terça-feira, março 28, 2006

A CRISE DOS PARTIDOS

1. Com a «instauração» - que é um termo muito feio - da democracia em Portugal, foi-se criando - e «instaurando» -, sobretudo no seio da Esquerda, uma visão para a qual qualquer vestígio de crítica à política seria sempe suspeita e, em última análise, necessariamente reaccionária. Poderíamos pôr em causa, quando muito, o funcionamento deste ou daquele partido - mas não a instituição-partido enquanto tal, não os partidos em geral, nunca uma democracia cujo modelo é o da representatividade por via partidária; poderíamos até criticar certas políticas - as do governo, nomeadamente -, mas não «a» política, vista, em Portugal, pelos próprios políticos em primeiro lugar, como uma função de uma superioridade, nobreza e utilidade incontestáveis.

2. No limite, este tipo de tabu, este tipo de imperativo democrático, justificaria que se não tolerasse que algumas pessoas decidissem não votar.
Pessoalmente, entediei-me desse discurso consensual: «o abstencionismo é a vergonha máxima, é o acto impuro e indigno que envergonha a democracia». Entediei-me de ouvir o velho lugar-comum: «Não é importante saber se votamos neste ou naquele; vote-se em quem se entenda. Mas não podemos deixar de votar».

3. Eu voto. Sou um cidadão democraticamente insuspeito. Sempre que me chamam, lá estou diante das urnas, pronto a trocar o cartão de eleitor e o bilhete de identidade por um papelinho, a recolher-me na solidão responsável de uma câmara escura com uma prancha de madeira e uma bic dependurada de um cordel, a desenhar uma cruz num quadrado, como se não soubesse escrever, a enfiar o papel, dobrado em quatro, numa abertura estreita, a receber de volta o cartão de eleitor e o B.I. Mas uma percentagem embaraçosa de portugueses abstém-se. Vai para a praia. Os políticos não compreendem, vociferam contra essa inconsciência e essa irresponsabilidade. Pudera!

4. Ao mesmo tempo que sou um votante empedernido, compreendo o desprezo tremendo dos abstencionistas, esse acto extremo de não-participação, essa ruptura radical que soa como um manguito. As expressões primariamente anti-políticos, que nos tínhamos habituado a identificar com chavões de toda a imbecilidade, e a que os abstencionistas recorrem para justificar as suas abstenções, o «não vale a pena», o «são todos iguais», o «eles querem é encher-se», o «eles querem é poleiro» fazem, infelizmente, ao fim de cerca de trinta anos de democracia, um impressionante sentido: contêm um inevitável fundo de verdade. Se parece senso comum, no sentido menos nobre da palavra, o de «opinião vulgar», não instruída, é porque corresponde a uma percepção generalizada, inescapável.
Os partidos operam como caixas fechadas sobre si.
O interesse partidário tornou-se um filtro pelo qual é lido o interesse do povo, da democracia, do país.
A autonomia dos membros de qualquer partido reduz-se a uma tábua confrangedoramente limitada: todos vemos como é próprio dos membros partidários raciocinarem de acordo com uma lógica estrita, pobre, de conflito e de oposição aos outros partidos. (As cabeças pensantes dão-se sempre mal no «milieu» partidário).
O carreirismo é a grande e única medida.
Por isso, quando os políticos profissionais se escandalizam porque Cavaco Silva tenha tido a esperteza saloia de se demarcar precisamente dos «políticos profissionais» ou porque Manuel Alegre retirasse dividendos da ideia de uma participação cívica extra-partidária, bramando tratar-se de um equívoco, esquecem que, de facto, o que está em causa é, e cada vez mais, a instituição-partido. Ou o que políticos medíocres e arrivistas disso fizeram.

5. Eu continuarei a votar.
Por uma espécie de consciência política em vias de extinção, ou por um hábito muito arreigado.
Mas cada vez mais cepticamente.
E cinicamente.

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