quarta-feira, março 22, 2006

O SUBLIME. (LEMBRANDO CONVERSAS COM UMA AMIGA)

A beleza é tranquila.
As coisas que me são belas não me amedrontam. O rosto de uma criança adormecida, uma melodia que me corta a respiração, o riso. Mesmo quando no intuir de algo de uma beleza tocante há uma espécie de melancolia, ou de tristeza, é um sentimento que salva, não um sentimento que deprime, nem que despedaça. É uma turvação, sim, mas com a qual os meus sentidos e o meu espírito se reconciliam numa secreta harmonia e numa serena limpidez. O belo, mesmo que seja essa turvação triste e melancólica, mesmo que seja essa quase-intranquilidade, é sempre desejado, é sempre buscado. Não se foge à beleza.

Naturalmente, nem só ela nos atrai os sentidos. E o meu espírito defronta-se, mais raramente, mas algumas vezes, com uma outra categoria estética, que me surpreende, me chama, mas não confere tranquilidade alguma. No fascínio pelo que me ultrapassa infinitamente, e me ultrapassa de tal modo que sinto em mim um misto de receio, ou de terror, já não é de beleza que se trata. Uma tempestade que, ao mesmo tempo que, no seu espectáculo apocalíptico, me revela a inquietante fragilidade de que sou feito e os meus próximos e a minha casa ante a loucura da natureza, repele-me, amedronta-me, esmaga-me, é certo, mas envolve-me numa experiência que me prende também absolutamente, e a que não resisto.
Miguel Sousa Tavares referia-se, nos mesmos termos, a uma tempestade de areia no deserto: a vivência que aterroriza na sua grandiosidade - e nos põe perante o infinito: aquilo que os nossos sentidos já não apreendem de todo, o que a nossa razão não abarca e, portanto - como escreveu Kant - já só a nossa imaginação possibilita que se vislumbre no seu terrífico sentido.
Deve ter sido o sentimento de Moisés em face de Deus.
A reverência, o respeito, quando não o terror, são as formas possíveis dessa antevisão, desse espreitar aquilo que nenhuma forma humana consegue conter nos limites da sua compreensão.
E, neste enunciar de exemplos com que me vou, somente, aproximando do que é impronunciável, inominável, impensável, recordo-me de uma fotografia que me fascinou num longo e doloroso arrepio: um leopardo mirando-nos de frente, com um olhar de uma intensa luminosidade, tenso, vigilante, com o focinho tingido de sangue. Nesse tipo de beleza maléfica, perversa, nessa beleza que é anti-beleza, de certo modo, reside, porventura, a explicação de espectáculos hediondos, brutais, cruéis que são, para muitas pessoas, espectáculos magníficos: a tourada, como um bailado bárbaro e macabro, mas de uma precisão, de uma elegância, de uma subtileza, de uma delicadeza no mal que encarna e provoca, no estranho sentido da proximidade do perigo e da morte; ou Hannibal, quem não se lembra? - esse exemplo imoral de como o terrível pode exercer uma incompreensível e medonha atracção.

Tal é o sublime.

1 comentário:

Gil Duarte disse...

Lamento muito. (Sei que soa formalmente, mas também sei que não o vais ler assim). Esta coincidência (como viste pelo título, o sublime também evoca, para mim, conversas com uma amiga) tem, no seu lado trágico, algo de sublime.