há algum tempo, mataram - ou, pelo menos, atacaram - uns representantes de uma comunidade de índios e (3) o caso das caricaturas do profeta Maomé?

Sei que a resposta a esta adivinha deve residir, obviamente, numa determinada analogia. Mas também sei que as analogias devem ser usadas com ponderação e rigor - ou bem que têm limites, ou tudo pode ter qualquer coisa em comum com seja lá o que for.
Para BSS, o segredo para solucionar o problema radica em observar-se que existe, nos três casos, um mesmo desprezo pelo outro: pelo diferente, trate-se do travesti, do sem-abrigo, do índio, do homossexual.
A ridicularização implicaria sempre uma idêntica forma de desrespeito por aquilo que se não compreende. E é sempre de ridicularização que se trata, quer sob a forma da pedrada quer sob a forma da caricatura. Ou seja, para BSS não há nenhuma diferença de natureza entre espancar um homem até à morte e fazer humor: apedrejar um ser humano ou contar uma anedota de alentejanos são actos que comungam de uma mesma essência assassina. Enxovalhar o outro no seu ser-outro representa sempre, fundamentalmente, um mesmo tipo de indignidade.

Ora do meu ponto de vista, pelo contrário, o humor não pode deixar de ser um olhar sobre o que é diferente: esse talento e esse poder de negar momentaneamente a seriedade do que é, quanto mais não seja para alguém, a coisa mais séria desta vida, constitui uma seiva de toda a democracia e, mais do que isso, um pilar da civilização ocidental. Na sua forma mais delicada ou mais grosseira, como ironia, ou sarcasmo, ou escárnio e mal-dizer, o humor, que faz estremecer o poder, tomba governos e submete ao escrutínio do ridículo todas as instituições e todas as expressões humanas, é, frequentemente, uma voz do preconceito, sem dúvida, mas nem por isso deixa de representar um limite para que nos tomemos demasiado a sério ou para que façamos do respeito absoluto, da reverência e do tabu os princípios da nossa existência social.

Umberto Eco mostrava-nos, no Nome da Rosa, essa ligação íntima entre a imposição do dogma e o banir do riso. Onde o riso é temido, e proibido, ou admoestado, só pode emergir uma gravidade totalmente falha de espírito - no caso, do espírito capaz de se distanciar do literal, o espírito capaz de deformar para provocar a saudável gargalhada, o espírito do humor.

BSS diria: Não, não, não, não é disso que se trata! Não de banir o riso, que horror, olhem para mim, que sou um homem tão divertido, e que gosto muito de rir com anedotas que não ofendem, como aquela do elefante e da formiga, mas de banir o mau riso.

Mau riso? Não é que não seja concebível um riso pior - um riso grosseiro, humilhante, sem gosto nem educação. Mas o problema está em que, se há, efectivamente, esse riso pior, que nos assusta, também me parece, por outro lado, que não há riso que não seja mau. Não existe humor sem maldade. Um humor que fosse puro e cristalino, bondoso, de santos, seria um humor sem graça. E no entanto, a eficácia social da maldade humorística, por implacável que seja, está precisamente em que essa maldade não é exercida como violência física ou como exclusão efectiva do outro. Um homem que ri de si mesmo, um negro que conta anedotas de negros, não são necessariamente suicidas, nem traidores: são a prova de que se pode compreender que o mal do riso não tem de ser maléfico nem humilhante.

Compreenderia que se tentasse separar, do riso mau (que é todo, num certo sentido), o riso pior. Mas não seria isso também uma amputação cultural e social com repercussões perigosas? Que critérios e que fronteiras, que limites e que ofensas teríamos de considerar (se, em última análise, tudo o que é troça pode ser ofensivo)?

Tudo deve então ser permitido? Certamente que não. Mas não vejo que seja um progresso humano traçarmos a priori uma demarcação.

Por onde quer que olhe, não compreendo a analogia de BSS.

Tremo só de pensar no uso que, em ciência, BSS pode fazer da analogia.

segunda-feira, março 06, 2006

OS MONSTROS

Aquele súbito ruído bem no âmago da sua silenciosa solidão fê-la estremecer de um susto minúsculo, diríamos: discreto.
As crianças, em seus sustos, concebem de imediato monstros habitando-lhes o roupeiro. Só aos poucos é que, à medida que vão adolescendo mais, preenchem os sustos com outras hipóteses: intrusos, ladrões, a professora de matemática...
Os adultos, pelo contrário, principiam sempre por pôr as hipóteses menos terríveis. Não porque ignorem os monstros mas, pelo contrário, porque os viram já frente a frente, porque os conhecem bem de mais e os temem demasiado. Treinaram-se para não os imaginarem constantemente.
Por isso mesmo, Maria, sozinha em casa, assustada, foi-se propondo hipóteses inócuas para o bizarro e repentino ruído: uma janela aberta lá em cima (por que se esquecia sempre de as fechar?), o vento, algum objecto que resvalara...
Mas o ruído reproduzira-se. Havia mais sons. Passos. Algo que se aproximava, que não se limitava a soar mecanicamente no mesmo sítio.

Tentou regressar ao juízo, um redil de pequeníssimo diâmetro.
Que disparate! Quem poderia ser? O que poderia ser? Não se ergueu da cadeira. Nem para ir ver - que nunca iria - nem para se refugiar. Impunha juízo ao seu espírito, impunha-lhe saúde mental; recordava-se de que era adulta, esquecia-se ou fazia por se esquecer de que um adulto sozinho é simplesmente uma criança amputada da capacidade de brincar, insultava-se, «Estúpida, medrosa», a palavra «medrosa» conduzia-a, por associação, a insultos ainda piores, «merdosa», fazia-se mal para afugentar de uma vez a ideia de que lhe poderiam fazer mal.

Mas havia uma aproximação. Inegavelmente. Fosse o que fosse, era um aproximante, um ser que vinha, que se chegava, que sentia cada vez mais perto. Toda a sua coragem se fragmentou em torno de um princípio de terror. Um ladrão?

O terror endurecia, trazendo consigo os seus pesadelos.
Sabia que os monstros existiam, como qualquer adulto o sabe, principalmente os que o ignoram, os que sorriem, protectores, dos seus filhos que gritam, à noite, por eles.
Já não era capaz de apagar o seu pressentimento, de dar outro nome e outra forma àquela pura proximidade, àquela aproximação secreta.
O monstro regressava.
Meu Deus, que horas seriam?

O monstro estava ali. À porta da sala. Fixando-a incisivamente. Muito pálido. O seu marido.

LIBERDADES

Diz a feminista previdente: «Eu não me casei, para poder fazer tudo o que quero». Responde o previdente machão: «Eu casei-me, para poder fazer tudo o que quero».